terça-feira, 1 de junho de 2021

Mas…


Talvez uma nova era se prepare:

(«MÉDIO ORIENTE          Yair Lapid: “Israel pode entrar numa nova era”:

«O “governo de mudança” começa a tomar forma. Mas a saída de cena de Netanyahu após 12 anos ainda não é uma certeza.         PÚBLICO, 31 de Maio de 2021…..»)

Veremos a Continuação….

 

ANÁLISE MÉDIO ORIENTE

O lado negro de Israel no espelho do Ocidente

JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES

PÚBLICO, 31 de Maio de 2021

1. Ao contrário de muitos outros problemas internacionais, que enfrentam um desconhecimento e a indiferença generalizados da opinião pública ocidental, o conflito israelo-palestiniano excita a imaginação e mobiliza fortes paixões. Muitos são os que têm uma opinião forte sobre o conflito, tomando partido a favor ou contra uma das partes em confronto. O que torna o conflito israelo-palestiniano tão peculiar na política internacional contemporânea merece ser aqui reconsiderado. Três coisas podem ser apontadas para lhe conferir essa singularidade. A primeira está ligada ao lugar que os judeus ocupam na cultura ocidental, em particular ao papel do Judaísmo na origem do cristianismo. A segunda decorre da ideia de Estado-nação como tipo ideal de comunidade política humana, que surgiu na Europa do século XIX. No caso dos judeus, essa ideia originou a criação de um movimento político nacionalista — o sionismo , impulsionado por Theodor Herzl e outros, que tinha por objectivo criar um Estado-nação para o povo judeu. A terceira resulta das perseguições aos judeus e Holocausto na Alemanha nazi dos anos 1940 e da posterior criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada no âmbito das Nações Unidas em 1948.

2. A criação do Estado de Israel em 1948, no antigo território da Palestina sob mandato britânico da Sociedade das Nações (SdN), foi  resultado da conjugação de várias circunstâncias: (i) das referidas ideias ocidentais sobre o Estado-nação aplicadas ao caso judeu — um povo ou nação tem direito a ter um Estado soberano; (ii) da necessidade de resolver o problema dos milhares de judeus refugiados errantes na Europa do pós II Guerra Mundial; (iii) e do papel da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) que emergiu como a referência máxima da legalidade e legitimidade internacional no pós-guerra. Aí foi aprovado um plano de partilha da Palestina — Resolução nº 181 de 29 de Novembro de 1947 Assembleia Geral. A resolução foi aceite pelos judeus e contestada pelos árabes originando a primeira guerra israelo-árabe de 1948. Um aspecto político relevante a notar é que a resolução teve uma clara maioria de votos a favor num contexto onde os Estados ocidentais eram maioritários. Apesar do ambiente de Guerra Fria já estar instalado entre os dois grandes vencedores da II Guerra Mundial — EUA e União Soviética —, ambos apoiaram a divisão da Palestina e a formação de um Estado judaico, embora por motivos diferentes.

3. Um dos aspectos mais curiosos do conflito israelo-palestiniano é o da forma como, no Ocidente, os apoios intelectuais e políticos, mas também as críticas, sobretudo as mais cáusticas e deslegitimadoras, têm variado ao longo do tempo. Na cultura ocidental, religiosa ou secular, a relação com os judeus e, por arrastamento, com o Estado de Israel, é paradoxal, oscilando entre extremos de ódio-admiração. O Ocidente não seria o Ocidente — pelo menos tal como o conhecemos hoje —, sem a influência religiosa judaica que interage com o cristianismo na sua origem. Ao mesmo tempo, a negação pelos judeus de Cristo como o Messias colocou-os em rota de colisão com o Ocidente cristão e alvo de perseguições religiosas. Mas o Ocidente também não seria o Ocidente secular de hoje sem um pensador do comunismo como Karl Marx, com origens familiares judaicas. A influência que essa ascendência terá tido na sua ideologia é matéria controversa. Todavia, a ideia — usualmente ligada às teorias da conspiração — de que o comunismo foi uma ideologia criada por judeus como vingança contra as sociedades cristãs, ou islâmicas, fez o seu caminho. Hoje é bastante popular no mundo islâmico, sobretudo entre os islamistas radicais (Irmandade Muçulmana, Hamas, etc.). Mas, se, para uns, no Ocidente e fora dele, o arqui-inimigo ideológico é o comunismo e o dedo dos judeus está na sua origem, para outros o terrível inimigo ideológico é o capitalismo e o dedo dos judeus também está nessa criação. O economista e sociólogo germânico Werner Sombart — um admirador de Karl Marx que acabou intelectualmente próximo do nazismo —, ligou os judeus e a sua religião ao moderno capitalismo.

