Já aqui foi referido, Carlos
Carranca,
em 3/9/2019, em “In Memoriam” da Paula a um amigo”, e citados alguns dados biográficos pesquisados na
Internet.
Hoje, é a referência à festa de homenagem, em 14/6, organizada pela Rosinha, na Escola Ibn Mucama em Cascais, onde o marido fora também professor, entre tantas outras actividades de poeta, professor, fazedor/divulgador de cultura; cantor, cidadão, em suma.
A Rosa iniciou a sessão, ao seu jeito de doçura, a biografia foi lida por um antigo aluno, Pedro Jorge, da Escola de Teatro, a minha neta Ana Margarida cantou, com música sua vocal e voz extraordinária, em tom de jazz, um poema de Carlos Carranca. Houve ainda leitura de outros poemas seus, seguida do grupo dos amigos “Serenata ao Luar”, tocando fados e variações de Coimbra, e ainda o comovido recitativo pela Rosa e Ruben Chama, “O meu amor é marinheiro” de Manuel Alegre.
Não assisti, mas a Paula veio encantada, tendo participado com a apresentação dos livros reunidos num volume: “Poemas Absurdos” e “A Palavra e o Mundo”, escritos – por vezes ditados – na sua cama de hospital, onde longamente permaneceu, sempre muito acarinhado.
Eis o texto da Paula, ao seu modo sentido e directo, e simultaneamente bem expressivo do estilo enigmático do escritor, de simbolismos e ternuras, no sofrimento final que a criatividade contínua ajudaria, talvez, a, em parte, ultrapassar:
“Do Absurdo dito em Palavras e Mundo”
Carlos, meu querido Adamastor, é o teu primeiro livro sem dedicatória, na minha estante. A vida oferece-nos estas partidas...
Mas... e um Haiku para iniciar:
“pela estrada
onde passamos
continuas a cantar.”
Vou pensar o teu último espaço e tempo; a ação principal dos dois livros deste livro - a escrita de tudo o que amaste, registos da memória e daquele teu presente inesperado e “duro”; da tua fuga para o infinito, mas, acima de tudo, da aprendizagem de uma nova realidade, que nos fica em recordações e imagens. Vou pensar a transferência do teu corpo físico, no “suor do momento”, o que sentiste “na extinção das formas” para o voo da alma, nas palavras que tu, “resistente, beijaste”, e, do passado em salto para o futuro, não mais sairão de nós.
Somos pinceladas daqueles que te
rodeiam, nas tuas páginas: Natureza, pessoas (família próxima e o pai
longínquo, amigos, aldeões, companheiros de hospital) e o gato que tão bem
conhecemos também do teu facebook.
São dois livros que, separados, se podem juntar num só: o primeiro (“Poemas Absurdos”), de poemas mais tradicionais, embora modernos na sua liberdade métrica, e sem rima, na maioria das vezes; o segundo (“A Palavra e o Mundo”), à maneira japonesa, de três versos cada um (os teus amigos Haikus), em flashes de curto pensamento, prolongado, porém, nas imagens que escolheste (quase adágios poéticos) e se vão espraiando em cada página aparentemente vazia...
Até os versos que “deixaste por
escrever” serão motivo de POESIA, na voz dos amigos e família que perduram e
vão falar de tudo aquilo que nela amaste. ELA é tudo, é o Mundo, e não só o do
poeta, torna-se nosso pela generosidade da tua partilha. Escreves, aqui, sobre
a própria escrita dos poemas feitos Vida - a Natureza e o Homem. O eu e os
outros que nela se inscrevem mostram o que se sente quando se lança o olhar
poético sobre o que nos rodeia e acontece - o Amor. Mas também o medo e a
solidão, o cansaço que sobrevém quando percebemos que as sombras se vão
instalando e tudo se desvanece.
São as ervas, o musgo do “lugar sagrado”, as raízes, o caule de onde nasce o poema puro, as pedras e o vento, a lua cheia, as nuvens e a chuva, as flores e as conchas, os pássaros e os grilos, o mar, no seu movimento que tudo engole, o pinheiro e a oliveira, a tua serra da Lousã que se ergue em forma de poema, e os plátanos do hospital... Andei à procura do sol, não encontrei. Apenas um único “tempo solar com flores de plástico” e “uma manhã” que cheira e sabe já a “ocaso”.
