No relato de sucessores de Fernão Lopes – (Rui
de Pina, Damião de Góis) que David Martelo divulga, no seu excelente blog de
História Universal “A BIGORNA”
http://www.a-bigorna.pt.
Pelas previsíveis repercussões políticas no espaço ibérico, o
acontecimento mais marcante do reinado de D. João II, imediatamente após a conclusão
da viagem de Bartolomeu Dias, é, sem dúvida, o casamento de D. Afonso, herdeiro
do trono, com a infanta D. Isabel de Castela, filha dos Reis Católicos. O acordo obtido aquando do desfazimento das
terçarias de Moura apalavrava o enlace do príncipe português com D. Joana
e apenas salvaguardava a hipótese de se regressar à fórmula inicial do
casamento com D. Isabel se esta, entretanto, permanecesse solteira. Foi o
que, efectivamente, sucedeu.1
Em Agosto de 1488, D. João II inicia as primeiras consultas a propósito da necessidade de casar o príncipe D. Afonso, exprimindo publicamente a ideia de o fazer com a infanta D. Isabel de Castela que, entretanto, continua solteira. A infanta está, então, com quase 18 anos, tendo já ultrapassado largamente a idade que na época era habitual para a concretização dos matrimónios reais. A hipótese da espera propositada tem, por esse motivo, que se aceitar como muito provável. No ano seguinte, depois de obtido o necessário consenso, o rei português envia para Castela Rui de Sande, sendo portador de uma carta para os monarcas espanhóis na qual se concretiza o pedido da mão da infanta. A resposta, segundo Rui de Pina, vem prontamente, sob a inequívoca forma de quem não deseja outra coisa:
« ...logo responderam sua final determinação ser não quererem dar ao príncipe por mulher a infanta D. Joana, mas a infanta D. Isabel, em cujo casamento os ditos reis [Isabel e Fernando] tinham já despedido os embaixadores do rei dos Romãos 2 que a Valhadolid a vieram requerer e assim el-rei de França e el-rei de Nápoles, com quem sobre este casamento da infanta D. Isabel houve muitos requerimentos e grandes pendências. » 3
A preferência do enlace com o herdeiro da coroa portuguesa, face a uma proposta de casamento aparentemente mais prestigiante, é bem elucidativa das fortes razões políticas que estão em jogo. Esta versão dos acontecimentos é, de resto, plenamente confirmada na historiografia do país vizinho através de Hernando del Pulgar, cronista dos Reis Católicos, que, além de aludir à embaixada do rei dos Romãos, assinala que levaram como resposta que «a ynfanta doña Isabel su hija, les pluguiera mucho de lo otorgar luego, salvo por la pendençia que tenia de su matrimonio com otro principe».4
Por outro lado, é inevitável ter em conta que, numa época em que a elevada mortalidade infantil não poupava, sequer, os filhos das cabeças coroadas, a infanta castelhana podia, sem favor, ser vista como provável herdeira dos reinos de Castela e Aragão. De facto, já por essa altura, o único filho varão dos Reis Católicos, D. João, então com 11 anos, gozava de débil saúde: «ésta fue siempre motivo de preocupaciones para su ayo, Juan de Zapata, y para su maestro, Diego de Deza».5
Neste
cenário, o facto de D. Isabel ocupar
o segundo lugar na cadeia sucessória dá à perspectiva do enlace entre
os dois príncipes contornos políticos muito mais significativos, colocando no
horizonte a possibilidade da união
dinástica. Mas mesmo não colocando a questão da união dinástica
no horizonte, havia boas razões para que o casamento fosse desejado na corte
castelhana: «atraer al monarca allí
reinante [D. João II] para que dejara
de prestar su tenaz apoyo á las pretensiones siempre vivas de doña
Juana la Beltraneja, hacer
desaparecer los recelos y restablecer la buena inteligencia entre las dos
naciones, y quedar los
1 V. neste blogue O TRATADO DE ALCÁÇOVAS E OS DESCOBRIMENTOS. 2 Sacro Império Romano-Germânico. 3 PINA, Rui de, Crónica de D. João II, cap. XXXIII, p. 65. 4 Citado por MENDONÇA, Manuela, D. João II, p. 384. 5 SUÁREZ FERNANDEZ, Luis, Isabel I, Reina, p. 447.
