Mas esperamos que ao rol dos factores
negativos rebaixantes e geralmente sonegados, segundo Manuel Villaverde Cabral, por
demasiado humilhantes, vão sucedendo algumas realizações positivas, que figuram
como utopias, na designação de Maria
João Avillez - felizmente
realizadas, deixando, assim, de o ser. Além disso, temos o Sol que, todavia,
também esse “peca, quando em vez de
criar, seca”, como dizia Pessoa. Mas,
se os cardos também dão flor - e lindas que são - assim vamos florindo, em meio
dos espinhos da nossa condição, de longa data irreparável.
I - Outro problema sem solução… /premium
O envelhecimento cada vez maior da
população faz com que a percentagem de pessoas com níveis de literacia muito
baixos continue a ser o pior da Europa.
MANUEL VILLAVERDE
CABRAL
OBSERVADOR, 09 jun
2021
Se,
como
sustentei na semana passada, o maior problema do país, que o
actual Governo não só não procura minimizar, como nem sequer reconhece a sua
existência, é o envelhecimento da população e o estado de saúde a ele
associado, o segundo maior problema do país é o da educação. Com efeito, apesar de um aumento estatístico dos
anos de estudo concluídos, Portugal continua a ser, de longe, o país da
Europa com o nível médio de escolaridade mais baixo. Daí, para começar, a
baixa produtividade do sistema económico bem como do funcionamento do país em
geral. São exemplos notórios disso, ramos como a construção civil
e o turismo, não falando
do exército crescente da função pública, grande parte da
qual responde pelos níveis de saúde e de educação.
Ora,
pela altura em que o PS subiu ao poder no fim do século passado, foi feito
um estudo – o único que conheço – sobre a
literacia em Portugal. Basta dizer
que os autores foram obrigados a criar um quinto nível mais baixo do que os
quatro escalões do estudo internacional que esteve na base do português: na
época, 10% das pessoas estavam nesse nível zero; a ele juntavam-se quase
70% nos dois escalões mais baixos e apenas 20% no conjunto dos dois escalões
mais altos de literacia, ou seja, um quinto da população.
Ora,
o que acontece é que, embora o nível tenha certamente melhorado, o
envelhecimento cada vez maior da população faz com que a
percentagem de pessoas com níveis de literacia muito baixos continue a ser o
pior da Europa. Daqui vem
de certeza uma parte significativa do abstencionismo eleitoral! Foi em face desse atraso secular, que os governos
Cavaco e Guterres promoveram no final do século XX, cada um a seu modo, a
massificação e a privatização do ensino cujos resultados estamos a ver quais
são. Cavaco promoveu o ensino
privado, criando um conjunto de universidades que nunca foram capazes de
separar o ensino do negócio dirigido às famílias cujos filhos não conseguiam
entrar na universidade pública; Guterres,
pelo seu lado, multiplicou politécnicos e universidades com propinas baixas por
todo o país, a fim de dar vida às cidades da província.
À massificação do ensino
correspondeu, necessariamente, uma outra massificação, que é a dos docentes. Ao mesmo tempo que os cursos de
licenciatura foram encurtados, com a diminuição de conhecimentos que isso
implica, aumentaram para alguns as pós-graduações. Entretanto,
o ensino universitário foi reservado aos doutorados. A este
título, lembro o caso de uma instituição promovida entretanto a universidade,
cujo corpo docente passou de dois doutorados em 1980, a 720 hoje em dia… Ora, saltos quantitativos desta natureza
dificilmente podem deixar de ter implicações qualitativas que não são fáceis de
calcular: por um lado, trata-se da necessidade de cada vez mais especialização
e, por outro, do excesso de especialização.
Não foi por acaso, que a educação
evoluiu muito recentemente no sector da saúde ao mais alto nível de formação
profissional com a criação, contra a vontade expressa da Ordem dos Médicos, de
um curso de Medicina na Universidade Católica – uma instituição privada. Este caso vai longe. O PS não
só passou por cima dos cursos existentes, como cedeu à Católica, sancionando o
custo real deste tipo de formação – 100 mil euros por aluno – e mostrando que o
Estado não tem nem terá dinheiro para custear os cursos públicos de Medicina,
nem para pagar aos novos médicos o seu custo real no mercado da saúde. Este
caso obriga a população a reconhecer a necessidade de aumento real das remunerações
dos cuidados de saúde, bem como o aumento da oferta privada através das
companhias de seguros dominadas por grupos estrangeiros.
Ora,
a saúde constitui o outro lado do envelhecimento e do seu custo. Com efeito, segundo
um estudo comparativo publicado
sobre o estado de saúde da população portuguesa com 50 ou mais anos, já era,
antes da pandemia, o pior da Europa. Isto ajuda a perceber os óbitos e
hospitalizações provocados pela Covid-19, mas, sobretudo, a necessidade em que
o Governo se encontrou, de fechar praticamente todo o SNS por falta de
recursos nos picos da pandemia!