O outono predomina e o teu corpo vai-se transformando em “lua vegetal”, um noturno ainda e sempre musical, todavia, transfigurado numa “ girândola de luz e sombra” nesse abismo do encontro próximo com o “pó das estrelas”.
Naturais, ao “arder em combustão”, a incerteza que exprimes sobre quem te “espera na ilha da utopia” e o desejo, utópico, “de outro mar, de mais mundo, à hora em que a tarde cai “.
E existe, sempre, afinal, a consciência sofredora da tua nova viagem de pescador trágico e a do “recomeçar (iminente) sem convenções nem tempo”, “vivendo a hora do segundo nascimento”.
É esta a minha dedicatória, para ti que a já não pudeste escrever. Para tua memória, uma homenagem que adorei fazer. Pensando o absurdo deste mundo em que continuamos ainda a caminhar, procurando o sentido da nossa presença, mas também o das ausências que começam a marcar-nos com alguma frequência...
Dou-te um Haiku para acabar...
“E agora
que te olhámos
há outra forma de estar...”
Paula, a tua
amiga - “
«“Então,
ó Lacerda, estás boazinha?” –
Estou,
querido Adamastor, e penso em ti»
E eis o perfil de Carlos Carranca, segundo os dados orientadores da sua querida Rosinha, que o aluno Pedro utilizaria na sua apresentação inicial:
-Licenciado
em História e doutorado em Cultura Portuguesa, cujo resultado foi o livro “O Casticismo em Torga e Unamuno”, começou por exercer docência no ensino secundário -
Escola Secundária Marquês de Pombal, Escola Secundária Ibn Mucana e Escola
Secundária de Alvide.
-
No concelho de Cascais destacou-se pelo seu papel de divulgador da poesia portuguesa e animador cultural.
-
Na Escola Secundária Ibn Mucana, entre outras coisas, dirigiu as actividades culturais da biblioteca;
organizou uma exposição ao pintor (seu grande amigo) Isolino Vaz e criou a
revista Oxalá.
-Miguel Torga
foi uma das suas grandes referências, por isso, enquanto lecionava na Escola
Secundária de Alvide, iniciou o
apoio, que viria a ser nacional, da candidatura deste poeta transmontano ao
Prémio Nobel.
-
Entre 1994 e 1999 foi responsável pela Noite das Artes –
espectáculo de encerramento das Jornadas de Educação e Cultura do Concelho de
Cascais, onde poetas como Miguel Torga,
António Gedeão, Luiz Goes, Manuel Alegre, e outros, foram homenageados.
- Desenvolveu,
no Instituto Português da Juventude de Lisboa, durante três anos lectivos, e
posteriormente, no Centro Cultural de Cascais, o ciclo de Poesia Para Todos,
dirigido aos alunos do ensino secundário, acompanhado ao piano pelo maestro Jorge Machado.
- Conversas
com versos foi outro
ciclo de poesia para os alunos mais novos, levado a várias escolas básicas e
infantis do país.
- Bernardo Soares
dizia que “Minha pátria é a língua portuguesa”, expressão tantas vezes repetida
por Carlos Carranca, também ele um desassossegado na defesa intransigente e
apaixonada da língua e da cultura portuguesas.
Estas
preocupações levaram-no, entre tantas outras coisas, a presidente da Direcção da Sociedade de Língua
Portuguesa; a fundar o
Círculo Cultural Miguel Torga; a sócio-fundador
da Sociedade Africanóloga de Língua Portuguesa; …
E
quem não se recorda das míticas e fraternas tertúlias em que se transformavam
as suas jornadas culturais? Nelas participaram figuras incontornáveis da nossa
cultura, como Maria
Barroso, António Arnaut, Luiz Goes (seu grande amigo e voz única de Coimbra),
Durval Moreirinhas (viola de Zeca Afonso, outra das suas grandes referências),
José d’Encarnação, António Toscano, Eugénio Lisboa, entre tantos e tantos
outros amigos… Em todas as
sessões que organizava, não havia só espectadores. Todos éramos levados
a comungar a utopia da fraternidade e da cidadania através da poesia. Quanto à
docência, o grosso da sua actividade centrou-se na Universidade Lusófona e na
Escola Profissional de Teatro de Cascais.