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reyes de Castilla y Aragón
desembarazados y libres de cuidado por aquella parte para atender con más
desahogo á la guerra de Granada».6 De facto, está-se
nas vésperas da ofensiva final contra o reino de Granada, e, portanto, o
matrimónio dos dois príncipes constitui a garantia de que, da fronteira oeste,
não virá qualquer ameaça que obrigue a lutar em duas frentes. Não admira,
por conseguinte, que a descrição das derradeiras diligências diplomáticas que
antecedem o casamento aponte, de forma expressiva, para um enlace
calorosamente desejado em ambas as cortes. Garcia de Resende deixou-nos,
a este propósito, um significante relato:
« E porque a esse tempo o
Príncipe estava em quinze anos, e a Infanta não era casada, desejando ElRei
acabar o dito casamento, mandou sobre isso a Castela por embaixadores Fernão da
Silveira, Condel-mor e regedor da casa da Suplicação, e o doutor João Teixeira,
Chanceler-mor destes reinos, e por secretário da embaixada Rui de Sande, que
depois foi D. Rodrigo de Sande, que já sobre o dito casamento fora aos ditos
Reis, e o deixara bem concertado. A qual embaixada foi muito honradamente com
muitos fidalgos mui galantes, e ricamente ataviados, e partiu da cidade de
Évora no começo do mês de Março. E a requerimento da Rainha de Castela levavam
o Príncipe tirado, pelo natural, que era o mais formoso e gentil-homem que no
mundo se sabia. »
El-Rei e a Rainha de Castela, e o
Príncipe seu filho, a Princesa e Infantes, e toda a Corte estavam na cidade de
Sevilha. [...] E os ditos embaixadores chegaram à cidade de
Sevilha, e foram por todos os grandes da Corte do reino, e da cidade, recebidos
com tanta honra e cerimónias quanto até então nunca foram recebidos
embaixadores de nenhum Rei.
«E assim lhe foram feitas outras muitas
honras, e favores de honrados aposentamentos, presentes e visitações, em que
claro se via o muito prazer e contentamento que, todos em geral e especial com
sua ida tinham. O que muito mais viram nas próprias pessoas d'El-Rei e da
Rainha, quando os embaixadores lhe deram sua embaixada, cuja substância era
requererem e concordarem o dito casamento, que logo sem dúvida nem dilação
alguma se concordou, e logo o dito Fernão da Silveira que para isso levava
suficiente e bastante procuração, em nome do Príncipe por palavras de presente
como manda a Santa Madre Igreja de Roma, recebeu a dita Princesa D. Isabel
por sua mulher, por mão do CardeaI D. Pero Gonçalvez de Mendoça, perante El-Rei
e a Rainha, o Príncipe e Infantas e suas irmãs, e muitos grandes senhores com
muito grande solenidade domingo da Pascoela à noite, deste ano de mil quatrocentos
e noventa, na qual noite e outros dias seguintes houve em Sevilha muito
grandes e sumptuosas festas de momos e justas reais, em que El-Rei
ajustou e foi mantedor, e assim ajustaram muitos e pessoas principais, e houve
outras e muitas e grandes festas.7
O
casamento concretiza-se, assim, por procuração. D. João II, embora ausente,
sabe, de antemão, a data do enlace e quer ser informado, em poucas horas, de
que tudo se realizara como previsto. Para tal,
«ordenou escudeiros de sua casa postos a cavalo em paradas pelo caminho
que com toda a pressa de um em outro lhe trouxessem, como trouxeram, a dita
certidão logo à segundafeira seguinte, ainda de dia, e lha deram andando na
praça da cidade de Évora a cavalo e com ele o príncipe seu filho e o duque 8 com muitos senhores, que depois de ouvida
foi a ela logo respondido com gritas e alegrias de todos...».9
Os relatos que os cronistas fazem das
diversas acções que conduziram ao enlace entre os dois príncipes, mesmo que
possam pecar por algum exagero, não iludem uma realidade que factos
posteriores haveriam de confirmar: o casamento do herdeiro da coroa
constituía, de facto, uma peça decisiva no plano político global de D. João II. O
prestígio internacional associado ao acontecimento tem, por esse motivo, que ser
ampliado através de uma grandiosa manifestação pública de poder e
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6 LAFUENTE, Modesto, Historia General de
España, T. Séptimo, p. 129. 7
RESENDE, Garcia de, Crónica d’El-Rei D. João II, Vol. 2.º, cap. CXIV, pp.
