Por ignorância ou por ausência de prática
meditativa, dificilmente me deixo comover pelo pensamento abstracto, e muito
menos por esse da prática oriental, de espiritualidade a atingir o nirvana extático
da superação do físico, nas suas contingências de misérias e gozos a que,
humanos e ignorantes que somos, nos habituámos. Por isso duvido que as leituras
referidas por Paulo Tunhas me pudessem
alguma vez comover, decididamente presa à magia das palavras com sentido, ainda
que expressas de forma barroca - como as do seguinte poema de Francisco de
Vasconcelos sobre a “fragilidade da vida humana”, de uma extrema
riqueza imagística, facilmente perceptível, e sublinhando o absurdo
existencial:
À Fragilidade da Vida Humana
Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.
Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse estio em vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave em doce agrado.
Se a nau, o sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,
Olha, cego imortal, e considera
Que és rosa, primavera, sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.
Por isso, me quadram melhor os quadros da
história e política contemporâneas a que Paulo
Tunhas nos habituou, embora sendo qualquer dos seus temas contributo prezado para o colmatar da nossa ignorância em todos esses domínios.
Paisagem: rios e montanhas /premium
A vida na montanha e nos rios tem os seus perigos. Mas às vezes é
preciso correr riscos, mesmo imaginários. A felicidade e o risco andam de mãos
dadas.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 17 jun
2021
Subi
à montanha, para respirar um pouco de ar puro. Não subi realmente, subi em
imaginação. Para mal dos meus pecados, estou pregado ao Porto. Mas a imaginação
sempre pode fazer alguma coisa. Neste caso, ela foi-me inspirada pela sua velha
ajudante, e, por vezes, inimiga, a memória. Mais precisamente, pela memória de
um livro lido na adolescência, que, sem nunca verdadeiramente o ter relido,
sempre me acompanhou. Não é um livro imenso, mas é um livro com qualidades. E
deve ter sido um livro certo lido na altura certa.
O
seu autor é o escritor beat
Jack Kerouac e chama-se The
Dharma Bums (na tradução portuguesa, a que li, Os
vagabundos da verdade). A parte de
que me lembro melhor é aquela em que Ray
Smith (o próprio Kerouac) vive
solitário, durante um Verão, como guarda florestal numa montanha dos Estados
Unidos. Bebe e escreve poemas
influenciados pelo budismo zen,
a versão
japonesa do budismo chan dos chineses,
ele mesmo, como se sabe, originado
pelo budismo indiano. A influência budista vem-lhe do seu amigo Japhy
Ryder. Japhy Ryder
não é senão o grande poeta beat Gary Snyder, igualmente
tradutor de uma das jóias da poesia clássica chinesa, Montanha Fria, de Han Shan, o lendário poeta chinês do século IX (Han shan significa
precisamente, em chinês, “montanha fria”, o nome do poeta confunde-se com o do
objecto da sua poesia). A Montanha
Fria descreve a vida de um eremita na montanha, com as suas dificuldades e a
sua felicidade. Nada tem
a ver com a célebre Ascensão ao
Monte Ventoso, de Petrarca,
que é, antes de tudo, a narração de um processo espiritual – e, por
isso, o seu valor em nada fica diminuído pelo facto de alguma erudição
contemporânea notar que é pouco verosímil que alguma vez Petrarca tenha de
facto procedido à ascensão física do monte. Na Montanha Fria há, de forma muito vivida, frio e pedras que
servem de almofadas à cabeça e toda a espécie de problemas do dia-a-dia – e a
felicidade que acompanha tudo isso.
Não é surpreendente que The Dharma Bums seja dedicado a Han Shan.
