Eis uma narrativa fundamentada, de José Milhazes, de muito interesse informativo acerca
dos enredos pós-Abril. Com espionagem, suspense e tudo o mais que ajudou à
nossa insigne evolução lusa.
Mário Neves: a relação entre o KGB e o
ex-embaixador português em Moscovo /premium
Foi jornalista
e foi também o primeiro embaixador português na antiga União Soviética. Mas além
dos registos oficiais, que papel teve Mário Neves na ligação entre a URSS e
Portugal no pós-25 de Abril?
JOSÉ MILHAZES: Texto
OBSERVADOR, 11
jun 2021
Será que a
União Soviética lutava apenas em nome do “internacionalismo proletário” ou
escondia por baixo dessa palavra de ordem o desejo de se apoderar das riquezas
naturais dos países que estavam na sua zona de influência? Qual o papel dos
serviços secretos russos no negócio dos diamantes em Angola? E qual a ligação
entre Mário Neves, conhecido jornalista português e primeiro embaixador de
Portugal na URSS, e o KGB soviético?
O misterioso
homicídio de um empresário soviético com negócios em Angola e Moçambique
No dia 2 de novembro de 2009, um grupo de
desconhecidos atacou com armas metralhadoras o automóvel Mercedes em que
seguia Shabs Kalmanovitch (1947-2009), conhecido homem de negócios com fortes ligações
tanto aos serviços secretos soviéticos (e, depois, russos), como ao mundo do
crime na URSS e na Rússia. Só passado 12 anos a polícia conseguiu
capturar dois dos assassinos, mas até hoje continua a desconhecer-se quem
ordenou esse crime.
Como acontecia nos anos 1990 e acontece ainda hoje na
Rússia, raramente as autoridades chegam aos verdadeiros mentores dos
assassinatos, principalmente quando o mundo do crime se cruza com os serviços
secretos.
Kalmanovich, cidadão soviético de origem judaica, nasceu na Lituânia em 1947. Em 1971,
emigrou com a família para Israel, mas para receber a autorização de saída teve
de aceitar colaborar com o Comité de Segurança de Estado (KGB) da URSS.
No início dos
anos 1980, começou a desenvolver os seus negócios em África, nomeadamente em
Angola e Moçambique, com a ajuda de “portas abertas” em Portugal por Evgueni
Pitovranov (1915-1999), importante dirigente dos
serviços de espionagem e contra-espionagem soviética.
Evgueni Pitovranov: “Tchekista de Estaline” e “amigo” de Mário Neves
Filho de um sacerdote ortodoxo, Evgueni Pitovranov fez
uma brilhante carreira no NKVD/MGB/KGB da URSS, chegando ao cargo de vice-chefe
do Primeiro Departamento do MGB (Ministério da Segurança de Estado) da União
Soviética e dirigente da espionagem soviética no estrangeiro. Nos anos
1950, quando ocupava o cargo de primeiro conselheiro do KGB junto do
Ministério de Segurança da República Democrática Alemã, foi um dos dirigentes da repressão contra as greves operárias.
Em 1966, depois de passar à reserva, mas continuando a
manter fortes contactos com conhecidos dirigentes dos serviços secretos
soviéticos como Iúri Andropov, Pitovranov passou a ocupar o cargo de vice-presidente da
Câmara de Comércio da URSS, organização que dirigiu entre 1983 e 1988.
Quando Andropov passou a dirigir os
serviços secretos soviéticos, chamou-o para a realização de um grande plano:
criar novas formas de fazer espionagem paralelamente às clássicas.
Pitovranov recordou no livro Tchekisti Stalina, as palavras do chefe do KGB: “Sei que o camarada
Estaline tinha a ideia firme de que não nos podíamos limitar à estrutura do
trabalho de espionagem que existe hoje. Deve-se considerar as possibilidades de
reverificar os dados conseguidos através da espionagem do KGB e da GRU
[espionagem militar]. É preciso complementar o que eles fazem. Mas isto tem de
ser feito de forma conspirativa e útil para o Estado. Pensa numa estrutura
paralela aos órgãos de segurança de Estado que possas propor. Mas, antes disso,
é preciso ponderar tudo e resolver fundamentalmente o que se deve fazer ou não.”
Os dirigentes soviéticos necessitavam urgentemente de compreender o que
se passava em Portugal após o 25 de abril de 1974 e enviaram Pitrovanov a
Portugal que, por intermédio de Mário Neves, se encontrou com o então
Presidente, general António de Spínola.
