sábado, 18 de dezembro de 2021

A “mochila” discreta


Uma bonita – sincera – homenagem, de Maria João Avillez, a alguém que admirou e estimou. Um belo quadro, onde entram sentimentos de amizade e admiração, e uma vez mais o espanto subentendido que é o de todos nós perante o definitivo da morte. Lembrei-me do soneto de Francisco de Vasconcelos, como homenagem a algo de belo que foi vivo - como reconhecimento pelo texto de MJA, e da pessoa que descreve – texto que, afinal, na beleza do seu descritivo saudosista, repõe o trágico da absurda condição humana, tal como o sempre belo soneto barroco – este, todavia, de um delírio retórico admirável de revolta, ductilmente trabalhada embora, no seu jogo contraditório.


À morte de F.

Esse jasmim, que arminhos desacata,
Essa aurora, que nácares aviva,
Essa fonte, que aljôfares deriva,
Essa rosa, que púrpuras desata;

Troca em cinza voraz lustrosa prata,
Brota em pranto cruel púrpura viva,
Profana em turvo pez prata nativa,
Muda em luto infeliz tersa escarlata.

Jasmim na alvura foi, na luz Aurora,
Fonte na graça, rosa no atributo,
Essa heróica deidade que em luz repousa.

Porém fora melhor que assim não fora,
Pois a ser cinza, pranto, barro e luto,
Nasceu jasmim, aurora, fonte, rosa.

Quanto a outras questões postas nos comentários, algumas de argúcia hílare, acho que devemos muito a MJA, não só pela beleza dos seus escritos, como pela clareza e coragem do seu comentário crítico - e que um ou outro desabafo sentido, ainda que traduzindo por vezes em ego narcisista, perfeitamente aceitável, não mancha de modo algum a sua perspicácia analítica - para que se torne alvo dessas antipatias machistas bastante pedantes.

Outros Natais (1)

A doença foi uma mochila que Leonor Xavier nunca entregou a ninguém. Foi uma escolha: levou-a às costas, sozinha, anos e anos. Recatadamente e em silêncio. Admirável, sim.

MARIA JOÃO AVILLEZ

OBSERVADOR, 16 dez 2021

1Contam-se pelos dedos momentos revestidos desta densidade. A morte leva a vida a proporcionar-nos o fruir de ocasiões que de imediato percebemos raríssimas de tal modo elas nos podem confundir. A valsa da morte e da vida não fazem senão confundir-nos. Mas é preciso apanhar esse voo mesmo que saibamos como são inalcançáveis os voos da despedida, com os seus misturados fragmentos de luto, de memória, de celebração, de tributo e foi isso mesmo que ocorreu ali na Capela do Rato, anteontem, numa dignidade recolhida de lágrimas silenciosas. E da saudade da Leonor Xavier, arrancada ao coração de cada um dos que ali se haviam juntado. Um grande momento. Capaz de operar a transformação da morte, em vida. Vida celebrada.

Uma despedida que também coube na vibração lamentosa da voz de Francisco Rebelo de Andrade. Que grito de consolação triste naquela voz fora deste mundo.

2José Tolentino de Mendonça serviu a palavra como Bach servia a música. Arrebatador e profundíssimo. Ou como Mozart e Haydn escreviam missas, roçando o transcendente. A Leonor há-de ter gostado de ouvir. Que dom. O sacerdote-poeta José Tolentino interpela-nos justamente porque percebemos que enquanto connosco partilha o seu verbo, está ao mesmo tempo a conversar com Deus através do mais verosímil dos intermediários. O único que confere inspiração, desafio e graça, apesar de se dizer que o Espírito só sopra quando quer. E sabendo nós – como bem sabemos, aliás – que o cardeal Tolentino tem o Divino Espírito Santo como “soprador” permanente e antigo, ficámos com a certeza que desta vez o Espírito quis soprar ainda mais. E a Leonor certamente que também. Fica-se perturbado com tais certezas.

3Quando me ponho a pensar, não é fácil escolher ou eleger o melhor da Leonor. Havia alguns e eram de facto muito bons. Mas há coisas, características, qualidades, com que nascem, outras que são herdadas, outras que se aprendem. E há as circunstâncias que podem ajudar à boa caminhada, a realização pessoal, ao sucesso. Da Leonor o que retenho não é aquilo que de imediato apetece louvar. O que vou guardar é uma coisa absolutamente admirável: a sua escolha. A escolha que ela fez face à sua doença. Nunca por nunca ser vi a Leonor consentir-se passar a sua provação – e a Via Sacra que ela foi – à frente do que quer que fosse. Dos outros. Do outro. Primeiro estava o acolhimento imediato – o seu: à família, aos amigos, a quem precisava dela, a quem lhe batia a porta, aos compromissos da profissão, à escrita, aos livros. Às viagens que ela era suposta reportar, às deambulações vibrantes fora de portas para ver amigos longínquos. À celebração da vida, por outras palavras. Foi a sua escolha. A vida sempre primeiro, a solidão do sofrimento depois. A doença foi uma mochila que ela nunca entregou a ninguém. Levou-a às costas, sozinha, anos e anos. Recatadamente e em silêncio. Admirável, sim.

4Não se sai incólume de uma despedida com este grau tão denso de espiritualidade de tributo real, de emocionada saudade. Achei que tinha de contar o que acima brevemente deixei escrito. “Nada acontece até ser contado” ensinou-me uma escritora inglesa de quem gosto e passou a ser um lema: contar. Contar porque a Leonor Xavier o merece. Merece – muito! – saber como os filhos, os netos, os amigos, tantos e tão transversais, a Igreja, as letras, a cidade, quiseram despedir-se dela. E como sei que ela me está ler, escrevo. É uma obrigação sentimental minha.

E também sei que a vela deste adeus tão abençoado, vai ser a mais brilhante das velas colocada neste Natal, na família da Leonor. Deus lá sabe, há Natais assim.

OBITUÁRIO   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

Alexandre Barreira: .....tive o prazer de falar com ela e o Solnado....no aeroporto de lisboa....iam viajar para o Brasil..........a lei da vida é implacável....RIP....!!!           Elísio Summavielle: Estive com a minha Mulher na capela do Rato, nesses momentos que tão bem relata no seu belíssimo texto. Bem haja pelo escreveu sobre a Leonor. Sim, "há Natais assim".          Jorge Isidoro: Elegante e bonita elegia.            MCMCA A: Como pode ser belo um obituário sobre alguém que nos tocará para sempre. Obrigada pela poesia que nos evade da tristeza da morte             José Montargil: Tenho pena de não poder ler o artigo de MJ Avillez sobre Leonor Xavier. Conheci a Leonor Xavier há dezenas de anos em casa de uns amigos e apesar de não ser íntimo via-a muitas vezes em casa de pessoas ou aqui e ali. Nas Amoreiras encontrava-a imensas vezes. Eram conversas rápidas naquela base de olá e 5 dedos de conversa mas via-se que era disponível para ter 5 minutos de atenção. Tenho a maior das penas que tenha tido essa doença sinistra e fatal de que tanta gente que conhecemos tem morrido e com imenso sofrimento. A Leonor não era nada o género de se queixar e eu nem me atrevia a falar nesse assunto.  Fiquei tristíssimo.          Francisco Tavares de Almeida: Maravilha. Como se pode fazer poesia em prosa. Miguel Benis: Que texto tão brilhante e comovente!!          FCE: Bonito, Maria José. Sou homem, jurista, tenho 65 anos, e desde os meus 18 anos que a sigo e leio (chegou a ser a Oriana Falacci da minha juventude) Nunca perco nada do que escreve adoro ouvi-la na televisão. Culta, com uma escrita “com sentimentos”- por ser feminina?, informada, diferente. Muitas vezes pouco reconhecida, mas é assim a vida. Os meus parabéns. E a minha simpatia pela Leonor Xavier, que conheci mal, registo com tristeza o seu desaparecimento e que a sua alma descanse em paz. PS: tinha e tenho uma verdadeira admiração pela sua irmã, infelizmente desaparecida, Maria José Nogueira Pinto.          José Montargil > FCE: Tem toda a razão no que escreve sobre Maria João Avillez. Custa perceber que muitas vezes MJA é desvalorizada e não é levada tão a sério como outros analistas políticos. Será porque escreve sobre outros temas de que gosta através de uma maneira de escrever crónicas que tocam tanto as pessoas? Lembro-me de uma crónica sobre o Verão familiar numa quinta onde a família se reúne. Li e nunca mais me esqueci da sua inteireza a descrever esses dias de Verão. Hoje acabei de ler o livro que MJ Avillez publicou há dias sobre políticos portugueses, sete entrevistas estupendas. A génese do livro e o seu desenvolvimento foi uma ideia brilhante, interessante e muito conseguida de MJA.       FCE > José Montargil: Concordo plenamente.           MCMCA A > José Montargil: MJA escreve bem melhor do que fala bem ao contrário da saudosa irmã Maria José, daí o seu pouco sucesso como analista           Quinta Sinfonia: Um amigo que faleceu há alguns anos também caiu de pé com um tumor no pâncreas. Nunca, em tempo algum se queixou, reuníamos como se nada se passasse, com a mulher e filhos tratava dos assuntos para o seu futuro com uma frieza assinalável onde o choro e o lamento eram praticamente proibidos. Morreu com 52 anos um homem singular. Ao ler o seu texto imediatamente pensei nele. Que lição de vida ele me deixou, viveu até não ser possível mais. Impressionante.          Cisca Impllit: Bem escrito          Carlos Chaves: Obrigado Maria João, por nos trazer este pedaço de Humanidade e transcendência. Como sempre (um derradeiro sentido tributo) magnificamente contado.           FME: Já não há pachorra. O que interessa aos leitores do Observador lerem os sentimentos públicos de Maria João Avillez à senhora recentemente falecida.  Estava na expectativa de uma boa crónica sobre política e sai mais uma lamechice, como se o Observador fosse a página do Facebook dos cronistas.  Obviamente que não tenho nada contra a senhora que faleceu, mas, estes tributos pessoais devem ser feitos noutros canais, ou então produzia duas crónicas, ou uma nota de rodapé. Muito sinceramente, na minha opinião, MJA já deveria ter levado com uns patins, porque, as crónicas são cada vez piores para um jornal focado em política.         Paulo Barreto > FME: concordo consigo, as crónicas da Maria Joao Avilez vão de mal a pior,  já não se pode ler, isto é um jornal de informação e análise politica, não é para ler estados de alma da Maria Joao            José Montargil > FME: Muito pouco justo e civilizado o seu comentário sobre Maria João Avillez a propósito da morte de Leonor Xavier. Não digo mais com medo de ser desagradável.      bento guerra > José Montargil: Muito pretensioso o seu comentário. Só ouvi falar da falecida por ter vivido com o Raul Solnado.           João Floriano > FME: Eu gosto demais de MJA. Este texto é muito bonito, muito intimista e toca-me particularmente. O cancro entrou por três vezes profundamente na minha vida; um tio, a minha mãe e finalmente uma grande amiga minha, quase uma filha que aos 40 anos me deixou uma saudade profunda. À semelhança do FME também preferiria um texto sobre política. Mas não concordo de todo com o seu último parágrafo e muito menos com o par de patins. Acho que o Observador não se foca apenas em política. Há aqui para todos os gostos. Até para lamechas.         