A
mesma espécie de felicidade que a memória me guardou de The Dharma Bums encontrei-a
em traduções de uma grande antologia da poesia da dinastia Tang (618-907),
organizada originalmente na China no século XVIII. Os poetas
são muitos e cada um, sem dúvida, tem a sua maneira particular. Mas sente-se em
quase todos eles o perfume dos grandes espaços e das longas viagens (a sua boa
recepção pela poesia americana deve-se em parte a isso). Montanhas e rios estão
em todo o lado, e não é acaso que a palavra chinesa para “paisagem”, shanshui,
se tenha vindo a construir sobre a reunião de montanhas e rios. Nesses poemas, muitas vezes, fala-se de
encontros e despedidas de velhos amigos de cabelos brancos, em tempos de paz e
em tempos de guerra. Encontram-se bebendo vinho e despedem-se, como se fosse a
última vez, bebendo vinho.
E há, é claro, as palavras: nuvens
brancas, lua, rios, montanhas, gansos selvagens, flores, árvores, Primavera e
outras estações do ano. Nos poetas,
as palavras comuns são transformadas, digamos assim, em objectos segundos. Elas
mantêm, sem dúvida, uma ligação com o sentido comum. Quando se lê “rio”, há
obviamente a referência ao que normalmente entendemos por “rio”, mas a palavra
adquire um significado cada vez próprio em cada poeta, que não devemos
confundir com a sua transformação em símbolo nem com o resultado de associações
(subjectivas) ou de implicações (objectivas). Trata-se
antes de uma operação poética que visa permitir a contemplação das palavras num
plano que o seu uso corrente não permite, a criação de um objecto de
contemplação. O que vale para cada poeta individualmente, vale também para as
tradições poéticas, e é o caso da tradição poética da dinastia Tang.
Claro que não saber chinês é um
obstáculo ao maior prazer da leitura. Tanto mais que, como notam os
especialistas, a gramática da poesia clássica chinesa é aberta e mínima,
propiciando várias possibilidades de tradução. Há, no entanto, uma solução para compensar um pouco
essa falha original: é ler o maior
número possível de traduções disponíveis em línguas que, melhor ou pior, se
dominem, a começar pelas versões quase inaugurais de Ezra Pound, Arthur Walley
e Amy Lowell. O chamado “imagismo” foi quase feito para receber esta poesia.
Alguma coisa dessa experiência nos encaminhará para a verdade poética, pelo
menos idealmente.
Três
poetas sobressaem nessa Antologia: Tu
Fu, Wang Wei e Li Po.
Curiosamente, cada um deles encarna uma das três grandes correntes
filosóficas da China: o confucianismo, o budismo chan e o taoísmo, respectivamente. De uma certa maneira, tanto o confucionismo como o
budismo da dinastia Tang apresentam uma forte influência taoista, como se pode
ver em Tu Fu e Wang Wei, se bem que ela não seja tão explícita como em Li Po.
Mas talvez não se deva dar uma tão grande importância a isso. Por mais
apaixonante que seja a grande filosofia chinesa, e é apaixonante, ela não
alcança o elevado nível de certas escolas, nomeadamente budistas, da filosofia
indiana, cujas discussões no plano da filosofia da mente, da epistemologia, da
lógica e da metafísica podem perfeitamente dialogar com a filosofia
contemporânea.
Em
contrapartida, a poesia e a pintura chinesas abrem-nos um mundo
inteiro, fundado em categorias inteiramente diversas das nossas. No outro dia, li um crítico e tradutor de poesia
chinesa, David Hinton, que nota algo de fundamental: o modo
como a presença e a ausência convivem harmoniosamente na poesia e na pintura
clássicas chinesas. A
presença, o mundo das mil coisas, aparece na poesia como emergindo de uma
ausência geradora à qual pertence e harmoniza-se com esta. Esta participa
daquela e aquele participa desta. É algo que se sente palpavelmente na
Antologia Tang. E não menos na pintura: é
ver como as grandes montanhas são pintadas, massas enormes delicadamente
traçadas que subtilmente se dissolvem no nada. Na nossa tradição – fico-me pela poesia -, reclama-se a
presença absoluta e incondicional: a ausência representa o insuportável. Leia-se
a poesia de amor, ou as discussões filosóficas do amor, que se constroem por
inteiro na exigência da presença e na insuportável dor da ausência.
