Talvez uma nova era se prepare:
(«MÉDIO
ORIENTE Yair Lapid: “Israel pode
entrar numa nova era”:
«O
“governo de mudança” começa a tomar forma. Mas a saída de cena de Netanyahu
após 12 anos ainda não é uma certeza.
PÚBLICO, 31 de Maio de 2021…..»)
Veremos a Continuação….
ANÁLISE MÉDIO ORIENTE
O lado negro de Israel no espelho do Ocidente
PÚBLICO, 31 de
Maio de 2021
1.
Ao contrário de muitos outros problemas internacionais, que enfrentam um
desconhecimento e a indiferença generalizados da opinião pública ocidental, o conflito israelo-palestiniano excita
a imaginação e mobiliza fortes paixões. Muitos são os que têm uma opinião forte
sobre o conflito, tomando partido a favor ou contra uma das partes em
confronto. O que torna o conflito israelo-palestiniano tão peculiar na
política internacional contemporânea merece ser aqui reconsiderado. Três
coisas podem ser apontadas para lhe conferir
essa singularidade. A primeira
está ligada ao lugar que
os judeus ocupam na cultura ocidental, em particular ao papel do Judaísmo na
origem do cristianismo. A segunda decorre
da ideia de Estado-nação como tipo ideal de comunidade política humana, que
surgiu na Europa do século XIX. No caso dos judeus, essa
ideia originou a criação de um movimento
político nacionalista — o sionismo —,
impulsionado por Theodor Herzl e
outros, que tinha por objectivo criar um
Estado-nação para o povo judeu. A
terceira resulta
das perseguições aos judeus e Holocausto na Alemanha nazi dos anos 1940 e da
posterior criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada no
âmbito das Nações Unidas em 1948.
2. A criação do Estado de Israel em 1948, no antigo território da Palestina sob mandato britânico da Sociedade das Nações (SdN),
foi resultado da conjugação de várias
circunstâncias: (i) das referidas
ideias ocidentais sobre o Estado-nação aplicadas ao caso judeu — um povo ou
nação tem direito a ter um Estado soberano; (ii) da necessidade de resolver o
problema dos milhares de judeus refugiados errantes na Europa do pós II Guerra
Mundial; (iii) e do papel da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU)
que emergiu como a referência máxima da legalidade e legitimidade internacional
no pós-guerra. Aí foi
aprovado um plano de partilha da Palestina —
Resolução nº 181 de 29 de Novembro de 1947 Assembleia Geral. A resolução foi aceite pelos judeus e contestada pelos árabes
originando a primeira guerra israelo-árabe de 1948. Um aspecto político relevante a notar é que a
resolução teve uma clara maioria de votos a favor num contexto onde os Estados
ocidentais eram maioritários. Apesar
do ambiente de Guerra Fria já estar instalado entre os dois grandes vencedores
da II Guerra Mundial — EUA e União Soviética —, ambos
apoiaram a divisão da Palestina e a formação de um Estado judaico, embora por
motivos diferentes.
3. Um dos aspectos mais curiosos do
conflito israelo-palestiniano é o da forma como, no Ocidente, os apoios
intelectuais e políticos, mas também as críticas, sobretudo as mais cáusticas e
deslegitimadoras, têm variado ao longo do tempo. Na cultura ocidental, religiosa ou
secular, a relação com os judeus e, por arrastamento, com o Estado de Israel, é
paradoxal, oscilando entre extremos de ódio-admiração. O Ocidente não seria o Ocidente — pelo menos tal como
o conhecemos hoje —, sem a influência religiosa judaica que interage com o
cristianismo na sua origem.
Ao mesmo tempo, a negação pelos judeus de Cristo como o Messias
colocou-os em rota de colisão com o Ocidente cristão e alvo de perseguições
religiosas. Mas o
Ocidente também não seria o Ocidente secular de hoje sem um pensador do
comunismo como Karl Marx, com origens familiares judaicas. A influência que
essa ascendência terá tido na sua ideologia é matéria controversa. Todavia, a
ideia — usualmente ligada às teorias da conspiração — de que o comunismo foi
uma ideologia criada por judeus como vingança contra as sociedades cristãs, ou
islâmicas, fez o seu caminho. Hoje é
bastante popular no mundo islâmico, sobretudo entre os islamistas radicais
(Irmandade Muçulmana, Hamas, etc.).
