terça-feira, 29 de junho de 2021

Acção portuguesa na Ásia…


Só mesmo o Dr. Salles para nos trazer referências – vibrantes - a um passado português de acção civilizadora nessa Ásia por nós apenas conhecida de raspão, limitada que foi antes a uma acção económica mais eficiente para a glória nacional. Também Salles da Fonseca merecerá um pouco o epíteto de “português marinheiro dos sete mares andarilho” que a Amália Rodrigues cantou na sua “Gaivota” (sua e de Alexandre O’neill e de Oulman Alain Robert, ainda segundo transcrição da Internet. Um obrigada pelo momento de leitura inesperada, que as suas andanças pelo mundo, talvez em transatlântico de férias, propiciaram.

 

GOA, JESUÍTAS E IMPÉRIO

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 28.06.21

Após as lutas necessárias, suficientes e convenientes à mudança do paradigma de Goa relativamente ao Islão, foi possível criar as condições para que a região assumisse claramente o epíteto de «Goa doirada». E esse brilhantismo nunca teria sido possível sem a participação essencial dos naturais da terra, os goenkares; teria sido impossível fazê-la doirada só pela arte dos reinóis. Dessa participação activa resultou a criação duma elite que não se limitou a expandir a Fé e o Império pelas demais partes orientais do mundo como também se distinguiu na própria Metrópole onde ocupou/ocupa as mais altas hierarquias. E tudo, não por condescendência ou compadrio mas, isso sim, por mérito próprio.

Goa foi doirada porque foi plataforma de Império e porque contou com uma elite local que fez jus à sua terra. Perdida a perspectiva imperial, ficou o principal, a qualidade das gentes.

Contudo, para além das características naturais e do ambiente social propícios ao elitismo, este teve que ser enquadrado numa Civilização diferente dos cenários que antecederam o século XVI. E o novo enquadramento fez-se no Catolicismo recorrendo a «formadores» tanto reinóis como goeses.

* * *

Reinol [1] mas ordenado em Goa, refiro o

PADRE ANTÓNIO DE ANDRADE, SJ

Português, reinol de Oleiros (1580), foi por amor a Deus e à humanidade que acabou por morrer prematuramente em Goa, corria em 19 de Março o ano de 1634.

Ainda criança, ingressou no «Colégio das Onze Mil Virgens», em Coimbra, instituição para que o fundador jesuíta redigira a «Ratio Studiorum», norma pedagógica que dali vogou para todas as demais instituições de ensino jesuítas espalhadas pelo mundo.

E porque a Fé jesuíta é católica também na acepção literal do termo, aos membros da Companhia de Jesus compete espalhar a Boa Nova entre as gentes de toda a parte e assim foi que ao jovem António cumpriu em Abril de 1600 rumar a Goa para completar a sua formação e, a partir daí, desenvolver as missões que lhe fossem entretanto  determinadas.

Ordenado, cumpriu-lhe rumar a Agra para fundar a «Missão do Mogol». Foi ali que aprendeu com muçulmanos oriundos da Caxemira várias das línguas faladas no norte da Índia e foi ali também que ouviu referências a certos enigmas, nomeadamente sobre uma religião cristã na Ásia Central.

Despertada a curiosidade, foi em 1624 que rumou a Delhi e, daí, acompanhou uma peregrinação hindu às origens do Ganges. Deixados os peregrinos para trás, prosseguiu viagem até um aglomerado de casas de que lhe tinham falado os peregrinos. Chegado a Tsaparang, «reino» perdido nas alturas himalaias, foi recebido pelo «rei» local com grande simpatia a quem explicou o Cristianismo, a quem converteu e de quem recebeu o pedido de cristianização do seu «reino». Só com a garantia do regresso é que foi autorizado a regressar a Agra com o objectivo de recrutar ajudantes para essa sua nova Missão, a primeira (e última) no Tibete. Ao todo, há o registo de seis escaladas que o Padre Andrade fez dos Himalaias mas, contudo, não foi como montanhista que ficou conhecido. Outrossim, a sua fama ficou a dever-se às cartas endereçadas ao seu Superior Geral, P. Muzio Vitelezi, em Roma, descrevendo o Budismo Tibetano até então desconhecido dos europeus daquela primeira metade do séc. XVII. Famosas, as duas primeiras cartas que foram traduzidas em 14 línguas e constituíram um verdadeiro «best seller». Se existem mais cartas, nada se sabe do respectivo conteúdo na certeza, porém, de que à hierarquia jesuíta pareceu bem atribuir nova missão ao Padre António de Andrade deixando assim «cair» a Missão do Tibete.

Mandado regressar a Goa, foi o nosso Reverendo «montanhista» nomeado Provincial do Oriente da Companhia de Jesus com jurisdição desde o Cabo da Boa Esperança a Nagasaki numa dimensão imperial que a maior parte dos goeses ainda hoje esquece.