Segundo Pitovranov, ele próprio propôs a criação de uma organização de
espionagem chamada “Empresa”, que tinha por objectivo utilizar homens de
negócios ocidentais que estavam interessados em assinar contratos com a URSS. Tendo em conta as dimensões do
projecto, Andropov decidiu criar no KGB a
Secção “P”. Foi precisamente neste período que o homem de negócios soviéticos se
cruzou com o conhecido jornalista português Mário Neves (1912-1999), numa altura em que este
ocupava o cargo de Comissário da Feira das
Indústrias Portuguesas.
Os dirigentes
soviéticos necessitavam urgentemente de compreender o que se passava em
Portugal após o 25 de abril de 1974 e enviaram Pitovranov a Portugal. Por intermédio
de Mário Neves, encontrou-se com o então Presidente, general António de
Spínola. No livro Tchekisti Stalina,
publicado sob o patrocínio do Serviço de Espionagem Estrangeira (SVR) da
Rússia, lê-se:
No dia seguinte à sua chegada a
Lisboa, Neves recebeu o seu amigo-parceiro moscovita à tarde, os dois
generais [Pitovranov
e Spínola] encontraram-se secretamente no palácio presidencial… Spínola recebeu com evidente interesse a
proposta de um canal
conspirativo directo entre as direcções dos pois países. Ele expôs
a sua plataforma política e delineou as vias mais prováveis das transformações
futuras”.
O trabalho realizado pelo homem de confiança de
Andropov em Lisboa foi de tal forma bem-sucedido que recebeu um forte elogio
numa das reuniões do Bureau Político do Partido Comunista da União Soviética.
Esta não foi a única vez que Pitovranov se deslocou a
Portugal durante o chamado período revolucionário. Numa delas, visitou os
Estaleiros Navais de Viana do Castelo, que, nessa altura, começava a construir
navios rio-mar para a União Soviética, negócio que permitia desviar dinheiro
soviético para os cofres do Partido Comunista Português (como indicam
documentos publicados no livro “Cunhal, Brejnev e o 25 de abril”, do mesmo
autor deste artigo).
António Amaro de Matos (1933-2020), economista e empresário
português, recordou uma dessas visitas num longo depoimento sobre os seus
40 anos de vida profissional, divulgado no Jornal de Negócios:
“O primeiro caso (trabalhadores manipulados do começo ao fim de uma
manifestação) é exemplificado pela visita do presidente da Câmara de Comércio da República da Rússia, Sr.
Pitovranov, ao estaleiro.
Vinha, na sua comitiva, também a primeira cosmonauta soviética e o
presidente da Associação de Amizade Portugal-URSS que tinha tomado a iniciativa
do convite. É costume dos estaleiros hastear a bandeira da
nacionalidade de visitantes ilustres. Apesar do período revolucionário, não foi
fácil encontrar uma bandeira da União Soviética. Mas
encontrámo-la, embora de dimensão mais reduzida do que o normal, e hasteámo-la
à entrada. Passado algum tempo, desapareceu a bandeira, escamoteada por
trabalhadores da extrema-esquerda, menos apreciadores do grande país, nessa
altura, ainda a vanguarda do movimento proletário internacional.
E quando o
convidado chegou, além de não haver bandeira, foi envolvido por centenas de
trabalhadores hostis, gritando o seu protesto pela visita. Receámos pela sua
segurança. Acabámos por conseguir tirá-lo de dentro do carro, fizemos uma
pequena exposição no auditório sobre o estaleiro e conduzimo-lo numa visita
rapidíssima às instalações, sempre perseguidos por trabalhadores em fúria.
Durante o almoço, na Estalagem da Quinta das Torres para maior tranquilidade,
já mais recomposto, o nosso convidado teceu considerações muito agrestes
relativamente aos nossos proletários e quanto à falta que nos fazia uma Sibéria qualquer para lhes dar
destino”.
Confirmou-se
também que Pitovranov não só tinha experiência de enviar trabalhadores para a
Sibéria, mas também de reprimir as suas manifestações noutros países do bloco
comunista.
Amaro de Matos continua as referências a Pitovranov no seu depoimento: Retribuiu o convite e encontrei-o de novo na União Soviética. Mais
tarde, voltou a Portugal e alguém na FIL o reconheceu como tendo sido o
responsável pelo KGB na Alemanha Oriental durante a sangrenta repressão de
1957.”
Mas Pitovranov não se interessava só por
Portugal, nem Mário Neves seria apenas um “amigo-parceiro”. O jornalista
russo Evgueni Zhirnov escreveu no jornal Kommersant:
“A actividade
da “Empresa” teve mais êxito em Moscovo. Pitovranov conhecia
um dos diplomatas ocidentais altamente colocados que estavam acreditados na
capital da URSS, e começou a ajudá-lo nos seus assuntos pessoais e oficiais. A
gratidão do diplomata não tinha limites, nomeadamente sob a forma de informação
sobre a estrutura interna nas embaixadas estrangeiras a que o KGB não tinha
acesso. Comunicava-lhe também o conteúdo das conversas entre os diplomatas
altamente colocados sobre as questões mais sensíveis da política da NATO,
Estados Unidos, etc.”
A colaboração de Mário Neves com o KGB não lhe prejudicou a carreira. Depois
de regressar de Moscovo, em 1979, fez parte do V Governo Constitucional,
chefiado por Maria de Lurdes Pintassilgo, na qualidade de Secretário de Estado
da Emigração
Este precioso informador era Mário Neves, o embaixador de Portugal em
Moscovo. Vladimir Popov, antigo tenente-coronel do KGB, que, entre 1972 e 1991,
controlava as viagens de soviéticos ao estrangeiro, as organizações culturais e
a cooperação internacional, escreveu no seu livro Conjura dos canalhas. Notas de um ex-tenente-coronel
do KGB:
“O
escritor democrata Mário Neves, que também era director da Associação de Feiras
de Lisboa, foi mais um dos valiosos contactos operativos da 8.ª Secção do 5.º
Departamento do KGB. Nas conversas privadas com ele, Pitovranov tirou
uma conclusão correcta sobre o enorme potencial económico das colónias
africanas de Portugal, perdidas por ele em 1974 depois da revolução dos “cravos
vermelhos”. Neves, que conhecia bem importantes portugueses que tinham negócios
em África, deu as respectivas recomendações a Pitovranov, que soube utilizá-los
bem a favor do grupo de tchekistas por ele dirigido”. Os serviços secretos soviéticos e russos não irão reconhecer que Mário Neves
foi um seu importante informador, considerando mesmo essa alegação uma calúnia.
Mas o relato dos acontecimentos que fazem no já citado livroTchekisti Stalina deixa no ar mais
perguntas do que respostas:
“Ele [Neves]
habituava-se com dificuldades aos nossos frios e a algumas outras coisas,
principalmente na organização da vida quotidiana. Pitovranov tornou-se o seu
apoio seguro… Isso preocupou seriamente os serviços secretos portugueses: a
conselho dos parceiros da NATO, eles começaram a desconfiar de que existisse
algo de subversivo numa normal amizade humana. Neves passou a ser seguido, o
seu gabinete e apartamento passaram a estar cheios de meios de escutas, todas
as chamadas telefónicas eram controladas.”
Tudo indica
que Mário Neves forneceria informações aos serviços secretos soviéticos apenas por mera
simpatia política, não havendo provas de que tenha recebido contrapartidas
financeiras. No entanto, esta colaboração de Mário
Neves com o KGB não lhe prejudicou a carreira. Depois de regressar de Moscovo,
em 1979, fez parte do V Governo Constitucional, chefiado por Maria de Lurdes
Pintassilgo, na qualidade de Secretário de Estado da Emigração.
Portas abertas para o tráfico de armas e diamantes:
Hoje é evidente que a tão
apregoada política soviética de “internacionalismo proletário” não era mais do
que uma capa para a URSS realizar a sua acção imperialista em competição com os
Estados Unidos nos vários continentes, mas os novos países que emergiram após o
fim do império colonial português pouco ou nada ganharam com a sua
independência. Dilacerados por longas guerras civis, eram privados das suas
riquezas naturais para pagar armamentos.
Segundo Vladimir Popov, Mário Neves ajudou a “abrir portas” para a entrada dos serviços
secretos soviéticos nos negócios em África: “Pitovranov sabia do
enorme potencial económico das ex-colónias africanas de Portugal, perdidas após
a Revolução dos Cravos de 1974, das conversas privadas que o escritor democrata
Mário Neves, que era também diretor da Associação de Feiras de Lisboa, mantinha com as
elites políticas e de negócios influentes”. A seguir, Vladimir Popov escreve como começou a
infiltração da “máfia” soviética, e depois, russa, em África: Desde 1975,
no território de Angola, Moçambique e Namíbia tinham lugar guerras civis. Nos
combates participavam tropas da República Sul-Africana. A URSS, a pedido do
dirigente do “Movimento Popular pela Libertação de Angola” (MPLA), prestava a
este movimento uma ajuda militar e financeira significativa. Além da URSS, o
MPLA recebia apoio militar de Cuba socialista.”
Homens como Pitovranov e Kalmanovich tentavam tirar os maiores
proveitos possíveis. Segundo o antigo agente do KGB Vladimir Popov, “utilizando as possibilidades dos agentes ilegais
soviéticos, [a URSS] começou a fornecer armas aos grupos adversários. Estes
apenas podiam pagar com minérios, principalmente diamantes, platina e ouro”.
Os negócios de Kalmanovich corriam tão bem que
rapidamente se alargaram ao Botswana e à Serra Leoa, tornando-o cada vez mais
famoso entre os traficantes de diamantes. À medida que aumentava a sua riqueza,
crescia também a sua influência política. Um dos feitos de que mais se gabava
na vida foi a libertação de Miron Markus, homem de negócios israelita que foi
feito prisioneiro pela Frelimo em Moçambique e acusado de espionagem.
Kalmanovich foi um dos que participou na sua libertação.
Porém, em maio
de 1987, o “homem de negócios” israelita foi, juntamente com o seu sócio
Vladimir Davidson, detido em Londres e acusado de ter passado cheques falsos a
uma empresa americana e de tentar vender “diamantes de sangue”. Libertado sob fiança, refugiou-se em
Israel onde também acabou por ir para a prisão por “espionagem a favor de um
Estado estrangeiro”. Ou seja, Kalmanovich continuava a trabalhar para o KGB
soviético.
Foi condenado a uma pena de prisão de nove anos, mas
passou atrás das grades pouco mais de cinco anos, tendo sido libertado em 1993
a pedido das autoridades e de influentes políticos russos. Regressou aos seus
negócios escuros na Rússia e na Lituânia, tornando-se um dos principais
personagens do crime organizado na Rússia, mas os seus concorrentes e inimigos
não lhe terão perdoado “pecados antigos”.
ESPIONAGEM SOCIEDADE HISTÓRIA CULTURA UNIÃO
SOVIÉTICA MUNDO..RÚSSIA
COMENTÁRIOS:
Gabriel Moreira: Mário Neves ?:
Quem diria.... António
de Mendonça: Excelente e
interessante artigo. É bom que tenhamos noção do que o partido comunista português
traficou para a URSS. Desde o roubo dos arquivos da PIDE, aos camaradas do
registo civil que emitiam passaportes portugueses a agentes do KGB para se
passearem pelo mundo fora. O financiamento do PCP não se fez a troco de nada.
Há traidores que ainda andam por aí, mas podem andar sossegados, se os das FP25
foram amnistiados, estes serão glorificados. E para quem acredita no Pia Natal,
abram a pestana, pois muito mais saberemos no futuro, com a abertura dos
arquivos das secretas em diversos países. Censurado Censurado:
Aqui está a verdadeira vocação do
Milhazes - os romances históricos. Pelo que devia dedicar-se muito mais à
ficção que à actualidade política. Que tolera muito menos os devaneios
absolutamente parciais do Milhazes. Enquanto que aqui percebe-se logo a riqueza
da prosa de um verdadeiro Dostóievski a germinar. Que aplicando-se a sério
ainda vai muito a tempo de ultrapassar o Orelhas até nas vendas. Os portugueses
adoram literatura fantástica como "As Minhas Aventuras no País dos
Sovietes".
José Costa: Quantos traidores existem em Portugal? Nuno
Borges: Tendo a URSS o MPLA no governo de Angola
para que precisava das apresentações "comerciais" do Mário Neves para
roubar aquele país? De qualquer
modo agradeço as informações e desinformações aqui relatadas. Pena que não
tenha ido mais fundo. Mas o mundo das informações é mesmo assim. José
Maria Antunes: Que a terra
lhe seja pesada.
M ZA: Já começou o branqueamento do medina José MilhazesAUTOR > M ZA: Onde?
Já leu o artigo?
Dragão 2019 > M ZA: Você
está equivocado!
Joaquim Rodrigues > M ZA: A
liberdade também serve para gente como você dizer asneiras. M ZA > Joaquim Rodrigues: Há muitas maneiras de branquear, desviar as atenções é
uma delas, atirar diferentes notícias para a primeira página no auge de uma
polémica outra; conhecidos métodos dos regimes como o vigente!
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