João Floriano > bento guerra: Eu sei perfeitamente quem foi Leonor Xavier mas nunca pertenci nem lá perto ao círculo de amizades da escritora. Mas estive bastante perto de Raul Solnado durante as filmagens da Balada da Praia dos Cães, o que me leva a pensar que esta senhora seria de grande tolerância, resiliência e paciência. Lembro-me passados uns anos de ouvir uma entrevista em que Leonor Xavier falava das vantagens de casas separadas.          Quinta Sinfonia > João Floriano: Bom dia. Floriano. Estava para escrever algo parecido com o que escreveu. Foi de uma falta de gosto sem nome, ainda por cima vindo de alguém que considero até ter por regra comentários equilibrados e pertinentes. Bem sei que comentários infelizes acontecem a todos (Rio que o diga 🙂) mas ficava bem um pedido de desculpa pela deselegância cometida.    Quinta Sinfonia > José Montargil: José Montargil, saiba que estou completamente de acordo consigo. Lamentável a todos os títulos.            João Floriano > Quinta Sinfonia: Boa tarde Quinta Sinfonia O FME é uma das pessoas mais educadas e inteligentes que eu «conheço» aqui neste espaço. Quem sou eu para sugerir o que o FME deve dizer quando tantas vezes me excedo e meto os pés pelas mãos! Digamos que o FME não foi politicamente correcto. Não é o fim do mundo!           FME FME: Quando os textos desta autora estão em destaque todas as quinta-feiras no Jornal Observador, do que estão à espera os leitores de lerem?  Eu percebo que MJA não tenha resistido em aproveitar o seu espaço de comentário no jornal para fazer o elogio à sua amiga, mas, o jornal não pode ser o quintal para temas mais pessoais. Imaginem o Alberto Gonçalves trazer no próximo sábado um tema relacionado com uma ida ao dentista que correu mal. Não faria sentido, assim como a Rute não sei quantos escrever sobre o PS, e, se este deve procurar o centro ou manter-se fiel à esquerda. Os leitores ficariam de queixo caído e diriam que o mundo está às avessas. Como devem ter percebido não estou a referir-me ao texto em si, mas, se existe cabimento para substituir o habitual tema político. Pelo número de comentários (a maior parte relacionados com o meu lamento), creio, que os leitores se estiveram marimbando para o assunto trazido por MJA. Ontem, a Helena Matos, fez um elogio à falecida, mas numa crónica especial fora do seu habitual espaço de domingo.        José Montargil > Quinta Sinfonia: Obrigado.          Quinta Sinfonia > João Floriano: Por isso mesmo a minha estupefação, se fosse um dos comentadores residentes habituais sem conteúdo que fazem do insulto a sua marca, nem sequer havia lugar a qualquer reparo, já li bem pior. Evidentemente não é o fim do mundo, nenhum de nós é relevante para a opinião pública apesar de alguns pensarem o contrário, estamos pois livres para dizer os disparates que entendermos… se isso nos satisfizer 🙂         Ernesto Sousa > FME: Pode-se perdoar sempre a maldade, mas a estupidez voluntária é imperdoável.        João Floriano > FME: Se o Alberto Gonçalves escrever uma crónica hilariante sobre a ida ao dentista, tem o meu apoio. Sou de riso fácil e às vezes uma boa gargalhada muda-nos um dia que até ali estava  a correr de forma cinzenta. Olhe que essa ideia da Ruth Manus escrever sobre política faz muito sentido. O FME também devia lá aparecer quando a Dra. Ruth publica uma crónica. Vai  ver que é muito animado. E na verdade tem razão: o seu comentário foi mais comentado do que o texto da MJA. Aproveite: é o seu momento do holofote! FME,  sou um grande admirador seu.       FME > João Floriano: Sabe, não sou muito apreciador dos textos da MJA. Não gosto da prosa, é demasiado confusa, pior ainda quando tenta dar uma de poeta erudito, o que obriga a ler duas vezes para se tentar perceber o raciocínio. Orbita numa trajectória gravitacional política semelhante à minha, mas prefiro ler um texto do Daniel Oliveira que prima pela clareza mesmo que não se concorde com ele. Por falar nisso, quando faleceu o Herberto Hélder, creio, que o Daniel Oliveira publicou o habitual texto bloquista contra o investimento privado... talvez um pouco mais agressivo.  Não aprecio o "pobre" comentário político de MJA (já de Helena Matos sou completamente fã), e talvez por isso, quando procurei saber o que tinha a dizer sobre a prisão de Rendeiro e do Pinho, o entusiasmo televisivo da PJ e as tiradas de Rio, fiquei mais uma vez desiludido por fazer do seu espaço de comentário político a sua página de Facebook.         FME Paulo Barreto: Obrigado. Estava a ficar preocupado com este meu isolamento sobre as crónicas de MJA. Feliz Natal e Boas Festas          Tone da EiraFME: Para quem discorda do que o FME diz, tentemos fazer uma analogia. O senhor X recebe dum fabricante de lenços de papel um certo montante por semana mas tem a obrigação de vender 10 caixas. Falece o maior amigo do senhor X e no funeral este faz uma elegia do defunto que leva todos os presentes ao choro. O senhor X, precavido, leva as caixas dos lenços consigo e vende-as nessa ocasião. Ele até podia tê-las oferecido, mas não, aproveitou a circunstância para despachar a sua obrigação. O que pensaríamos dele?         bento guerra: Tone da Eira: Que há sempre um nicho de mercado de ranhosos.

 

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