quinta-feira, 3 de junho de 2021

Factos da nossa História passada


No relato de sucessores de Fernão Lopes – (Rui de Pina, Damião de Góis) que David Martelo divulga, no seu excelente blog de História Universal “A BIGORNA  http://www.a-bigorna.pt.

 1490 – A IMPORTÂNCIA GEOPOLÍTICA DO ENLACE DO PRÍNCIPE D. AFONSO COM ISABEL DE CASTELA

Pelas previsíveis repercussões políticas no espaço ibérico, o acontecimento mais marcante do reinado de D. João II, imediatamente após a conclusão da viagem de Bartolomeu Dias, é, sem dúvida, o casamento de D. Afonso, herdeiro do trono, com a infanta D. Isabel de Castela, filha dos Reis Católicos. O acordo obtido aquando do desfazimento das terçarias de Moura apalavrava o enlace do príncipe português com D. Joana e apenas salvaguardava a hipótese de se regressar à fórmula inicial do casamento com D. Isabel se esta, entretanto, permanecesse solteira. Foi o que, efectivamente, sucedeu.1

Em Agosto de 1488, D. João II inicia as primeiras consultas a propósito da necessidade de casar o príncipe D. Afonso, exprimindo publicamente a ideia de o fazer com a infanta D. Isabel de Castela que, entretanto, continua solteira. A infanta está, então, com quase 18 anos, tendo já ultrapassado largamente a idade que na época era habitual para a concretização dos matrimónios reais. A hipótese da espera propositada tem, por esse motivo, que se aceitar como muito provável. No ano seguinte, depois de obtido o necessário consenso, o rei português envia para Castela Rui de Sande, sendo portador de uma carta para os monarcas espanhóis na qual se concretiza o pedido da mão da infanta. A resposta, segundo Rui de Pina, vem prontamente, sob a inequívoca forma de quem não deseja outra coisa:

« ...logo responderam sua final determinação ser não quererem dar ao príncipe por mulher a infanta D. Joana, mas a infanta D. Isabel, em cujo casamento os ditos reis [Isabel e Fernando] tinham já despedido os embaixadores do rei dos Romãos 2 que a Valhadolid a vieram requerer e assim el-rei de França e el-rei de Nápoles, com quem sobre este casamento da infanta D. Isabel houve muitos requerimentos e grandes pendências. » 3 

A preferência do enlace com o herdeiro da coroa portuguesa, face a uma proposta de casamento aparentemente mais prestigiante, é bem elucidativa das fortes razões políticas que estão em jogo. Esta versão dos acontecimentos é, de resto, plenamente confirmada na historiografia do país vizinho através de Hernando del Pulgar, cronista dos Reis Católicos, que, além de aludir à embaixada do rei dos Romãos, assinala que levaram como resposta que «a ynfanta doña Isabel su hija, les pluguiera mucho de lo otorgar luego, salvo por la pendençia que tenia de su matrimonio com otro principe».4

Por outro lado, é inevitável ter em conta que, numa época em que a elevada mortalidade infantil não poupava, sequer, os filhos das cabeças coroadas, a infanta castelhana podia, sem favor, ser vista como provável herdeira dos reinos de Castela e Aragão. De facto, já por essa altura, o único filho varão dos Reis Católicos, D. João, então com 11 anos, gozava de débil saúde: «ésta fue siempre motivo de preocupaciones para su ayo, Juan de Zapata, y para su maestro, Diego de Deza».5

Neste cenário, o facto de D. Isabel ocupar o segundo lugar na cadeia sucessória dá à perspectiva do enlace entre os dois príncipes contornos políticos muito mais significativos, colocando no horizonte a possibilidade da união dinástica. Mas mesmo não colocando a questão da união dinástica no horizonte, havia boas razões para que o casamento fosse desejado na corte castelhana: «atraer al monarca allí reinante [D. João II] para que dejara de prestar su tenaz apoyo á las pretensiones siempre vivas de doña Juana la Beltraneja, hacer desaparecer los recelos y restablecer la buena inteligencia entre las dos naciones, y quedar los


1 V. neste blogue O TRATADO DE ALCÁÇOVAS E OS DESCOBRIMENTOS. 2 Sacro Império Romano-Germânico. 3 PINA, Rui de, Crónica de D. João II, cap. XXXIII, p. 65. 4 Citado por MENDONÇA, Manuela, D. João II, p. 384. 5 SUÁREZ FERNANDEZ, Luis, Isabel I, Reina, p. 447.