Na Universidade Lusófona, levou a cabo uma intensa actividade e marcante acção
cultural, como: foi fundador e director adjunto da Biblioteca Geral (com o professor Vitor de Sá); director do Gabinete de Acção Cultural; co-fundador
e coordenador da colecção Meia Hora de
Leitura; fundou as Edições
Universitárias Lusófonas; foi director do Centro de Estudos da Lusofonia Agostinho
da Silva e da Biblioteca da Escola Superior Almeida Garrett, onde exercia docência ultimamente e organizou o Curso Livre de Cultura Portuguesa, onde participaram as mais variadas figuras
literárias.…
A
escola Profissional de Teatro de Cascais,
onde durante muitos anos lecionou a disciplina de Área de Integração -
através da qual explorava o sentido de cidadania dos alunos, levando-os a
pensar-se e a pensar o outro e o mundo -, foi o espaço que lhe muniu parte da
‘matéria-prima’ para algumas das suas ‘loucuras artísticas’, como o inesquecível
espectáculo de homenagem a Miguel Torga,
no Casino do Estoril.
A
muito divulgada “Serenata” que os alunos
desta escola lhe fizeram, em fevereiro de 2018 (na primeira saída do hospital)
é testemunho do impacto das suas qualidades humanas e pedagógicas nestes
jovens.
Autor
profundamente arreigado à sua terra de adopção, Coimbra, onde viveu e estudou durante a infância e juventude,
liderou, contra tudo e contra todos, no quente ano de 1976, o movimento da
renovação das tradições académicas de Coimbra, consideradas, à época,
manifestações ´fascistas´.
É
reconhecidamente uma das referências do chamado " Fado de Coimbra" como autor e intérprete, tendo levado aquela cidade a
toda a parte e sempre que pudesse - cantando-a, escrevendo-a, dizendo-a. O
espectáculo “…de Coimbra,
o Canto, a Guitarra e a Poesia”,
que produziu no Cinema S. Jorge, em 2012, foi um desses melhores exemplos deste
amor pela sua cidade.
Era
consultor cultural da Associação dos
Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa.
Adepto inveterado da sua amada BRIOSA, Carlos
Carranca integrava o Conselho Académico do Organismo Autónomo de Futebol da
Associação Académica de Coimbra,
sendo uma figura de referência para os elementos deste organismo.
Nos anos em que lidou com a doença, os diários
e crónicas que publicou nas redes sociais tornaram-se emblemáticos, símbolos e
provas da derradeira resistência poética e cívica.
Foi
agraciado com Medalha de
Mérito Cultural pela Câmara Municipal de Cascais (2001)
Prémio
LAUSUS pela Câmara Municipal da Lousã (2015)
Medalha
de Mérito pela Câmara Municipal da Figueira da Foz (2017)
Da
sua prolífera criação artística – maioritariamente poética (22 livros
editados); ensaística (sobretudo dedicado
a Miguel Torga); contista e dramática (na última fase), tomamos a liberdade de
destacar alguns títulos:
Ressurreição,
(1992)
7
Poemas para Carlos Paredes, (1994)
Serenata
Nuclear, (1994)
Miguel
Torga e a África Portuguesa, (1995)
O
Fantasma de Pascoaes, (1996)
O
espírito da raiz, (1997)
Lousã
em Menino, (1998)
Torga
– o Bicho Religioso, 2001
Neste
lugar sem portas, (2002)
O
sentimento religioso em Torga e em Unamuno, (2002)
Coimbra
à guitarra, (2003)
Académica
sempre, a poética do futebol, (2005)
Fratria,
(2008)
Com
o cachimbo de meu pai, (2011)
O
Casticismo em Unamuno e Torga, (2012)
Prelúdios,
(2016)
Para além do mar vermelho, (2017)
Reconhecendo
o seu mérito como poeta e cidadão ativo, a Câmara
Municipal da Lousã, terra de
origem dos seus avós maternos, os
Carrancas, acaba de
divulgar em Diário da República o “Prémio
Literário Carlos Carranca” a decorrer anualmente, concurso aberto a
escritores de língua portuguesa, independentemente da sua nacionalidade.
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