Sim, era a partir do «Colégio de São Paulo», em Goa, que a Companhia de Jesus governava aquele «seu meio mundo», era ali que formava parte da elite genuinamente goesa, o seu Clero, era dali que irradiava a sua exegese do Deus infinitamente bom e do perdão. Por contraste, o Deus castigador dos dominicanos em Manila cuja influência chegava a Goa através da Inquisição.

Durante os dois primeiros Priorados Gerais da Companhia de Jesus, foram acolhidos muitos cristãos novos no seu seio mas o anti-semitismo sempre foi latente até que em 1593 vingou o «Estatuto da Pureza de Sangue». Assim se suspendeu o humanismo inaciano, a teologia da bondade infinita se viu de algum modo contrariada e os seus adeptos quase passaram à clandestinidade.

Não terá sido fácil ao novo Provincial jesuíta do Oriente encontrar quem se dispusesse a «dar a cara» no trabalho que secretamente havia que levar à prática de neutralização da Inquisição em Goa. Nessa tão perigosa missão se empenhou pessoalmente o Padre Andrade oferecendo-se como membro das Mesas dos julgamentos do Santo Ofício.

Pode ter sido coincidência mas a verdade é que dos autos dos três julgamentos a cujas Mesas pertenceu, não consta nenhuma sentença determinante de morte. Estava em curso a neutralização da acção perniciosa da Inquisição.

Regressando à sua residência jesuíta no Colégio de São Paulo depois de assistir ao auto-de-fé do terceiro julgamento em cuja Mesa participara, eram horas de jantar; o Padre Andrade dirigiu-se ao refeitório presidindo à refeição, fez a oração da praxe, sentou-se, bebeu um trago do copo à sua frente e instantaneamente levou as mãos à garganta. Morreu três dias depois de grande sofrimento. Era o dia 19 de Março de 1634, tinha 54 anos.

Envenenado, claramente.

Porquê? A suposição mais fácil aponta no sentido de uma punição devida à sua participação nas Mesas da Inquisição. Por ter quebrado o humanismo inaciano? Por ter promovido a brandura das sentenças? Por, sendo português, estar no cargo do mando de meio mundo que alguém espanhol ambicionava? Por causa de alguma carta referindo o que ainda hoje ignoramos?

Tudo conjecturas, apenas especulação. A única certeza é a de que, naquelas épocas, Goa comandava meio mundo, tinha dimensão imperial. E tudo, claro está, em português, a língua franca naquela metade do mundo.

Junho de 2021

Henrique Salles da Fonseca

[1] REINOLnatural do Reino de Portugal

Publicado em 27 de Junho de 2021 no jornal diário «O Heraldo» de Pangim, Goa

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"lusitânia armilar"

história

COMENTÁRIOS:

Anónimo 28.06.2021: Acabo de ler na minha cópia dominical do Heraldo o interessante artigo do doutor Salles Fonseca. Obrigada, Henrique, por realçar aqui a obra do jesuita António Andrade por quem tive sempre uma grande admiração, como representante do idealismo dos jesuítas e dos seus esforços em aprender as línguas e culturas asiáticas. Minhas sinceras felicitações. Lilia Maria

Anónimo 28.06.2021: Jesuitas e a Inquisition ultrapassa tudo o que eu li no passado Meus sinceros parabéns e esperamos mais artigos da sua autoria para nos enriquecer Celina Almeida (Goa)

Anónimo 29.06.2021: Amigo Henrique, só agora pude ler o seu erudito escrito sobre um dos heróis da célebre Inquisição. Como era de esperar, foi um trabalho vem fundamentado que, entre outras coisas, deu-nos a conhecer um ínclito membro da Companhia de Jesus. Bem haja! Pe. Joaquim Loiola Pereira Goa

Anónimo 29.06.2021 Minhas desculpas Henrique, a minha apreciação deve ser a ultima deste dia. Agradeço este artigo minuciosamente estudado e tão rico em informação. Muitos de nós nesta plataforma estudamos nas escolas de diferentes ordens religiosas, mas só nos foi facultado o lado bom da religião. Agora adultos e capazes e termos a nossa opinião, vemos numa análise retrospectiva que no próprio seio da Santa Igreja, os homens eram da mesma substância dos leigos. e, exemplos não faltam. O Padre Andrade era um sacerdote muito á frente do seu tempo e nalguns trechos do seu artigo, um bandeirante. As suas qualidades humanas deviam ser de tal ordem de grandeza que a sombra delas ofuscava quem o via. Foi triste o seu fim, depois da obra meritória que vinha desenvolvendo. O seu artigo é um contributo para a história da Companhia de Jesus em Goa. Só posso felicitá-lo. Os outros nesta plataforma já disseram tudo. Abraço. Alice Gouveia Porto

Henrique Salles da Fonseca 29.06.2021: É erudito o seu artigo. Recortei- o para a minha documentação. Pe. Mousinho de ataide (Professor de Direito Canónico no Seminário do Patriarcado de Goa

NOTAS DA INTERNET:

António de Andrade   (Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre):

António de Andrade (Oleiros, 1580Goa, 19 de março de 1634) foi um padre e explorador português que, juntamente com o seu companheiro de viagem, o irmão Manuel Marques, foi o primeiro europeu a visitar o Tibete, em 1624.