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reyes de Castilla y Aragón desembarazados y libres de cuidado por aquella parte para atender con más desahogo á la guerra de Granada».6 De facto, está-se nas vésperas da ofensiva final contra o reino de Granada, e, portanto, o matrimónio dos dois príncipes constitui a garantia de que, da fronteira oeste, não virá qualquer ameaça que obrigue a lutar em duas frentes. Não admira, por conseguinte, que a descrição das derradeiras diligências diplomáticas que antecedem o casamento aponte, de forma expressiva, para um enlace calorosamente desejado em ambas as cortes. Garcia de Resende deixou-nos, a este propósito, um significante relato:

 

« E porque a esse tempo o Príncipe estava em quinze anos, e a Infanta não era casada, desejando ElRei acabar o dito casamento, mandou sobre isso a Castela por embaixadores Fernão da Silveira, Condel-mor e regedor da casa da Suplicação, e o doutor João Teixeira, Chanceler-mor destes reinos, e por secretário da embaixada Rui de Sande, que depois foi D. Rodrigo de Sande, que já sobre o dito casamento fora aos ditos Reis, e o deixara bem concertado. A qual embaixada foi muito honradamente com muitos fidalgos mui galantes, e ricamente ataviados, e partiu da cidade de Évora no começo do mês de Março. E a requerimento da Rainha de Castela levavam o Príncipe tirado, pelo natural, que era o mais formoso e gentil-homem que no mundo se sabia. »

 

El-Rei e a Rainha de Castela, e o Príncipe seu filho, a Princesa e Infantes, e toda a Corte estavam na cidade de Sevilha. [...] E os ditos embaixadores chegaram à cidade de Sevilha, e foram por todos os grandes da Corte do reino, e da cidade, recebidos com tanta honra e cerimónias quanto até então nunca foram recebidos embaixadores de nenhum Rei.

 

 «E assim lhe foram feitas outras muitas honras, e favores de honrados aposentamentos, presentes e visitações, em que claro se via o muito prazer e contentamento que, todos em geral e especial com sua ida tinham. O que muito mais viram nas próprias pessoas d'El-Rei e da Rainha, quando os embaixadores lhe deram sua embaixada, cuja substância era requererem e concordarem o dito casamento, que logo sem dúvida nem dilação alguma se concordou, e logo o dito Fernão da Silveira que para isso levava suficiente e bastante procuração, em nome do Príncipe por palavras de presente como manda a Santa Madre Igreja de Roma, recebeu a dita Princesa D. Isabel por sua mulher, por mão do CardeaI D. Pero Gonçalvez de Mendoça, perante El-Rei e a Rainha, o Príncipe e Infantas e suas irmãs, e muitos grandes senhores com muito grande solenidade domingo da Pascoela à noite, deste ano de mil quatrocentos e noventa, na qual noite e outros dias seguintes houve em Sevilha muito grandes e sumptuosas festas de momos e justas reais, em que El-Rei ajustou e foi mantedor, e assim ajustaram muitos e pessoas principais, e houve outras e muitas e grandes festas.7

 

 O casamento concretiza-se, assim, por procuração. D. João II, embora ausente, sabe, de antemão, a data do enlace e quer ser informado, em poucas horas, de que tudo se realizara como previsto. Para tal,

 

«ordenou escudeiros de sua casa postos a cavalo em paradas pelo caminho que com toda a pressa de um em outro lhe trouxessem, como trouxeram, a dita certidão logo à segundafeira seguinte, ainda de dia, e lha deram andando na praça da cidade de Évora a cavalo e com ele o príncipe seu filho e o duque 8 com muitos senhores, que depois de ouvida foi a ela logo respondido com gritas e alegrias de todos...».9

 

Os relatos que os cronistas fazem das diversas acções que conduziram ao enlace entre os dois príncipes, mesmo que possam pecar por algum exagero, não iludem uma realidade que factos posteriores haveriam de confirmar: o casamento do herdeiro da coroa constituía, de facto, uma peça decisiva no plano político global de D. João II. O prestígio internacional associado ao acontecimento tem, por esse motivo, que ser ampliado através de uma grandiosa manifestação pública de poder e

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6 LAFUENTE, Modesto, Historia General de España, T. Séptimo, p. 129. 7 RESENDE, Garcia de, Crónica d’El-Rei D. João II, Vol. 2.º, cap. CXIV, pp. 61-62. 8 D. Manuel, duque de Beja, futuro D. Manuel I. 9 PINA, Rui de, Idem, cap. XLIV, pp. 85-86. 3

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riqueza, de que todo o mundo cristão tenha notícia. O momento adequado para esse tipo de afirmação é, precisamente, a cerimónia de acolhimento da princesa D. Isabel, acto que, por conseguinte, implica cuidadosos preparativos e gastos sumptuosos, como refere, com grande minúcia, Rui de Pina:

 

«...e entre as muitas coisas que com prazer e consentimento do dito senhor rei acordaram foram algumas as seguintes, que para memória destas e exemplo de outras aqui tocarei: primeiramente elrei, por suas cartas e com palavras de grande confiança, amor e prazer, notificou o dito casamento a todos os prelados, senhores, fidalgos e cavaleiros principais de seus reinos e os convidou para as festas dele, encomendando a todos que consigo somente trouxessem os contínuos de suas casas e que de suas pessoas, casas, camas e mesas viessem em toda possível perfeição apercebidos, por tal que com honra e abastança eles pudessem agasalhar e festejar os senhores estrangeiros que às festas viessem; e a muitos escreveu e encomendou que trouxessem suas mulheres, como trouxeram, mui ricamente aparelhadas. Enviou com grande diligência e muita abastança de dinheiro seus mensageiros por mar e por terra, em levante e em poente, não somente a comprar os arreios, cumprimentos e coisas que para tais festas eram necessárias, mas ainda, para maior perfeição delas, enviou a notificar a todas as gentes e nações do mundo que poderiam trazer para elas ou enviar suas jóias, sedas, brocados, arreios, panos e coisas. E por decreto e determinação geral os franqueou dos direitos que das ditas coisas houvessem de pagar e pudessem sem pena tirar em ouro e prata o preço delas, e assim se cumpria. Enviou logo uma caravela bem armada em Itália em que mandou feitores com grande soma de ouro, donde por compra trouxeram muitos e mui ricos brocados, sedas, pedraria e outros muitos cumprimentos para as festas, assim para arreios e vestidos das pessoas reais e para salas e câmaras como para toda a corte». 10

 

 Quando, por fim, o adiantado dos preparativos o permite, ajusta-se com a corte castelhana a data da entrada da princesa em Portugal. Para acontecimento de tão elevado significado político, ordena D. João II que seja o duque de Beja, D. Manuel, acompanhado de outros fidalgos e prelados, a receber D. Isabel na fronteira. Após uma pernoita em Elvas, a 22 de Novembro de 1490, D. Isabel prossegue a viagem para Évora. D. João II e D. Afonso – vivendo, cada um à sua maneira, as emoções daquele decisivo evento – vão ao seu encontro a Estremoz.

 

E chegaram a Estremoz à hora a que a princesa entrava, e foram descer a casa do duque, com que aquela noite pousaram; e dali foi logo a princesa avisada de que eles a queriam logo ir ver, que por isso ceou apressadamente, e ela, com suas chamas e casa, se vestiu como cumpria. E, como foi tempo, el-rei foi para ela, que em pé a ele e ao príncipe veio esperar no topo de uma escada; e em elrei sendo em cima, ela se pôs em joelhos para lhe beijar as mãos, mas el-rei, com muita cortesia e muita mais alegria e amor, lhas não quis dar e a levantou e deu lugar ao príncipe, que, ambos com os joelhos mui inclinados, um ao outro se abraçaram, e, feito isto, el-rei, posto à mão esquerda da princesa, e o príncipe à mão direita, se sentaram no estrado, onde el-rei, tendo a princesa por uma mão e os olhos e coração em ambos dois, lhes disse com muita graça, discrição e amor as primeiras palavras que cabiam na primeira vista de coisa em que tanta glória e contentamento recebia, e que não menos a procurara que desejara. E a princesa, que em tudo era espelho de discrição, prudência e honestidade, lhe respondeu de maneira que acerca de el-rei sua real presença naquela hora não minguou em nada sua excelente fama passada. Acabadas estas falas, el-rei houve por bem que, além da solenidade do recebimento que por procuração do príncipe se fizera já em Sevilha, ele em pessoa a tornasse ali a receber por sua mulher, como logo recebeu nas mãos de D. Jorge da Costa, arcebispo de Braga, segundo forma e mandamento da Santa Igreja de Roma, e sobre isso houve aquela noite muitas danças e festas, acabadas as quais se despediram e recolheram.11

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10 Ibidem, cap. XLIV, pp. 86-87. 11 Ibidem, cap. XLVI, p. 95. 4

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A triunfal recepção à princesa, na cidade de Évora, concretiza-se num domingo, dia 27 de Novembro de 1490. O cortejo detém-se na porta de Avis, onde Cataldo Parísio Siculo 12, encarregado da oração de boas-vindas, sublinha, uma vez mais, o momento único que então se vive, afirmando:

 

«Nunca a gente lusitana, mais antiga do que qualquer outra, e esta nobilíssima cidade tiveram no espírito tão grande contentamento como neste dia [...] que coisa maior, mais nobre, mais grandiosa, mais alta, mais preciosa e enfim mais santa do que a vossa muito desejada vinda podia acontecer em todo o reino? Certamente nada.13 »

 

D. João II não podia estar mais feliz. Para além da garantia da paz, o enlace entre os dois príncipes ia lançar as bases de uma nova política nas relações entre Portugal e Castela, ao mesmo tempo que se garantia a manutenção da tradicional amizade com o reino de Aragão – potência naval mediterrânica cujo conhecimento do próximo oriente poderia ser de elevada utilidade para a realização do Plano da Índia. À política de separação de interesses, consagrada no Tratado de Alcáçovas, iria seguir-se, se tudo corresse bem, uma política de união de esforços. E, dessa união, resultaria o poder em recursos materiais e humanos que D. João II entenderia requerer a grande empresa da Índia.

 

A felicidade de D. João II não duraria um ano. D. Afonso morreria no seguimento de um acidente equestre. Mas aquele tratado matrimonial era tão fundamental para as duas cortes ibéricas que seria repetido, pouco depois da subida ao trono de D. Manuel I, mediante o seu casamento com a viúva do primo. Assim o impunha a ambição de chegar à Índia.

David Martelo – Dezembro de 2020

 

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12 Humanista siciliano que, a convite de D. João II, veio para Portugal, cerca de 1485, para ser mestre de D. Jorge, filho bastardo do rei. 13 SICULO, Cataldo P., Duas Orações, p. 51.

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