Aparentemente, nada menos chinês. Nada menos próximo à “reticência emotiva” da
poesia chinesa, para falar como o grande sinólogo A. C. Graham.
Dos
três poetas que citei, o mais facilmente amável é Li Po.
De facto, é extraordinariamente amável e perfeitamente milagroso. Só
conhecia dele os poemas adaptados
por Mahler na Canção da Terra.
Mas as imagens não tinham formado a minha imaginação – a música toma (contra
a sua vontade?) conta de tudo. Nos últimos tempos, na minha montanha
imaginária, tenho-o lido sem parar e as imagens vieram para ficar. Há poemas
sobre as raparigas que se escondem entre as flores de lótus, simulando pudor e
rindo-se de quem passa e poemas sobre desastres de guerra em que os cavalos, já
sem cavaleiro, relincham com terror dirigindo o seu olhar ao céu e os abutres
retiram as entranhas dos soldados mortos e dependuram-nas nos ramos das
árvores. E há um dos poemas que têm por título Bebendo sozinho sob a lua (suponho
que são quatro) que já li pelo menos em oito versões diferentes, e algo me diz
que não vou ficar por aqui.
Pus-me
mesmo a imaginar uma versão do poema que integrasse a morte de Li Po. A
lenda diz que ele morreu afogado saltando da sua barca num rio para tentar
abraçar o reflexo da lua. O mais provável, é claro, é que tenha caído
bêbado da barca. De resto, num dos vários poemas que o seu grande amigo Tu Fu,
também ele um grande bebedor, sobre ele escreveu, ele aparece-lhe em sonhos,
lamentando-se que os rios e os lagos são feitos de ventos e vagas e que a barca
se pode facilmente afundar sob o seu ímpeto. De qualquer maneira, se
quisermos manter uma versão poética da sua morte, talvez que o melhor seja
adaptar um poema do próprio em que ele fala de macacos brancos no Outono que
saltam para o rio para na água beberem a lua. Não sei porquê, mas beber
a lua no rio parece-me melhor que abraçar a lua.
A
versão selvagem e muito infiel do poema de Li Po seria assim: Sentei-me,
sozinho, na montanha, junto às flores. Peguei no jarro. Olhei para a lua. A lua
não bebe. Olhei para a minha sombra. A minha sombra não bebe. Bebi. Bebi e bebi
com todos os que comigo não estavam. A minha sombra agitou-se. Que maneiras
estranhas tem a minha sombra! A lua agitou-se. Que modos esquisitos tem a lua!
Olhei para o rio. O rio era silencioso e propício. A minha sombra caminhava na
sua direcção. Segui-a. No centro do rio estava, imóvel, a lua. Aproximei-me
dela para a beber na água. Afoguei-me. Ó minha sombra, conhecias o meu caminho
melhor do que eu! Já viajaste por todo o rio das estrelas. E eu também, sem o
saber. Agora nada nos distingue.
A vida na montanha e nos rios tem os
seus perigos. Kerouac, de
resto, num outro livro seu, Desolation Angels, faz um retrato menos feliz da
sua temporada como guarda florestal. Mas às vezes é preciso correr riscos,
mesmo imaginários. A felicidade e o risco andam de mãos dadas. E as
imagens de The Dharma Bums continuam, na minha cabeça, a viver como uma memória
feliz. Sobretudo, os trezentos poemas da Antologia Tang, revelando um universo
que, na minha ignorância, inteiramente desconhecia, recordam algo de essencial: a poesia
cresce de mil maneiras e cada maneira verdadeiramente nova alarga o nosso
entendimento do que ela é e pode ser. O que, parecendo que não, ajuda a dar um
lugar mais pequenino às desgraças do dia-a-dia, que tendem a aumentar,
deixando-nos “tão profundamente divididos, tão angustiantemente separados” (Li
Po), mostrando a feia carantonha dos tempos, que tudo nos assusta, e dando-nos
a ver a beleza humana da grandeza.
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