Só mesmo o Dr. Salles para nos trazer referências – vibrantes
- a um passado português de acção civilizadora nessa Ásia por nós apenas conhecida
de raspão, limitada que foi antes a uma acção económica mais eficiente para a
glória nacional. Também Salles da
Fonseca merecerá um pouco o epíteto de “português
marinheiro dos sete mares andarilho” que a Amália Rodrigues cantou na sua “Gaivota” (sua e de Alexandre O’neill e de Oulman Alain Robert, ainda segundo transcrição da Internet. Um obrigada
pelo momento de leitura inesperada, que as suas andanças pelo mundo, talvez em
transatlântico de férias, propiciaram.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 28.06.21
Após
as lutas necessárias, suficientes e convenientes à mudança do paradigma de Goa
relativamente ao Islão, foi possível criar as condições para que a região
assumisse claramente o epíteto de «Goa doirada». E esse brilhantismo nunca teria sido possível sem
a participação essencial dos naturais da terra, os goenkares; teria sido impossível fazê-la doirada só pela
arte dos reinóis. Dessa
participação activa resultou a criação duma elite que não se limitou a expandir
a Fé e o Império pelas demais partes orientais do mundo como também se
distinguiu na própria Metrópole onde ocupou/ocupa as mais altas hierarquias.
E tudo, não por condescendência ou
compadrio mas, isso sim, por mérito próprio.
Goa foi doirada porque foi plataforma de Império e porque contou com uma
elite local que fez jus à sua terra. Perdida a perspectiva imperial, ficou o
principal, a qualidade das
gentes.
Contudo, para além das características naturais e do ambiente social
propícios ao elitismo, este teve que ser enquadrado numa Civilização diferente
dos cenários que antecederam o século XVI. E o novo enquadramento fez-se no
Catolicismo recorrendo a «formadores» tanto reinóis como goeses.
* * *
Reinol [1] mas ordenado em Goa, refiro o
PADRE ANTÓNIO DE ANDRADE, SJ
Português, reinol de Oleiros
(1580), foi por amor a Deus e à humanidade que acabou por morrer prematuramente
em Goa, corria em 19 de Março o ano de 1634.
Ainda criança, ingressou no «Colégio das Onze Mil Virgens», em Coimbra, instituição para que o
fundador jesuíta redigira a «Ratio Studiorum», norma pedagógica que dali vogou
para todas as demais instituições de ensino jesuítas espalhadas pelo mundo.
E porque a Fé jesuíta é católica também
na acepção literal do termo, aos membros da Companhia de Jesus compete espalhar
a Boa Nova entre as gentes de toda a parte e
assim foi que ao jovem António cumpriu em Abril de 1600 rumar a Goa para
completar a sua formação e, a partir daí, desenvolver as missões que lhe fossem
entretanto determinadas.
Ordenado, cumpriu-lhe rumar a Agra para
fundar a «Missão do
Mogol». Foi ali que aprendeu com muçulmanos oriundos da
Caxemira várias das línguas faladas no norte da Índia e foi ali também que
ouviu referências a certos enigmas, nomeadamente sobre uma religião cristã na
Ásia Central.
Despertada
a curiosidade, foi em 1624
que rumou a Delhi e, daí, acompanhou uma peregrinação hindu às origens
do Ganges. Deixados os peregrinos para trás, prosseguiu viagem até um aglomerado de
casas de que lhe tinham falado os peregrinos. Chegado a Tsaparang, «reino»
perdido nas alturas himalaias, foi recebido pelo «rei» local com grande
simpatia a quem explicou o Cristianismo, a quem converteu e de quem recebeu o
pedido de cristianização do seu «reino». Só com a garantia do
regresso é que foi autorizado a regressar a Agra com o objectivo de recrutar
ajudantes para essa sua nova Missão, a primeira (e última) no Tibete. Ao
todo, há o registo de seis escaladas que o Padre Andrade fez dos
Himalaias mas, contudo, não foi como montanhista que ficou conhecido. Outrossim,
a sua fama ficou a dever-se às cartas endereçadas ao seu Superior Geral, P.
Muzio Vitelezi, em Roma, descrevendo o Budismo
Tibetano até então desconhecido dos europeus daquela primeira
metade do séc. XVII. Famosas, as duas primeiras cartas que foram
traduzidas em 14 línguas e constituíram um verdadeiro «best seller». Se
existem mais cartas, nada se sabe do respectivo conteúdo na certeza, porém, de
que à hierarquia jesuíta pareceu bem atribuir nova missão ao Padre António de Andrade deixando
assim «cair» a Missão do Tibete.
Mandado regressar a Goa, foi o nosso
Reverendo «montanhista» nomeado Provincial
do Oriente da Companhia de Jesus com jurisdição desde o Cabo da Boa Esperança a
Nagasaki numa dimensão imperial que a maior parte dos goeses ainda hoje esquece.
Sim,
era a partir do «Colégio de São Paulo», em Goa, que a Companhia de Jesus
governava aquele «seu meio mundo», era ali que formava parte da elite
genuinamente goesa, o seu Clero, era dali que irradiava a sua exegese do Deus
infinitamente bom e do perdão. Por contraste, o Deus castigador dos dominicanos em Manila cuja
influência chegava a Goa através da Inquisição.
Durante os dois primeiros Priorados
Gerais da Companhia de Jesus, foram acolhidos muitos cristãos novos no seu seio
mas o anti-semitismo sempre foi latente até que em 1593 vingou o «Estatuto da Pureza de Sangue». Assim se suspendeu o humanismo
inaciano, a teologia da
bondade infinita se viu de
algum modo contrariada e os seus adeptos quase passaram à clandestinidade.
Não terá sido fácil ao novo
Provincial jesuíta do Oriente encontrar quem se dispusesse a «dar a cara» no trabalho que secretamente havia que
levar à prática de neutralização da Inquisição em Goa. Nessa tão
perigosa missão se empenhou pessoalmente o Padre Andrade oferecendo-se como membro das Mesas dos
julgamentos do Santo Ofício.
Pode ter sido coincidência mas a verdade
é que dos autos dos três julgamentos a cujas Mesas pertenceu, não consta
nenhuma sentença determinante de morte. Estava em curso a
neutralização da acção perniciosa da Inquisição.
Regressando à sua residência jesuíta
no Colégio de São Paulo depois de assistir ao auto-de-fé do terceiro julgamento
em cuja Mesa participara, eram horas de jantar; o Padre Andrade dirigiu-se ao
refeitório presidindo à refeição, fez a oração da praxe, sentou-se, bebeu um
trago do copo à sua frente e instantaneamente levou as mãos à garganta. Morreu
três dias depois de grande sofrimento. Era o dia 19 de Março de 1634, tinha 54
anos.
Envenenado, claramente.
Porquê? A
suposição mais fácil aponta no sentido de uma punição devida à sua participação
nas Mesas da Inquisição. Por
ter quebrado o humanismo inaciano? Por ter promovido a brandura das sentenças?
Por, sendo português, estar no cargo do mando de meio mundo que alguém espanhol
ambicionava? Por causa de alguma carta referindo o que ainda hoje ignoramos?
Tudo conjecturas, apenas especulação.
A única certeza é a de que, naquelas épocas, Goa comandava meio mundo, tinha
dimensão imperial. E tudo, claro está, em português, a língua franca naquela
metade do mundo.
Junho de 2021
Henrique Salles da Fonseca
[1] REINOL – natural do Reino de Portugal
Publicado em 27 de Junho de 2021 no
jornal diário «O Heraldo» de Pangim, Goa
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COMENTÁRIOS:
Anónimo 28.06.2021: Acabo de ler
na minha cópia dominical do Heraldo o interessante artigo do doutor Salles
Fonseca. Obrigada, Henrique, por realçar aqui a obra do jesuita António
Andrade por quem tive sempre uma grande admiração, como representante do
idealismo dos jesuítas e dos seus esforços em aprender as línguas e culturas
asiáticas. Minhas sinceras felicitações. Lilia Maria
Anónimo 28.06.2021: Jesuitas e a
Inquisition ultrapassa tudo o que eu li no passado Meus sinceros parabéns e
esperamos mais artigos da sua autoria para nos enriquecer Celina
Almeida (Goa)
Anónimo 29.06.2021: Amigo
Henrique, só agora pude ler o seu erudito escrito sobre um dos heróis da
célebre Inquisição. Como era de esperar, foi um trabalho vem fundamentado que,
entre outras coisas, deu-nos a conhecer um ínclito membro da Companhia de
Jesus. Bem haja! Pe. Joaquim Loiola Pereira Goa
Anónimo 29.06.2021 Minhas
desculpas Henrique, a minha apreciação deve ser a ultima deste dia. Agradeço
este artigo minuciosamente estudado e tão rico em informação. Muitos de nós
nesta plataforma estudamos nas escolas de diferentes ordens religiosas, mas só
nos foi facultado o lado bom da religião. Agora adultos e capazes e termos a
nossa opinião, vemos numa análise retrospectiva que no próprio seio da Santa
Igreja, os homens eram da mesma substância dos leigos. e, exemplos não faltam.
O Padre Andrade era um sacerdote muito á frente do seu tempo e nalguns trechos
do seu artigo, um bandeirante. As suas qualidades humanas deviam ser de tal
ordem de grandeza que a sombra delas ofuscava quem o via. Foi triste o seu fim,
depois da obra meritória que vinha desenvolvendo. O seu artigo é um contributo
para a história da Companhia de Jesus em Goa. Só posso felicitá-lo. Os outros
nesta plataforma já disseram tudo. Abraço. Alice Gouveia Porto
Henrique Salles da Fonseca 29.06.2021: É erudito o seu artigo. Recortei- o para a minha
documentação. Pe. Mousinho de ataide (Professor de Direito
Canónico no Seminário do Patriarcado de Goa
NOTAS DA INTERNET:
António de Andrade
(Origem: Wikipédia, a
enciclopédia livre):
António de Andrade (Oleiros, 1580 — Goa, 19 de março de
1634)
foi um padre e explorador português que,
juntamente com o seu companheiro de viagem, o irmão Manuel Marques, foi o primeiro europeu a visitar o Tibete, em 1624.
Viagens
Ainda
noviço, Andrade partiu para a Índia, a 22 de abril de 1600, acompanhado de dezoito padres e irmãos da Companhia de
Jesus, no mesmo
navio onde viajou o vice-rei Aires
de Saldanha e que
chegou a Cochim a 22 de outubro do mesmo ano.
Após
ter completado os estudos dos padres no Colégio de São Paulo em Goa, recebeu as ordens sagradas e foi enviado depois para
a missão do Mogol em Agra, onde se julga que aprendeu a língua persa com
os muçulmanos caxemires
como era, aliás, costume.
A
30 de Março de 1624, já como Superior
da Missão do Mogol, deixa
Agra acompanhado por Jahangir,
o imperador mogol que viajava para Lahore. Quando chegou a Deli, encontrou um grande número de peregrinos hindus que
rumavam para um fabuloso templo, dado pelo nome de Badré (Badrinath) e
situado a quarenta dias de viagem da Deli, na região montanhosa do norte da Índia, no estado actual de Uttarakhand. Esperando
atingir o Tibete após alcançar este templo, António de Andrade, conjuntamente
com o irmão Manuel Marques, começaram a sua via, conduzidos pelos
"gentios".
A
viagem que empreendeu levá-lo-ia de Agra a Chaparangue,
no Tibete
Ocidental, passando
por Deli, Srinagar, Badrinath,
Mana e o passo de Mana. Para
segurança levara um astrolábio e um compasso
de sol que lhe permitiu mais tarde vir a referir que
Chaparangue se situava a 31º29' norte.
Durante
esta viagem — que durou cerca de três meses — encontrou, contudo, muitíssimas
dificuldades; permaneceu depois perto de um mês no Tibete, mais precisamente 23 dias, e regressou tendo gasto
sete meses até chegar, de novo, a Agra.
As
dificuldades que teve para ultrapassar nesta expedição deveram-se não somente
às passagens estreitas, mas também à agressividade do clima (a neve e as baixas
temperaturas), à falta de alimentos e às dificuldades impostas pelo rajá de Srinagar, por não serem mercadores. Quando alcançou Chaparangue, a principal cidade de
Coqué (Guge), um
dos reinos do Tibete, ele contactou directamente com o seu rei, Tri Tashi Dakpa
(Khri bKra shis Grags pa lde), o último rei de Gugue.
A recepção preparada pelo rei foi
descrita como bastante boa, uma vez que ele teria pensado tratar-se de
mercadores. Porém, quando compreendeu que eles não traziam quaisquer
mercadorias, recebeu-os, de início, com alguma indiferença. Contudo, depois, prestou-lhes mais atenção e arranjou
um tradutor, um muçulmano de Caxemira
que, aliás, causou alguns problemas a António de Andrade. O rei
parece ter mostrado mesmo interesse para com a religião cristã e acabou por
autorizar não somente o retorno dos padres, como lhes prometeu permitir o
estabelecimento de uma missão em Chaparangue, no ano seguinte.
A
missão teve algum sucesso; foi construída uma pequena igreja e produziram-se
algumas conversões. No
entanto, a política do rei favorecendo a religião estrangeira era muito
impopular e ele foi derrubado por um exército do reino inimigo de Ladakh em
1630. A missão foi destruída e os cristãos expulsos do país. Andrade deixou
o Tibete em 1629 e foi nomeado o Provincial de Goa em 1630; actuou até 1633 e
em seguida retomou o seu antigo cargo de Reitor do Colégio de S. Paulo em Goa. Ele trabalhou também como Deputado da Inquisição de Goa. Em 3 de março de 1634 o padre Andrade foi
envenenado na reitoria do colégio e morreu em 19 de março. Uma investigação
(Devassa) realizada pouco tempo depois pela Inquisição revelou que os
assassinos eram companheiros jesuítas insatisfeitos com sua rigorosa aplicação
das regras da Companhia. Os relatos de Andrade do Tibete eram muito
populares em toda a Europa e influenciaram fortemente as concepçōes ocidentais
do país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…”: (também na Internet):
EX: Esteves-Pereira, Francisco. 1924. O descobrimento do Tibete pelo P. António de Andrade. Coimbra: Impresa da Universidade Didier, Hugues. 1999. Os Portugueses no Tibete. Os primeiros relatos dos jesuítas (1624-1635). Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses. Tavares, Célia Cristina da Silva. 2006. Jesuítas e Inquisidores em Goa.
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