61-62. 8 D. Manuel, duque de
Beja, futuro D. Manuel I. 9 PINA,
Rui de, Idem, cap. XLIV, pp. 85-86. 3
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riqueza, de que todo o mundo cristão
tenha notícia. O momento adequado para esse tipo de afirmação é, precisamente, a
cerimónia de acolhimento da princesa D. Isabel, acto que, por conseguinte,
implica cuidadosos preparativos e gastos sumptuosos, como refere, com grande
minúcia, Rui de Pina:
«...e entre as muitas coisas que
com prazer e consentimento do dito senhor rei acordaram foram algumas as
seguintes, que para memória destas e exemplo de outras aqui tocarei:
primeiramente elrei, por suas cartas e com palavras de grande confiança, amor e
prazer, notificou o dito casamento a todos os prelados, senhores, fidalgos e
cavaleiros principais de seus reinos e os convidou para as festas dele,
encomendando a todos que consigo somente trouxessem os contínuos de suas casas
e que de suas pessoas, casas, camas e mesas viessem em toda possível perfeição
apercebidos, por tal que com honra e abastança eles pudessem agasalhar e
festejar os senhores estrangeiros que às festas viessem; e a muitos escreveu e
encomendou que trouxessem suas mulheres, como trouxeram, mui ricamente
aparelhadas. Enviou com grande diligência e muita abastança de dinheiro seus
mensageiros por mar e por terra, em levante e em poente, não somente a comprar
os arreios, cumprimentos e coisas que para tais festas eram necessárias, mas
ainda, para maior perfeição delas, enviou a notificar a todas as gentes e
nações do mundo que poderiam trazer para elas ou enviar suas jóias, sedas,
brocados, arreios, panos e coisas. E por decreto e determinação geral os
franqueou dos direitos que das ditas coisas houvessem de pagar e pudessem sem
pena tirar em ouro e prata o preço delas, e assim se cumpria. Enviou logo
uma caravela bem armada em Itália em que mandou feitores com grande
soma de ouro, donde por compra trouxeram muitos e mui ricos brocados, sedas,
pedraria e outros muitos cumprimentos para as festas, assim para arreios e
vestidos das pessoas reais e para salas e câmaras como para toda a corte». 10
Quando, por fim, o adiantado dos preparativos
o permite, ajusta-se com a corte castelhana a data da entrada da princesa em
Portugal. Para acontecimento de tão elevado significado político, ordena D.
João II que seja o duque
de Beja, D. Manuel, acompanhado de outros fidalgos e prelados, a receber
D. Isabel na fronteira. Após uma pernoita em Elvas, a 22 de Novembro de
1490, D. Isabel prossegue a viagem para Évora. D. João II e D. Afonso –
vivendo, cada um à sua maneira, as emoções daquele decisivo evento – vão ao seu
encontro a Estremoz.
E chegaram a Estremoz à hora a
que a princesa entrava, e foram descer a casa do duque, com que aquela noite
pousaram; e dali foi logo a princesa avisada de que eles a queriam logo ir ver,
que por isso ceou apressadamente, e ela, com suas chamas e casa, se vestiu como
cumpria. E, como foi tempo, el-rei foi para ela, que em pé a ele e ao príncipe
veio esperar no topo de uma escada; e em elrei sendo em cima, ela se pôs em
joelhos para lhe beijar as mãos, mas el-rei, com muita cortesia e muita mais
alegria e amor, lhas não quis dar e a levantou e deu lugar ao príncipe, que,
ambos com os joelhos mui inclinados, um ao outro se abraçaram, e, feito isto, el-rei,
posto à mão esquerda da princesa, e o príncipe à mão direita, se sentaram no
estrado, onde el-rei, tendo a princesa por uma mão e os olhos e coração em
ambos dois, lhes disse com muita graça, discrição e amor as primeiras palavras
que cabiam na primeira vista de coisa em que tanta glória e contentamento
recebia, e que não menos a procurara que desejara. E a princesa, que em
tudo era espelho de discrição, prudência e honestidade, lhe respondeu de
maneira que acerca de el-rei sua real presença naquela hora não minguou em nada
sua excelente fama passada. Acabadas estas falas, el-rei houve por bem que,
além da solenidade do recebimento que por procuração do príncipe se fizera já
em Sevilha, ele em pessoa a tornasse ali a receber por sua mulher, como logo
recebeu nas mãos de D. Jorge da Costa, arcebispo de Braga, segundo forma e
mandamento da Santa Igreja de Roma, e sobre isso houve aquela noite muitas
danças e festas, acabadas as quais se despediram e recolheram.11
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10 Ibidem, cap. XLIV, pp. 86-87. 11 Ibidem, cap. XLVI, p. 95. 4
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A triunfal recepção à princesa, na
cidade de Évora, concretiza-se num domingo, dia 27 de Novembro de 1490. O
cortejo detém-se na porta de Avis, onde Cataldo Parísio Siculo 12,
encarregado da oração de boas-vindas, sublinha, uma vez mais, o momento único
que então se vive, afirmando:
«Nunca a gente lusitana, mais
antiga do que qualquer outra, e esta nobilíssima cidade tiveram no espírito
tão grande contentamento como neste dia [...] que coisa maior, mais nobre, mais
grandiosa, mais alta, mais preciosa e enfim mais santa do que a vossa muito
desejada vinda podia acontecer em todo o reino? Certamente nada.13 »
D. João II não podia estar mais feliz. Para além da garantia da paz,
o enlace entre os dois príncipes ia lançar as bases de uma nova política nas
relações entre Portugal e Castela, ao mesmo tempo que se garantia a manutenção
da tradicional amizade com o reino de Aragão – potência naval mediterrânica
cujo conhecimento do próximo oriente poderia ser de elevada utilidade para a
realização do Plano da Índia. À política de separação de interesses, consagrada no Tratado
de Alcáçovas, iria seguir-se, se tudo corresse bem, uma política de união de esforços. E, dessa união, resultaria o poder em recursos
materiais e humanos que D. João II entenderia requerer a grande empresa da
Índia.
A felicidade de D. João II não duraria um ano. D. Afonso morreria no
seguimento de um acidente equestre. Mas aquele tratado matrimonial era tão
fundamental para as duas cortes ibéricas que seria repetido, pouco depois da
subida ao trono de D. Manuel I, mediante o seu casamento com a viúva do primo.
Assim o impunha a ambição de chegar à Índia.
David Martelo – Dezembro de 2020
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12 Humanista siciliano que, a convite de D. João II, veio para Portugal,
cerca de 1485, para ser mestre de D. Jorge, filho bastardo do rei. 13 SICULO, Cataldo P., Duas Orações, p. 51.
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