O
resultado disso foi o número de óbitos extra-pandemia ter atingido tantos
milhares ou mais do que as vítimas do próprio vírus. Ora, isso não irá
melhorar daqui para a frente. Antes pelo contrário. A propaganda com que o
PS e os seus aliados envolveram o SNS tornou inviável, a curto prazo, sustentá-lo
financeiramente, o que abrirá um fosso crescente entre quem tem seguros
privados e quem não tem. Numa próxima ocasião, ver-se-á de que maneira o
bloco partidário actualmente no poder será capaz de enfrentar o principal custo
financeiro do envelhecimento, ou seja, o sistema de reformas, pensões e
subsídios: nada fazendo como de costume?
EDUCAÇÃO SAÚDE ENSINO SUPERIOR TERCEIRA IDADE SOCIEDADE
II -Utopias verdadeiras /premium
Abrir o cofre do Caramulo dentro do
Museu Arte Antiga tem sido simultaneamente uma festa e uma surpresa. Há pasmo e
maravilha. E tributo, claro, a quem honra o país preservando o seu melhor
património
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 09 jun
2021
1 Tenho
por vezes aqui dado notícia de utopias e de seres utópicos com
poder sobre o sonho, gosto
destas histórias onde se cruzam umas e outros. Revisito hoje uma delas. O
primeiro acto – a descoberta de um museu improvável no Caramulo – já aqui foi contado há uns anos. O segundo
acto começou há dias e trata de uma viagem até ao Museu de Arte Antiga de
algumas das mais belas peças desse museu, onde morarão até Setembro. Imperdível
surpresa.
2. As boas
surpresas estão a cair em desuso e sabe Deus como precisamos delas. As más concorrem entre si: a estarrecedora
confusão ocorrida com o Sporting e ainda sem responsáveis e por isso a evoco; o
aluguer de Portugal pelo Governo – como se o país fosse um salão de festas
daqueles que se alugam para casamentos – para receber o jogo de duas equipas
britânicas, previamente recusado no seu próprio país; o day after destas feias
trapalhadas, onde nenhuma “autoridade” – governamental, sanitária, de segurança
– se entendeu; os Portugueses, como a bola da Champions, a serem constantemente
chutados de uma “decisão” para uma “proibição”, num permanente enredo entre o
grau e a natureza dos desconfinamentos permitidos; o indigesto e mal explicado
equívoco com a Espanha; o temerário – e temível! – conta-gotas usado por
António Costa na ameaçadora questão da regionalização; as injustiças da
Justiça… E por aí
fora, enquanto o Presidente torce o nariz e carrega no uso do verbo. Não são
boas notícias, marés baixas políticas. Felizmente, há gente que consegue
produzir outra vida e, sobretudo, quem acolha naturalmente a utopia para sobre
ela operar, transformando-a em realidade viva.
3 Na
história que repesco hoje para lhe acrescentar um happy end, tudo começou
justamente com um Português com poder sobre a utopia. No caso, o poder
transfigurou-se no fulgurante golpe de asa de um cidadão chamado
Abel Lacerda. Ele e seu irmão João eram de excelente colheita. O pai, Jerónimo Lacerda, médico reputado, transformara o quase
inacessível povoado do Caramulo numa vila altamente desenvolvida para a época
(anos 20 do século passado) com variadíssimos sanatórios privados e públicos,
onde se fazia escola no estudo e terapia da tuberculose, atraindo àquelas
serranias os melhores médicos nacionais e estrangeiros. Os filhos
herdaram-lhe a veia visionária: Abel, homem
muito à frente do seu tempo e de finíssimo gosto, tinha paixão pela arte; João, pragmático e determinado, era um
fazedor. Um tinha asas no pensar, o outro transformava a ousadia em matéria. Com o passar das décadas, a
descoberta dos medicamentos para a tuberculose levou, porém, ao fecho dos
sanatórios, a vila do Caramulo esmorecia, de repente sem préstimo nem sentido. A este declínio indesejado, os irmãos Lacerda responderam
com essa sólida aliança que por vezes se tece entre a
criatividade e a vontade: far-se-ia o museu que Abel sempre sonhara erguer ali. Fizeram-no, como se fosse fácil, como se a lonjura
ajudasse, como se já houvesse colecção ou sombra de espólio. Não havia, mas
nasceu uma interessantíssima colecção de arte e certamente a de matriz mais
original no país, visto que toda ela proveio de doações e ofertas. Um caso
único em Portugal e não haverá porventura melhor “retrato” do prestígio e da
credibilidade desta família: de Salazar a Picasso achava-se natural
oferecer ou doar arte a um desconhecido museu, anichado entre as serras de
Portugal.
4 A
colecção foi criada em tempo recorde (1953/57), tal como o próprio edifício, erguido à volta
de um claustro, que um dia Abel Lacerda descobrira em ruínas perto de Viseu e logo adquirira como moldura para
as suas obras. Mas a
espécie de pressa com que tudo ele fazia, aquele misterioso, quase palpável
sentido de “urgência” em correr, não era senão, afinal, o outro nome do
destino: com trinta e poucos anos, Abel Lacerda morreu num
brutal desastre de automóvel sem ver
pronta a sua obra: o museu foi inaugurado em 1959, o irmão João, activo e
assertivo, velava pelo magnífico espólio que tão bem definia o carácter
invulgar do seu criador: pintura, escultura, mobiliário, cerâmica, faiança,
têxteis, numa viagem pela História da Arte que começa no Antigo Egipto com a
deusa Ísis com Hórus ao colo e desagua na arte portuguesa de hoje. Da garrafa mandada fazer por Jorge Álvares,
um dos primeiros navegadores portugueses a chegar ao Japão, datada de 1552,
até à “Mulher-garrafa” de Picasso, das telas de Chagal, Dali,
Miró, Amadeu, Viana, Vieira, passando pelas deslumbrantes quatro tapeçarias de
Tournai que estavam dispersas pelo mundo e que Abel Lacerda – sabendo-as o mais impressivo testemunho da chegada
das caravelas à Índia – conseguiu juntar e adquirir, o que está no Museu do
Caramulo é o formidável património da memória. E o que é afinal um coleccionador, senão um
guardador de memórias?
Memória
acondicionada por uma minúscula equipa, um Serviço Educativo, um Grupo de
Amigos generoso, mas mantida com fidelidade activíssima pelos herdeiros e eis a
chave de tão invulgar aventura cultural: a
devoção e o imperioso sentido de responsabilidade dos netos de João Lacerda
perante esta herança – material e simbólica: Madalena, Tiago e Salvador Gouveia e seu
primo João Lacerda são o testemunho de como a herança se mantém, tanto
tempo depois, viva, operativa, fértil, apesar do mar das dificuldades (com a
supressão de alguns, poucos, apoios estatais, o museu tem vivido exclusivamente
das receitas criadas pela loja, bilheteira, mecenato do BPI e algumas empresas
parceiras que se associaram ao projecto). Mas
a casa está viva e de saúde. Foi feita – e continua a ser feita – por gente que
nas marés baixas faz muito mais do que não desistir.
5 A
convite de Joaquim Caetano, director do Museu de Arte Antiga, algumas das mais
impressivas peças do Caramulo que acima descrevi viajaram até Lisboa. A
exposição tem o único titulo que poderia ter – “Colecção Utópica” – e, em certo sentido, o “único” curador que deveria
ter, um sábio, subtil, sensível “servidor de arte” chamado Aniseo Franco.
Pelo que vi e me contam, abrir o cofre do Caramulo dentro do Museu Arte
Antiga tem sido simultaneamente uma festa e uma surpresa. Há pasmo e maravilha.
E tributo, claro, a quem honra o país preservando o seu melhor património.
(Três dos
netos de João Lacerda – Tiago, Madalena e Salvador Gouveia – eram filhos de António Patricio Gouveia. António era alguém a quem os deuses amavam.
Morreu com 32 anos ao lado de Francisco Sá Carneiro de quem era chefe de
gabinete, numa viagem de avião que não chegou ao seu destino.)
6 E
quem nos diz que quando elas, ainda muito jovens, agarravam nos pincéis e nos
lápis, deixando a inspiração soltar-se no vazio da folha de papel ou ansiando por
ela diante de uma tela em branco, aquelas mulheres – pintoras que hoje, com
génio e brilho nos desafiam na Fundação Gulbenkian – não perseguiam também
uma utopia? Ou não operavam já sobre ela? Não será errado pensar isso quando as
olhamos agora, imaginando ao mesmo tempo os seus começos difíceis, hesitações e
titubeios, talento por florir, génio por irromper? Mas lá estão elas, arte no
feminino – escultura, pintura, instalações, desenho, filme, vídeo. Em
comum – dizem-nos – “têm espírito de subtileza, de afirmação de poder”.
Interrogo-me em quantas delas não habitou também o poder de agir sobre uma
utopia?
CULTURA MUSEU
NACIONAL DE ARTE ANTIGA MUSEUS
COMENTÁRIOS:
Cisca Impllit: Gostei muito
de ler. Recordei, na minha infância, anos 60, a primeira vez que fomos ao
Caramulo e a amabilidade e simpatia com que nos recebiam nesse ESPAÇO. Muitos e
eternos obrigados.
Andrade QB: Obrigado pelo
testemunho de que os indivíduos não são todos uma massa informe e incapazes de
fazer algo útil para todos de livre vontade.
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