domingo, 20 de junho de 2021

Picardia, a palavra exacta

 

Usou-a São José Almeida para definir o bla bla dos nossos governantes, especialmente centrado na “religiosidade” do apelo do PR para a exclusiva concentração num tal jogo de futebol, esquecida momentaneamente a pandemia. E assim se remete um presidente supremo a um dos três FFF da nossa facúndia popular. É nosso fado, é a nossa Fátima, é o tal figurante dos nossos horizontes de concentração espiritual, bem a conselho presidencial, nosso César passando o Rubicão da sua azáfama imperial…

OPINIÃO

Os cientistas não são bruxos, senhor Presidente

Terá Marcelo Rebelo de Sousa adquirido um alvará de irresponsabilidade?

SÃO JOSÉ ALMEIDA

PÚBLICO, 19 de Junho de 2021

A picardia entre o Presidente da República e o primeiro-ministro, que se desenrolou esta semana, pode ser vista como uma disputa de protagonismo, que não prejudica em nada o país. Mas não deixa de ser estranho que o assunto seja enterrado, sob o argumento presidencial de que queria “todos focados” no jogo da selecção de futebol contra a Hungria, com que Portugal se iniciou no Euro 2020, na terça-feira.

Ao longo do tempo que dura a pandemia em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa têm tido posições diferentes. Logo em Março de 2020, perante um Presidente que forçava a adopção do estado de emergência, o primeiro-ministro insistia que era melhor uma evolução gradual e que a Lei de Bases da Protecção Civil e a Lei de Bases da Saúde eram suficientes. Uma interpretação jurídica que está, aliás, na base da recusa de António Costa de que o PS, no Parlamento, avance para aprovação de uma lei de emergência sanitária desejada por Marcelo Rebelo de Sousa.

Ainda há poucos meses, o Presidente insistia em que o desconfinamento apenas começasse depois da Páscoa, enquanto o primeiro-ministro estava desejoso de começar a abrir a sociedade e a animar a economia e arrancou com a primeira fase do desconfinamento a 15 de Março, duas semanas antes daquela celebração.

Também não vem mal ao mundo em que agora as atitudes se invertam. E que seja o Presidente a afirmar, como fez domingo, ao visitar a Feira da Agricultura em Santarém, sobre o estado de emergência: “Já não voltamos para trás. Não é o problema de saber se pode ser, deve ser ou não. Não vai haver. Não vai haver. Comigo, não vai haver. Naquilo que depender do Presidente da República, não se volta atrás.

Enquanto o primeiro-ministro questiona: “Se alguém pode garantir [que não se volta atrás no desconfinamento]?” Para responder a si mesmo: “Não. Creio que nem o senhor Presidente da República seguramente o pode fazer, nem o fez.” Tendo ainda garantido que o Governo está disponível para recuos no desconfinamento. Uma prudência que é de elogiar, depois do optimismo do Verão passado e da demora com que actuou, perante o crescimento de contaminações no Outono, que acabou por rebentar após o Natal e instalou o caos no Serviço Nacional de Saúde, em Janeiro e Fevereiro, devido à entrada do vírus britânico.

A realidade é que há um novo crescendo de contaminações preocupante, pelo menos na zona da Grande Lisboa, e há uma nova variante do vírus da covid-19, a Delta, altamente contagiosa, que está a preocupar os especialistas. E, assim, tal como, no início do ano, Portugal foi dos primeiros países da Europa continental a ver crescer a variante britânica, agora vê aumentar os casos da variante Delta, podendo estar perante uma quarta vaga.

Sobre esta variante, aliás, é bom lembrar o que afirmou esta semana a comissária europeia para a Saúde: “É uma ameaça que estamos a levar a sério: é particularmente perigosa para os cidadãos que ainda não foram vacinados, mas também para aqueles que ainda não estão completamente vacinados.” Em suma, ninguém pode garantir que não tenha de haver novos confinamentos. Basta lembrar que até Boris Johnson foi obrigado a recuar no desconfinamento programado para 21 de Junho e a adiá-lo para 19 de Julho. E a vacinação no Reino Unido está bem mais avançada do que em Portugal.

É também evidente que o turismo e o cansaço das pessoas podem contribuir para o aumento das contaminações. Isto para já não falar da irresponsabilidade social da festa do Sporting, em Lisboa, e do jogo de futebol entre equipas inglesas no Porto, assim como do arraial da Iniciativa Liberal, um evento que demonstra adesão ao negacionismo e uma libertinagem que retira credibilidade a este partido.

Mas há uma dimensão nas declarações do Presidente, no domingo, que causa perplexidade e que impõe uma pergunta: terá Marcelo Rebelo de Sousa adquirido um alvará de irresponsabilidade? Recordemos as palavras do Presidente: questionado ainda sobre a necessidade de novos confinamentos e perante os argumentos dos especialistas, respondeu: “É bom que os especialistas digam o que têm a dizer. Agora o país não é governado pelos especialistas, o país é governado por quem foi eleito para governar.” E, sem freio nas palavras, afirmou: “Os especialistas têm o seu dever e eu respeito, que é chamar a atenção para o juízo que as pessoas devem ter. O não voltar atrás exige das pessoas viverem à medida disso. Querem que não volte atrás, têm de ter bom senso no respeito das regras sanitárias. É função dos especialistas dizerem: ‘Não se esqueçam, não se esqueçam, não se esqueçam.’ E, de alguma maneira, pregar um certo susto.”

É verdade que os especialistas em Saúde Pública não são políticos e que quem governa em democracia são os eleitos. Mas os especialistas são cientistas e o seu conselho é necessário. Por isso se realizaram as reuniões do Infarmed. Não existem para meter medo, como se fossem bruxos.

tp.ocilbup@adiemla.esoj.oas

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COMENTÁRIOS

INICIANTE: É verdade. Os cientistas não são bruxos. O Presidente também não. Criar "guerrinhas" com base num afirmação absolutamente imprevidente e injustificada - que ninguém pode antecipar a evolução da COVID, é óbvio para qualquer cidadão - é lamentável. Utilizar a situação para realçar a sua superioridade institucional, é pior ainda. A alguém, mesmo à direita, aproveitará isto?!           Antonio Oliveira Mesquita EXPERIENTE: O vinho do Orban fez mal ao Marcelo. Mostrou quanto gostava de ser Sidónio Pais, mas como só andou fardado no liceu com o castanho da 'bufa' falta-lhe estratégia e postura.             L. Mauger EXPERIENTE: Concordo plenamente. O presidente faria melhor figura se desse um bom exemplo evitando contactos, deslocações e visitas em Portugal e no estrangeiro! As fotografias do jogo de futebol na Hungria ou das visitas à feira da agricultura e Madeira, mostrando MRS sem máscara e sem manter distanciamento são uma vergonha. Uma professora sábia disse-me uma vez que as palavras são como a pasta de dentes, uma vez cá fora não se podem guardar outra vez: o presidente devia pensar um bocadinho antes de abrir a boca para não fazer figura triste. DNG.MODERADOR: Certo.        Paulo Batista EXPERIENTE: Óbvio.

   

 

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