Natal é quando um homem quiser.
Disse-o Ary dos Santos, di-lo Maria
João Avillez ao substituir – esta - o espalhafato natalício actual
– enternecedor, mas certamente excessivo, para mais num mundo de contrastes tão
gritantes – pelo gesto poderoso de eficácia de uma dádiva de um corpo doente
para efeitos de tratamento a generalizar, num objectivo de excelência positiva
na ordem do mundo.
Bonito o texto de Maria João Avillez, no seu discurso tão prático quanto amplo de intencionalidade generosa, mas, uma vez mais, ouçamos também o poema de Ary dos Santos, tão real na sua poesia ampla de dimensão humana:
Quando um Homem Quiser
Tu
que dormes à noite na calçada do relento
numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
és meu irmão, amigo, és meu irmão
E tu que dormes só o pesadelo do ciúme
numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
e sofres o Natal da solidão sem um queixume
és meu irmão, amigo, és meu irmão
Natal é em Dezembro
mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
é quando um homem quiser
Natal é quando nasce
uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto
que há no ventre da mulher
Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
tu que inventas bonecas e comboios de luar
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar
és meu irmão, amigo, és meu irmão
E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
és meu irmão, amigo, és meu irmão
Ary dos Santos, in 'As Palavras
das Cantigas'
Outros Natais (2)
Naquele almoço sobre o mar o que se apreciou foi a invulgar colaboração entre a iniciativa de um cidadão comum e a ciência portuguesa.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 23 dez 2021
1Há
dias na apresentação do meu último livro na Fundação Gulbenkian ouvi-me a mim
própria dizer que a curiosidade fora muito cedo acolhida como um imperativo.
Com o qual ando de roda das coisas para que a curiosidade valha a pena e se
transfigure numa mediação com utilidade. Mas…apesar da curiosidade e para além
dela, como escolher o que se conta? Eis tarefa sempre fornecedora da dúvida e
foi a minha hoje: contar ou não contar?
O tema não é simpático, ninguém gosta
de ouvir falar de doenças, a quadra natalícia pede pausas de enlevos mas a
história vale pelo epílogo. E pelo guião, escrito em co-autoria por um português
curioso e fazedor. Um “desinstalado”, melhor dizendo mas há-de haver gente
neste Natal que lhe agradecerá o ele ter-se desinstalado.
2Era
uma vez alguém com o costume de começar o dia abrindo o iPad para ler as novas
do mundo. Corria o ano de 2016 quando num desses dias “tropeçou” numa
notícia que subitamente lhe dizia directamente respeito: um grupo de cientistas portugueses do IPATIMUP do Porto, tinham sido premiados pela
internacional Fundação Everis pela descoberta de um teste genético para a
deteção do cancro da bexiga de uma forma completamente não invasiva. A espantosa novidade corporizava-se numa também
espantosa coincidência.
“Dei
um pulo na cadeira” lembra-se o co-autor deste “guião”, o madeirense David Caldeira,
engenheiro químico, 74 anos, quando há tempos contou esta história num almoço
no Funchal, onde – outra coincidência – eu me encontrava. O próprio David
fora dez anos antes diagnosticado com a mesma doença, fizera três cirurgias,
vivera uma saga com duas faces: numa estava um tumor normalmente não invasivo;
na outra, o risco de ele ressurgir, obrigando a alta vigilância e exames
periódicos e desconfortáveis. Entre a leitura da noticia e a vontade de saber
mais, David Caldeira procurou o professor Sobrinho Simões,
director do IPATIMUP, a seguir, os jovens cientistas. Um quarteto de doutorados
– Paula Soares, Hugo Prazeres, João Vinagre e Rui Batista – que fora capaz de
um “invento” promissor. O início de “múltiplas e demoradas conversações”,
comprovava que também se iniciava outra etapa.
“Queria ser o primeiro utilizador do
novo teste que eles tinham criado e depois fazer o que estivesse ao meu alcance
para que após aprovação, ele chegasse ao maior número de interessados” .
Esperou
– é sempre longo o caminho exigido aos dispositivos médicos antes de poderem
chegar ao mercado (aprovações, licenças, etc.) – e depois fez mesmo o que
“estava ao seu alcance”: criou uma
“uma parceria empresarial com a finalidade de colocar o teste, à disposição dos
doentes com este tipo de cancro em todo o mundo, num prazo razoável”. Após a
validação internacional realizada na Holanda no Hospital Universitário de
Nijmegen – reputado centro de referência desta patologia – o teste, baptizado
de Uromonitor foi registado em mais de cem países”.
3Apesar
da sua tenra idade a descoberta cientifica deu já origem a teses de doutoramento, em Portugal e
no estrangeiro; proporcionou a criação de uma Startup financiada pelo
mesmíssimo David Caldeira (sem que nunca houvesse necessidade de recorrer a
subsídios ou empréstimos bancários) e o Uromonitor foi apresentado no último
Congresso da Associação Portuguesa de Urologia, em Novembro passado, pelo
professor Nair Rajesh, urologista de um hospital londrino onde o teste está a
ser usado. Para
grandes males, grandes ambições de lhes pôr termo.
4É
claro que nada disto teria possível sem o esforço dos investigadores e o
trabalho dos cientistas, sobretudo sem a formidável qualidade do IPATIMUP.
Estamos a falar de inovação e ciência e não de paraquedistas bem intencionados.
Talvez David Caldeira venha até a ganhar dinheiro, tem
reputação de arguto e talentoso mas não foi isso que me interessou. Naquele almoço debruçado sobre o mar o que
se apreciou foi a invulgar colaboração entre a capacidade de iniciativa de um
cidadão comum e a ciência portuguesa. Transformando uma descoberta científica
num produto disponível que prestigia a nossa ciência e serve os pacientes, aqui
e mundo fora. A
“desinstalação” não é porém um tique, uma sorte ou um atributo, é uma decisão
de vida. Logo, com o poder de a mudar e longe andam de nós, seja em que domínio
for, compensadores exemplos de boas “desinstalações”.
5Que tem isto a ver com o Natal? Nada, dirão os distraídos ou os apressados. Pode ter,
sugiro eu. Participar
na promoção do bem comum tornando acessível um artefacto clínico que menoriza o
sofrimento, não é obviamente um exclusivo de efemérides religiosas ou de datas
celebratórias. Mas pode
torná-las menos ansiosas e mais doces, reduzindo a grande margem que separa a
saúde do sofrimento e haverá melhor motivo de festejo natalício?
6Há
dias o jesuíta Vasco
Pinto de Magalhães que não é um
radical, nem um ortodoxo, nem um duro de coração, antes um homem deste tempo –
inteligência fértil, aberta, lúcida, atentíssima – separou águas. Descendente,
herdeiro, continuador e propagador da civilização judaica-cristã, usou e ousou
de uma perplexidade vibrante, para perguntar “onde estava o festejado?”
neste Natal que ele queria “outro”:
“Entre
bolinhas, fitas e estrelas foram a pouco-e-pouco desaparecendo todos os sinais
pessoais do Natal. Não nasce nem nasceu ninguém. Acabou o presépio e até do pai
Natal que ainda era alguém, ficaram as renas. Esvaziaram tudo o que era
pessoal. Razões ideológicas ou económicas? Certamente as duas,
ajudam-se. Ficam as Boas Festas’ A quem? Porquê? Onde está o festejado?”
Outro Natal. Porque como também disse José Tolentino de Mendonça “os dias
24 e 25 passam depressa mas as questões que colocam à nossa humanidade são mais
do que lentas. São irremovíveis”.
Boas
Festas, caro leitor,
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