sexta-feira, 11 de junho de 2021

Rever, reviver


Mas, que seja por saudosismo ou por impulso de amor pátrio que Jaime Nogueira Pinto trouxe à baila tantas referências literárias, em síntese brilhante, embora, naturalmente, incompleta, talvez elas já não atinjam as gerações dos jovens, progressivamente dispersos em interesses que uma tecnologia mágica eleva progressivamente a patamares de uma outra apetência - visual, auditiva ou digital - de apreensão mais imediata que a que provém da concentração na leitura. Mas sabe bem acompanhar a argumentação de “carinho” pátrio, de JNP, que merece a atenção de todos nós. Assim fosse.

A Língua Portuguesa não é só a nossa pátria /premium

É uma língua grande e plástica e plural e aberta como toda a vida que vale a pena ser vivida. Vive nas palavras dos escritores e até nas dos que são um bocado disso tudo ou dos que não são nada disso.

JAIME NOGUEIRA PINTO           OBSERVADOR, 08 mai 2020

A língua portuguesa é uma língua viva no tempo e no espaço. Uma língua que um povo pequeno e pobre mas aventureiro levou pelo mundo fora. E que tem em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, na Guiné, em S. Tomé, em Timor, séculos de criadores, de inventores, de inovadores, no romance, na poesia, na música, no teatro, na vida de todos os dias. É uma língua grande e plástica e plural e aberta como toda a vida que vale a pena ser vivida. Vive nas palavras dos escritores – poetas, novelistas, cronistas, historiadores – e até nas daqueles que são um bocado disso tudo ou até dos que não são nada disso.

Quando penso na língua portuguesa, viajo no tempo até aos poetas dos cancioneiros d’Amor e d’Amigo, que a usaram para bem dizer, e passo pelos que a usaram com Escárnio para Mal Dizer. Penso em Fernão Lopes, em D. Duarte, em Zurara, em João de Barros, em Diogo de Couto que com ela fizera a crónica dos nossos dias de então.

Depois demoro-me, claro, em Camões, sempre dividido entre o épico e o lírico. Entre o contador dos reis, dos heróis e do povo que fizeram Portugal, desde o princípio até pouco antes do primeiro fim de Portugal: de Afonso Henriques, o “príncipe Afonso”, que “aparelhava o Lusitano exército ditoso” em Ourique, até D. Sebastião, “bem nascida segurança da lusitana antiga liberdade; Maravilha fatal da nossa idade”, que foi morrer numa tarde de Agosto, romântica e desastradamente, numa expedição que tinha um sentido estratégico e político, mas que foi no terreno muito mal conduzida. O Camões épico, da paixão e da razão de Estado do episódio da “linda Inês” desassossegada e “posta em (derradeiro) sossego” pelos mensageiros do rei e da Morte. Ou o Camões lírico, nostálgico dos rios da Babilónia e vizinho das águas do Mondego a dar expressão ao amor.

Não haveria também língua portuguesa sem a sátira de Gil Vicente, sem o romance de Bernardino, sem a poesia de Sá de Miranda. E sem Damião de Góis, humanista por excelência. E as histórias da Expansão não seriam as mesmas sem o “burlador” Fernão Mendes Pinto. E mais europeu, D. Francisco Manuel de Melo, nascido no tempo dos Filipes, um polymetis, como Ulisses – militar, dramaturgo, cronista político, escritor –, e, como escritor, percorrendo vários géneros, da História a Teatro, e no teatro, encarnando vários estilos, do satírico ao moralista. Grande figura literária do barroco peninsular.

De Padre Vieira, não se pode dizer mais do que Pessoa disse dele. Ou talvez possa porque o “imperador da língua portuguesa” foi sacerdote jesuíta, missionário no Brasil, conselheiro estratégico do Rei Restaurador, embaixador itinerante da Restauração, amigo das grandes figuras da Europa de Seiscentos, até da rainha Cristina da Suécia. E foi também perseguido por amor do Rei e do Reino quando, percebendo que Portugal precisava de imaginação, quis fazer voltar os cristãos novos com os seus fundos para criar uma companhia majestática portuguesa. A Inquisição não gostou e D. João IV não ousou contrariá-la. E de tudo isto, de toda esta longuíssima vida no tempo, deixou-nos, em palavras portuguesas, memórias, sermões e cartas admiráveis.