4. Hoje pode parecer absurdo, mas os maiores apoios políticos, demográficos e de armamento à criação do Estado de Israel, entre 1947 e 1949, vieram da esquerda intelectual e política europeia e em particular da União Soviética de Estaline. Na altura, uma realpolitik face aos judeus refugiados — que representavam um problema no Centro e Leste europeu sob domínio soviético — levou ao apoio à criação de Israel na Palestina. Estaline e os dirigentes soviéticos da época tinham a ambição de poderem criar um Estado comunista no Médio Oriente, ou, pelo menos, receptivo à influência soviética. Talvez o facto de Karl Marx e outros socialistas-comunistas proeminentes, como Rosa Luxemburgo, terem ascendência judaica, tenha ajudado a essa ideia. Talvez na experiência comunitária dos kibutzim (plural de kibutz) israelitas, Estaline tenha visto semelhanças promissoras com o modelo colectivista soviético. Seja como for, os reaccionários eram os árabes/palestinianos. Prova do seu atraso e inclinação protofascista era continuarem apegados ao “ópio do povo” (a religião) e — pior ainda — terem tido simpatias pela Alemanha nazi. O mufti de Jerusalém, Amin al-Husseini, foi um enérgico propagandista que arregimentou muçulmanos para os exércitos nazis.

5. No Ocidente progressista, a imagem inicial do Estado de Israel sem a mácula dos pecados da opressão, do colonialismo e do capitalismo deu lugar à imagem de um tenebroso lado negro. Existem razões políticas e intelectuais para isso. Quanto às razões políticas, há a participação de Israel ao lado da França e do Reino Unido contra o Egipto, na tentativa de recuperação do canal do Suez após a nacionalização por Nasser. Acresce a guerra de 1967, onde Israel expandiu os territórios à custa dos palestinianos e dos Estados árabes vizinhos, bem como a proximidade político-militar com os EUA. As razões intelectuais são mais complexas. Israel foi uma concretização tardia das ideias de Estado-nação num território não ocidental, a Palestina. Isso ocorreu numa altura em que, devido ao lado negro ocidental, ligado aos excessos nacionalistas e aos males da colonização, se iniciava um movimento intelectual e político contrário. O Ocidente abandonou a ideia de Estado-nação, a forma política que pregou ao mundo durante mais de um século. Passou a fazer uma nova apologia: a da partilha de soberania e da defesa dos direitos humanos mesmo contra o Estado-nação soberano. Assim, para a esquerda, o que antes era progressista — Israel — metamorfoseou-se numa odiosa opressão colonialista; e o que antes era reaccionário — os palestinianos — passou a ser um oprimido e uma causa de grande valor moral. Também a direita intelectual e política ocidental se metamorfoseou, defendendo o que antes atacava. Os velhos preconceitos contra os judeus, responsáveis pelos males da humanidade, deram lugar à imagem do povo criador do único Estado democrático do Médio Oriente e do aliado imprescindível. O lado negro de Israel varia no espelho do Ocidente. Reflecte tanto a história do conflito israelo-palestiniano como as transformações, contradições e cinismo da esquerda e direita ocidentais.

Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa

TÓPICOS    MUNDO  MÉDIO ORIENTE  ISRAEL  EUROPA  PALESTINA  HISTÓRIA  NAÇÕES UNIDAS

COMENTÁRIOS

Andrefilipe31.864336 INICIANTE: É sempre um prazer ler o que escreve, José! 31.05.2021

jcmimar EXPERIENTE: Bom artigo, com uma boa análise, que explica bastante bem as contradições das fases de transição. A solução “dois estados” representa a conclusão de um processo iniciado sob a óptica do conceito de Estado-nação, resolvido o caso judeu aplicado agora ao caso palestiniano. A solução “um estado” corresponde ao abandono da ideia de Estado-nação, anteriormente prevalecente. Devido ao impulso inercial, a solução “dois estados” parece claramente mais viável do que a solução “um estado”, mais de acordo com novas correntes de pensamento (de que está à distância), mas ainda muito mais complexa de aplicar no terreno. A solução “acabar com um dos lados” corresponde a comportamento tribal enraizado, mais primitivo, e não é exequível. Complexo. E o demónio esconde-se sempre nos detalhes.

Nenhum comentário: