Pois o que sinto é idêntica vergonha e
repulsa, perante as tais figuras que nos governam por meio de actos
manipuladores ou estupidamente desprezadores deste povo de que faço parte, de
um miserabilismo mental que tudo aceita e ainda venera, talvez por isso mesmo,
por nos não respeitar, como tão expressivamente bem esclarece Alberto
Gonçalves. Até comparo com o caso da criança de dois anos, Noah, desaparecida
36 horas em terrenos de Idanha-a-Nova - criança de quem finalmente iam sendo
encontradas pistas, com muita gente em busca, um cão nada inquieto, etc, etc. Nem
sequer temos direito a uma aventura policial que ponha de sobreaviso as células
cinzentas brilhantes de detectives capazes, debruçadas sobre mentes brilhantes
de criminosos capazes, como é costume nos bons policiais. Para nós, basta uma
mistificatória história engendrada talvez por qualquer manigância especulativa,
de um suspense “coitadinho”, com intuitos aberrantes, quer publicitários quer
de troça, quer de ambição aciganada.
Insuportável, tanta humilhação.
As “elites” da nossa vergonha /premium
Num ponto, de facto, essa gente é
superior: a solitária “qualidade” deles é a voracidade, que nestes domínios
anda sempre emparelhada com o descaramento e a inépcia, a mentira e a
prepotência.
ALBERTO GONÇALVES
OBSERVADOR, 19 jun 2021
Após
um ano e tal de consenso acerca dos “confinamentos”, das “emergências” e da
destruição da vida económica e mental dos cidadãos, o prof. Marcelo e o dr.
Costa lá arranjaram uma divergência na matéria. Inquirido a propósito, o
prof. Marcelo explicou: “Hoje é dia de futebol, e aqui estamos todos unidos em
torno do futebol e, portanto, eu não vou agora estar a falar de outros temas,
porque é desconcentrar o fundamental. Temos de estar focados, e estamos todos
focados.”
No
dia seguinte, o dr. Costa respondeu: “Ontem, o Presidente da República pôde vibrar
no estádio em Budapeste, com a vitória de Portugal. E eu vibrei através da
televisão. No próximo sábado, em Munique, trocaremos de posições. Eu irei
sofrer em Munique e espero que o presidente da República festeje através da
televisão o resultado de Portugal com a Alemanha. Mas há total sintonia, até em
torno da selecção”.
Horas
antes, o dr. Costa, que demorou dias a comentar a delação de opositores de
Putin ao actual KGB (e o fez com tom e “argumentos” dignos do antigo KGB),
levara poucos minutos a surgir no Twitter para comentar a vitória da selecção: “Grande estreia da @selecaoportugal no Europeu,
frente à Hungria. Lutar até ao fim! A primeira vitória já está. Vamos à
próxima. Muitos parabéns!” O prof. Marcelo optou por comentar a bola nos
“directos” televisivos. Numa pausa do fervor futebolístico, o dr. Costa
ainda conseguiu impor uma cerca sanitária à região de Lisboa, proeza que
esfrangalha de vez o que restava da Constituição. Isto o prof. Marcelo,
constitucionalista emérito, não comentou.
O
belíssimo espectáculo em questão foi protagonizado pelas duas principais
figuras do Estado (sei que pelo meio há o dr. Ferro, que até calado embaraça).
É difícil imaginar coisa mais miserável. Suponho,
talvez por eurocentrismo, que na Nicarágua e no Ruanda haverá espectáculos e
misérias assim. Mas não piores. Tudo isto é reles, tudo. O “assunto” é reles. O
paleio é reles. A ironia, se era o caso, é reles. A empatia pela população é nula. O desprezo, pelo contrário, é
abundante. E o desprezo não é novo nem raro. A bem dizer, é o tratamento padrão
que quem se julga em cima dedica a quem se sente em baixo.
Uma coisa que me irrita
recorrentemente é culpar as “elites” pelas nossas desgraças. As desgraças são
óbvias: o irritante é a referência às “elites”. Quais “elites”, Deus meu?
A palavra vem do francês, e segundo o Larousse significa “Grupo minoritário de
pessoas que possui, numa comunidade, um lugar destacado devido a certas
qualidades socialmente valorizadas”.
Uma pessoa lê isto e lembra-se logo dos drs. Cabrita,
Marques Mendes ou Louçã, não lembra? “Qualidade socialmente valorizada” podia
ser o nome do meio da ministra Mariana, não podia? “Lugar destacado” é a cara
do sacristão nomeado para comissariar as festanças de “Abril”, não é? A
vantagem das ditas “elites” é darem vontade de rir. A desvantagem é elas rirem
por último. E de nós.
As palavras são importantes. As
nossas “elites” não têm importância nenhuma. Principalmente não são “elites”,
mas bandos de imprestáveis que por razões sortidas se colaram a cargos de
poder. Se, por absurdo, o Larousse se interessasse por Portugal, aperfeiçoaria
a definição para o ambiente indígena de 2021: “Socialistas e pechisbeques
aparentados que, por ausência de préstimo e de obstáculos, aproveitaram as
brechas disponíveis numa sociedade relativamente primitiva para ganhar a vida à
custa do contribuinte, beneficiando do gozo adicional de mandar nele”.
Suspeito
que apenas falamos em “elites” para nos consolarmos, para fingirmos que essa
deplorável gente nos é superior e justificarmos a “superioridade”. E num ponto, de facto, essa gente é superior:
a solitária “qualidade” deles é a voracidade, que
nestes domínios anda sempre emparelhada com o descaramento e a inépcia, a
mentira e a prepotência. Ao contrário das elites autênticas, já de si um
conceito discutível, as “elites” caseiras distinguem-se dos demais através dos
defeitos que possuem. São uma espécie de refugo social que se serve de um
simulacro infantil de democracia para tomar conta do que calha. Em países normais, semelhantes espécimes
estariam a lavar pratos. Aqui, sujam os pratos que nós lavamos. As “elites”
portuguesas são os portugueses com a ganância que os portugueses não têm, ou
têm e não sabem orientar. As
“elites” são os que se orientam. O povo
permanece desorientado. Desorientado e servil, face a “elites” que cultivam a
designação, mesmo que pejorativa, porque na designação se esgota o “elitismo”.
E o “elitismo”, mesmo que postiço, confere respeitabilidade.
Nisso, estou com os velhos: o problema é o respeito. Não a falta
dele, mas o excesso. Duvido que chegue o dia em que os portugueses constatem o
carácter literalmente ordinário dos que, de vexame em vexame, os governam hoje
em dia. Se esse dia chegar, espero que se tirem as devidas consequências e,
para começo de conversa, as pessoas desatem a chamar-lhes os nomes que merecem.
Entretanto, não lhes chamem “elites”. Cairmos nas mãos de semelhantes vergonhas
é vergonha bastante. Disfarçar só agrava.
POLÍTICA MARCELO
REBELO DE SOUSA PRESIDENTE DA
REPÚBLICA ANTÓNIO COSTA
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