O século XVIII, o do absolutismo monárquico, clerical e magnânimo com D. João V, secular e brutal com o Marquês, piedoso e nem sequer revanchista com a “Viralhada” de D. Maria I, foi académico. Com Academias de História e Academias de Poesia, mas academias. Mais uns estrangeirados e iluminados – Ribeiro Sanches, Alexandre de Gusmão. Nunca me impressionaram académicos e arcádicos, e no fim do século, Bocage, com o seu talento marginal, veio redimi-los como uma poesia em que nos revemos melhor, pelas melhores e piores razões. Depois, a fazer a ponte para o século XIX, José Agostinho de Macedo, genial polemista e caceteiro reaccionário que fará escola com marca ideológica, embora os discípulos sejam, como quase sempre, fracos imitadores do Mestre.

No século XIX vem o romantismo com um par de combatentes liberais, Herculano e Garrett. Herculano tem aquela linha de idealismo kantiano, mas Eurico o Presbítero é um bom romance histórico; como A Dama Pé-de-Cabra é um conto terrorífico, digno das melhores antologias do Gótico. Garrett, nos antípodas do estilo de vida do ascético Herculano, com uma pose de dandy literário inglês, deixou também a sua marca nessa primeira metade do século XIX – na poesia e na narrativa.

Mas o grande escritor romântico do século XIX português é Camilo Castelo Branco. Genial, pelo seu uso – e às vezes pelo seu abuso – da língua portuguesa, pela sua ressurreição de palavras e de expressões, pela construção literariamente incorrecta, pela copiosa titulação dos romances. É romântico ao extremo – nas Novelas do Minho ou no Amor de Perdição ­­– mas é também é realista, na Brasileira de Prazins. E é um admirável conhecedor e retratista do Portugal a norte do Mondego, do Portugal profundo. E depois Eça, José Maria Eça de Queirós. No meu tempo, no tempo em que os miúdos, os adolescentes, liam livros e discutiam escritores (que é quase como dizer “no tempo em que os animais falavam”) a competição entre Camilo e Eça era um tema de conversa permanente. Quem era o melhor, de quem mais gostávamos? De Camilo ou de Eça? São sinais diferentes, pessoas diferentes, diferentes sensibilidades, línguas diferentes na mesma língua. Eça era um cosmopolita, tinha viajado pela Europa, tinha ido ao Egipto, tinha estado em Cuba. Apanhara o mundo da Europa imperial, andara pelos clubes chiques de Paris e de Londres e conhecia bem Lisboa e a sociedade portuguesa. Para o bem e para o mal, retratou, Eça ridicularizou e satirizou personagens que ainda hoje por aí andam: os Pachecos, os Dâmasos, os Conselheiros Acácios, até os Artures Corvelos, como o da Capital, um romance póstumo, injustamente marginalizado. Por vezes, com alguma dificuldade, ainda apanhamos um Jacinto.

O século XX faz-se da extraordinária geração do Orfeu e, antes e acima de todos, Fernando Pessoa. Como é que, tendo morrido tão novo, escreveu com genialidade sobre coisas tão diferentes. Ao dar-nos um retrato de Portugal e dos heróis da História de Portugal na Mensagem deixou-nos um novo Portugal, e na poesia completa, em nome próprio ou desdobrado em heterónimos, consegue quase sempre surpreender-nos e esmagar-nos.

Camilo e Eça apanharam os indivíduos, as pessoas, os portugueses. Pessoa e Camões perceberam e ergueram de novo o conjunto orgânico de que se faz Portugal, o povo, a nação portuguesa, na matéria e no espírito. E há na geração do Orfeu outros geniais, como Almada, o grande “ilustrador”, como gostava de se definir.

O século XX tem depois uma geração de escritores que trabalharam na língua a ressurreição e o registo dos vocábulos portugueses: Aquilino é um Camilo na província, com a tradição do campo; Ferreira de Castro, o neo-realista; Tomaz de Figueiredo, um Aquilino monárquico, católico e de direita; Joaquim Paço d’Arcos, que apanhou muito bem a sociedade de Lisboa; Agustina, que fez isso para o Porto e para o Norte; e Vitorino Nemésio com Mau Tempo no Canal, um grande romance português. E os poetas O’Neil, Ruy Bello, Sophia de Mello Breyner; e os contemporâneos que, confesso, não conheço tão bem, Herberto Helder, na poesia, Lobo Antunes, no romance e o Saramago do Ensaio Sobre a Cegueira e do Ano da Morte de Ricardo Reis.