Mas, se, para uns, no Ocidente e fora dele, o arqui-inimigo
ideológico é o comunismo e o dedo dos judeus está na sua origem, para outros o
terrível inimigo ideológico é o capitalismo e o dedo dos judeus também está
nessa criação. O
economista e sociólogo germânico Werner Sombart — um
admirador de Karl Marx que acabou intelectualmente próximo do nazismo —, ligou
os judeus e a sua religião ao moderno capitalismo.
4. Hoje
pode parecer absurdo, mas os maiores apoios políticos, demográficos e de
armamento à criação do Estado de Israel, entre 1947 e 1949, vieram da esquerda
intelectual e política europeia e em particular da União Soviética de Estaline. Na altura, uma realpolitik face aos judeus
refugiados — que representavam um problema no Centro e Leste europeu sob
domínio soviético — levou ao apoio à criação de Israel na Palestina. Estaline e os dirigentes soviéticos da época tinham a
ambição de poderem criar um Estado
comunista no Médio Oriente, ou, pelo menos, receptivo à influência soviética.
Talvez o facto de Karl Marx e outros
socialistas-comunistas proeminentes, como Rosa Luxemburgo, terem
ascendência judaica, tenha ajudado a essa ideia. Talvez na experiência
comunitária dos kibutzim (plural
de kibutz) israelitas, Estaline tenha visto semelhanças promissoras com o
modelo colectivista soviético. Seja como
for, os reaccionários eram os árabes/palestinianos. Prova do seu atraso e inclinação protofascista era
continuarem apegados ao “ópio do povo” (a religião) e — pior ainda — terem tido
simpatias pela Alemanha nazi. O mufti de Jerusalém, Amin
al-Husseini, foi um
enérgico propagandista que arregimentou muçulmanos para os exércitos nazis.
5. No
Ocidente progressista, a imagem inicial do Estado de Israel sem a mácula dos
pecados da opressão, do colonialismo e do capitalismo deu lugar à imagem de um tenebroso lado negro. Existem razões políticas e intelectuais para isso.
Quanto às razões políticas, há a participação de Israel ao lado da França e do
Reino Unido contra o Egipto, na tentativa de recuperação do canal do Suez após
a nacionalização por Nasser. Acresce a guerra de 1967, onde Israel expandiu os
territórios à custa dos palestinianos e dos Estados árabes vizinhos, bem como a
proximidade político-militar com os EUA. As razões intelectuais são mais
complexas. Israel foi uma concretização tardia das ideias de Estado-nação num
território não ocidental, a Palestina. Isso ocorreu numa altura em que, devido
ao lado negro ocidental, ligado aos excessos nacionalistas e aos males da
colonização, se iniciava um movimento intelectual e político contrário. O
Ocidente abandonou a ideia de Estado-nação, a forma política que pregou ao
mundo durante mais de um século. Passou a fazer uma nova apologia: a da
partilha de soberania e da defesa dos direitos humanos mesmo contra o
Estado-nação soberano. Assim, para a esquerda, o que antes era progressista —
Israel — metamorfoseou-se numa odiosa opressão colonialista;
e o que antes era reaccionário — os palestinianos — passou a ser um oprimido e
uma causa de grande valor moral. Também a direita intelectual e
política ocidental se metamorfoseou, defendendo o que antes atacava. Os velhos
preconceitos contra os judeus, responsáveis pelos males da humanidade, deram
lugar à imagem do povo criador do único Estado democrático do Médio Oriente e
do aliado imprescindível. O lado
negro de Israel varia no espelho do Ocidente. Reflecte tanto a história do
conflito israelo-palestiniano como as transformações, contradições e cinismo da
esquerda e direita ocidentais.
Investigador do
IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa
TÓPICOS MUNDO MÉDIO ORIENTE ISRAEL EUROPA PALESTINA HISTÓRIA NAÇÕES
UNIDAS
Andrefilipe31.864336 INICIANTE: É sempre um prazer ler o que escreve,
José! 31.05.2021
jcmimar EXPERIENTE: Bom artigo, com uma boa análise, que explica bastante
bem as contradições das fases de transição. A solução “dois estados” representa
a conclusão de um processo iniciado sob a óptica do conceito de Estado-nação,
resolvido o caso judeu aplicado agora ao caso palestiniano. A solução “um
estado” corresponde ao abandono da ideia de Estado-nação, anteriormente
prevalecente. Devido ao impulso inercial, a solução “dois estados” parece claramente
mais viável do que a solução “um estado”, mais de acordo com novas correntes de
pensamento (de que está à distância), mas ainda muito mais complexa de aplicar
no terreno. A solução “acabar com um dos lados” corresponde a comportamento
tribal enraizado, mais primitivo, e não é exequível. Complexo. E o demónio
esconde-se sempre nos detalhes.
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