Viagens

Ainda noviço, Andrade partiu para a Índia, a 22 de abril de 1600, acompanhado de dezoito padres e irmãos da Companhia de Jesus, no mesmo navio onde viajou o vice-rei Aires de Saldanha e que chegou a Cochim a 22 de outubro do mesmo ano.

Após ter completado os estudos dos padres no Colégio de São Paulo em Goa, recebeu as ordens sagradas e foi enviado depois para a missão do Mogol em Agra, onde se julga que aprendeu a língua persa com os muçulmanos caxemires como era, aliás, costume.

A 30 de Março de 1624, já como Superior da Missão do Mogol, deixa Agra acompanhado por Jahangir, o imperador mogol que viajava para Lahore. Quando chegou a Deli, encontrou um grande número de peregrinos hindus que rumavam para um fabuloso templo, dado pelo nome de Badré (Badrinath) e situado a quarenta dias de viagem da Deli, na região montanhosa do norte da Índia, no estado actual de Uttarakhand. Esperando atingir o Tibete após alcançar este templo, António de Andrade, conjuntamente com o irmão Manuel Marques, começaram a sua via, conduzidos pelos "gentios".

A viagem que empreendeu levá-lo-ia de Agra a Chaparangue, no Tibete Ocidental, passando por Deli, Srinagar, Badrinath, Mana e o passo de Mana. Para segurança levara um astrolábio e um compasso de sol que lhe permitiu mais tarde vir a referir que Chaparangue se situava a 31º29' norte.

Durante esta viagem — que durou cerca de três meses — encontrou, contudo, muitíssimas dificuldades; permaneceu depois perto de um mês no Tibete, mais precisamente 23 dias, e regressou tendo gasto sete meses até chegar, de novo, a Agra.

As dificuldades que teve para ultrapassar nesta expedição deveram-se não somente às passagens estreitas, mas também à agressividade do clima (a neve e as baixas temperaturas), à falta de alimentos e às dificuldades impostas pelo rajá de Srinagar, por não serem mercadores. Quando alcançou Chaparangue, a principal cidade de Coqué (Guge), um dos reinos do Tibete, ele contactou directamente com o seu rei, Tri Tashi Dakpa (Khri bKra shis Grags pa lde), o último rei de Gugue.

A recepção preparada pelo rei foi descrita como bastante boa, uma vez que ele teria pensado tratar-se de mercadores. Porém, quando compreendeu que eles não traziam quaisquer mercadorias, recebeu-os, de início, com alguma indiferença. Contudo, depois, prestou-lhes mais atenção e arranjou um tradutor, um muçulmano de Caxemira que, aliás, causou alguns problemas a António de Andrade. O rei parece ter mostrado mesmo interesse para com a religião cristã e acabou por autorizar não somente o retorno dos padres, como lhes prometeu permitir o estabelecimento de uma missão em Chaparangue, no ano seguinte.

A missão teve algum sucesso; foi construída uma pequena igreja e produziram-se algumas conversões. No entanto, a política do rei favorecendo a religião estrangeira era muito impopular e ele foi derrubado por um exército do reino inimigo de Ladakh em 1630. A missão foi destruída e os cristãos expulsos do país. Andrade deixou o Tibete em 1629 e foi nomeado o Provincial de Goa em 1630; actuou até 1633 e em seguida retomou o seu antigo cargo de Reitor do Colégio de S. Paulo em Goa. Ele trabalhou também como Deputado da Inquisição de Goa. Em 3 de março de 1634 o padre Andrade foi envenenado na reitoria do colégio e morreu em 19 de março. Uma investigação (Devassa) realizada pouco tempo depois pela Inquisição revelou que os assassinos eram companheiros jesuítas insatisfeitos com sua rigorosa aplicação das regras da Companhia. Os relatos de Andrade do Tibete eram muito populares em toda a Europa e influenciaram fortemente as concepçōes ocidentais do país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…”: (também na Internet):

EX: Esteves-Pereira, Francisco. 1924. O descobrimento do Tibete pelo P. António de Andrade. Coimbra: Impresa da Universidade          Didier, Hugues. 1999. Os Portugueses no Tibete. Os primeiros relatos dos jesuítas (1624-1635). Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses.              Tavares, Célia Cristina da Silva. 2006. Jesuítas e Inquisidores em Goa.              


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