E o Brasil, que é todo um outro infindável continente nesta nossa mesma língua e que, entre mortos e vivos, tem muitos dos maiores astros da Língua Portuguesa: desde Machado de Assis e Euclides da Cunha (Os Sertões é uma narrativa épica única, melhor que o Vargas Llosa de La Guerra del Fin del Mundo), José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Adonias Filho, João Guimarães Rosa, Eurico Veríssimo, Josué Montello, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, Nélida Piñon e os poetas da música, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Caetano Veloso…

E Angola com os seus criadores desde o “tempo colonial” aos dias de hoje: Castro Soromenho, Maria Archer, Tomás Vieira da Cruz, Manuel Rui, Pepetela, João Melo, José Eduardo Agualusa, Ondjaki, Rui Duarte de Carvalho, Sousa Jamba, tantos mundos, tanta gente. E Moçambique com José Craveirinha, Mia Couto, Nelson Saúte. Ou as ilhas: Baltazar Lopes, Germano de Almeida, Manuel Lopes, Jorge Barbosa, Corsino Fortes, Onésimo Silveira, Alda do Espírito Santo, Francisco José Tenreiro.

E todo este mundo de língua portuguesa, uma língua esforçada, densa, aventurosa, inventiva, criativa. Uma língua capaz de se adaptar à modernidade sem complexos e que é também e sobretudo um grande tesouro da identidade e das nações e dos povos que a falam e escrevem.

LÍNGUA PORTUGUESA  PAÍS  A SEXTA COLUNA  CRÓNICA  OBSERVADOR  JAIME NOGUEIRA PINTO

COMENTÁRIOS:

Maria Melo: Esquecer Júlio Dinis e Cesário Verde... não deveria! Poderia ter abordado a questão do Acordo Ortográfico. Na verdade, a língua é comum, mas com divergências, adequadas à realidade de cada país, de cada comunidade falante. É normal! A diversidade é enriquecedora. Eu li autores brasileiros quando era bastante nova, como Jorge Amado, e convivi com brasileiros. Sempre achei interessante essa diversidade. A obrigação de respeitar um acordo imposto é ridícula e castradora.         Antes pelo contrário: Tudo isto parte de um pressuposto que afinal é divisivo em vez de ser abrangente. A ideia de que existe "uma" língua portuguesa que tenha de ser fixada por um acordo. O que há é uma comunidade de línguas portuguesas, em que todos nos entendemos devido ao passado comum, que nos une através da língua, e das suas variantes. Obrigar os portugueses a tirar o "p" em "excepção", ou os brasileiros a abdicarem do trema em "qüinqüenal" não nos une: divide-nos!!!          Joaquim Rodrigues: Estes mentecaptos estão à espera de quê para enterrarem de vez o DESacordo ortográfico, que já morreu há muito, está putrefacto e cheira mal?          Mario Areias: Não podia estarmais de acordo consigo. Agora temos de nos habituar a textos mal escritos e com erros ortográficos, como a cada vez mais estrangeirismos.          Utilizador Removido: Uma das razões que mais dificultam a correcção do erro óbvio que é o AO, tornando-o mais adequado à realidade, é precisamente o fundamentalismo puritano de alguns, nomeadamente gente como JNP, cujo perfil está absolutamente colado a saudosismos inaceitáveis! Maria Nunes > Utilizador Removido: Tomaras tu chegar aos calcanhares do JNP.           Manuel Magalhães: Sempre um enorme prazer em ler as crónicas de Jaime Nogueira Pinto, pela sua erudição, pelo sentimento de nos sentirmos portugueses coisas tão em desuso nos tempos que correm e que ao lermo-lo percebemos a falta que nos fazem... bem hajas Jaime!!!Antes pelo contrário > Antes pelo contrário: E em manada: nenhum raciocina. A única coisa que fazem é repetir sempre os mesmos slogans. "Quem é contra o acordo é retrógrado e escreve Pharmacia"... Mas continuar a acreditar nas teorias de um fóssil que morreu várias décadas antes de se ter passado a escrever "farmácia" (Karl Marx), já não é ser retrógrado... Além disso o pseudo-acordo (porque nunca ninguém esteve de acordo, a não ser os que o escreveram) tem 30 anos e já devia estar arrumado na prateleira das "utopias" (subsecção "ditaduras transnacionais"), juntamente com o Marx, o Hitler, e o Euro. Há uns dez anos, num dia de grande calor, parei para almoçar em Ponte de Sôr, num restaurante atascado que tinha uma esplanada. Veio uma empregada loira, de cabelo frisado, com uma bata azul, e eu disse-lhe: - "Boa tarde, queria que me trouxesse já, se fizer favor, uma Água das Pedras fresca..." E ela respondeu-me, com o melhor sotaque brasileiro: - "Dá pédra nã sei si tein, axu qui só tein dum castelo cualqué. Mas eu vou vê..." Sem dúvida, estava a falar português. Da terra dela, obviamente. O que significa que o acordo ortográfico é sem dúvida necessário, mas para eles escreverem a língua como a falam. Nós não precisamos dele.         vitor guerra: Tenho pudor em analisar questões da língua portuguesa, quando tem valor jurídico um Acordo Ortográfico ridículo, que só os tugas levam a sério, num universo de quase 350 milhões           Maria Nunes: Excelente. Admirável tributo à Língua Portuguesa.          Antes pelo contrário: Tudo isso é verdade, mas continuo a não ver nenhuma razão para nós falarmos e escrevermos de outra maneira que não seja a nossa. Uma língua viva, evolui, não fica estática. Mas evolui com a vida e não por decreto. Por isso é que a língua falada e escrita no Brasil é diferente da que se fala e escreve em Portugal Continental. E foi por isso que o latim, originário de Itália, acabou por ser falado em quase todo o mundo conhecido na altura, mas ao ser usado por outros povos, foi moldado por cada um deles em função das necessidades e realidades, até se ter transformado numa série de línguas "latinas", entre elas o Português. É por isso que a língua falada por exemplo em Angola, não difere substancialmente do português de Portugal, mas a língua usada pelos brasileiros, não só tem muitíssimas variantes consoante as regiões e os estratos sociais, mas tem vindo a afastar-se cada vez mais da nossa. O português falado e escrito pelas classes cultas brasileiras é muito próximo do nosso, pois segue as regras publicadas pelas respectivas Academias, que são praticamente idênticas. Porém o português falado e usado pela maior parte da população sem educação humanística é de facto outra língua, pois tem diferenças em relação ao português por vezes maiores do que as que existem entre a nossa língua e o galego ou o castelhano!!! O que aliás é reconhecido por muitos linguistas brasileiros, que solicitam o reconhecimento do "brasileiro" enquanto língua autónoma. O que eu subscrevo!!! Aliás basta ouvir o Moro e o Bolsonaro. Eles "falam algo" parecido, mas na realidade são línguas diferentes.           R R > Antes pelo contrário: Caro Antes pelo contrário, um brasileiro culto muito provavelmente não consegue distinguir um verbo transitivo directo dum verbo transitivo indirecto. Na fala, provavelmente dirá "eu respondi pra ele" e na escrita, com muito esforço, escreverá "eu respondi-o", em vez de "eu respondi-lhe". Questiono-me se em Portugal se pensa no efeito que a exposição às legendas e dobragens brasileiras poderá provocar nas crianças portuguesas. Afinal, dizem-lhes que aquilo é português. A verdade é que a língua portuguesa está perdida no Brasil: está quebrada, partida de todas as formas e feitios possíveis e imagináveis e nada poderá restaurá-la. Na minha humilde opinião, insistir no mito de que no Brasil se fala português irá levar à destruição da língua portuguesa em Portugal e nos PALOP, devido ao peso demográfico do Brasil.          Antes pelo contrárioR R: Obrigado, tem toda a razão! Aliás, tudo isto parte de um pressuposto que afinal é divisivo em vez de ser abrangente. A ideia de que existe "uma" língua portuguesa que tenha de ser fixada por um acordo. O que há é uma comunidade de línguas portuguesas, em que todos nos entendemos devido ao passado comum, que nos une através da língua e das suas variantes. Obrigar os portugueses a tirar o "p" em "excepção", ou os brasileiros a abdicarem do trema em "qüinqüenal" não nos une: divide-nos!!!           Manuel Barros: Falhou o Luandino Vieira! É pena, não o merece

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