quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Para todos os efeitos


Natal é quando um homem quiser.

Disse-o Ary dos Santos, di-lo Maria João Avillez ao substituir – esta - o espalhafato natalício actual – enternecedor, mas certamente excessivo, para mais num mundo de contrastes tão gritantes – pelo gesto poderoso de eficácia de uma dádiva de um corpo doente para efeitos de tratamento a generalizar, num objectivo de excelência positiva na ordem do mundo.

Bonito o texto de Maria João Avillez, no seu discurso tão prático quanto amplo de intencionalidade generosa, mas, uma vez mais, ouçamos também o poema de Ary dos Santos,  tão real na sua poesia ampla de dimensão humana:

Quando um Homem Quiser

Tu que dormes à noite na calçada do relento
numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
és meu irmão, amigo, és meu irmão

E tu que dormes só o pesadelo do ciúme
numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
e sofres o Natal da solidão sem um queixume
és meu irmão, amigo, és meu irmão

Natal é em Dezembro
mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
é quando um homem quiser
Natal é quando nasce
uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto
que há no ventre da mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
tu que inventas bonecas e comboios de luar
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar
és meu irmão, amigo, és meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
és meu irmão, amigo, és meu irmão
Ary dos Santos, in 'As Palavras das Cantigas'

Outros Natais (2)

Naquele almoço sobre o mar o que se apreciou foi a invulgar colaboração entre a iniciativa de um cidadão comum e a ciência portuguesa.

MARIA JOÃO AVILLEZ

OBSERVADOR, 23 dez 2021

1Há dias na apresentação do meu último livro na Fundação Gulbenkian ouvi-me a mim própria dizer que a curiosidade fora muito cedo acolhida como um imperativo. Com o qual ando de roda das coisas para que a curiosidade valha a pena e se transfigure numa mediação com utilidade. Mas…apesar da curiosidade e para além dela, como escolher o que se conta? Eis tarefa sempre fornecedora da dúvida e foi a minha hoje: contar ou não contar?

O tema não é simpático, ninguém gosta de ouvir falar de doenças, a quadra natalícia pede pausas de enlevos mas a história vale pelo epílogo. E pelo guião, escrito em co-autoria por um português curioso e fazedor. Um “desinstalado”, melhor dizendo mas há-de haver gente neste Natal que lhe agradecerá o ele ter-se desinstalado.

2Era uma vez alguém com o costume de começar o dia abrindo o iPad para ler as novas do mundo. Corria o ano de 2016 quando num desses dias “tropeçou” numa notícia que subitamente lhe dizia directamente respeito: um grupo de cientistas portugueses do IPATIMUP do Porto, tinham sido premiados pela internacional Fundação Everis pela descoberta de um teste genético para a deteção do cancro da bexiga de uma forma completamente não invasiva. A espantosa novidade corporizava-se numa também espantosa coincidência.

“Dei um pulo na cadeira” lembra-se o co-autor deste “guião”, o madeirense David Caldeira, engenheiro químico, 74 anos, quando há tempos contou esta história num almoço no Funchal, onde – outra coincidência – eu me encontrava. O próprio David fora dez anos antes diagnosticado com a mesma doença, fizera três cirurgias, vivera uma saga com duas faces: numa estava um tumor normalmente não invasivo; na outra, o risco de ele ressurgir, obrigando a alta vigilância e exames periódicos e desconfortáveis. Entre a leitura da noticia e a vontade de saber mais, David Caldeira procurou o professor Sobrinho Simões, director do IPATIMUP, a seguir, os jovens cientistas. Um quarteto de doutorados – Paula Soares, Hugo Prazeres, João Vinagre e Rui Batista – que fora capaz de um “invento” promissor. O início de “múltiplas e demoradas conversações”, comprovava que também se iniciava outra etapa.

“Queria ser o primeiro utilizador do novo teste que eles tinham criado e depois fazer o que estivesse ao meu alcance para que após aprovação, ele chegasse ao maior número de interessados” .

Esperou – é sempre longo o caminho exigido aos dispositivos médicos antes de poderem chegar ao mercado (aprovações, licenças, etc.) – e depois fez mesmo o que “estava ao seu alcance”: criou uma “uma parceria empresarial com a finalidade de colocar o teste, à disposição dos doentes com este tipo de cancro em todo o mundo, num prazo razoável”. Após a validação internacional realizada na Holanda no Hospital Universitário de Nijmegen – reputado centro de referência desta patologia – o teste, baptizado de Uromonitor foi registado em mais de cem países”.

3Apesar da sua tenra idade a descoberta cientifica deu já origem a teses de doutoramento, em Portugal e no estrangeiro; proporcionou a criação de uma Startup financiada pelo mesmíssimo David Caldeira (sem que nunca houvesse necessidade de recorrer a subsídios ou empréstimos bancários) e o Uromonitor foi apresentado no último Congresso da Associação Portuguesa de Urologia, em Novembro passado, pelo professor Nair Rajesh, urologista de um hospital londrino onde o teste está a ser usado. Para grandes males, grandes ambições de lhes pôr termo.

4É claro que nada disto teria possível sem o esforço dos investigadores e o trabalho dos cientistas, sobretudo sem a formidável qualidade do IPATIMUP. Estamos a falar de inovação e ciência e não de paraquedistas bem intencionados. Talvez David Caldeira venha até a ganhar dinheiro, tem reputação de arguto e talentoso mas não foi isso que me interessou. Naquele almoço debruçado sobre o mar o que se apreciou foi a invulgar colaboração entre a capacidade de iniciativa de um cidadão comum e a ciência portuguesa. Transformando uma descoberta científica num produto disponível que prestigia a nossa ciência e serve os pacientes, aqui e mundo fora. A “desinstalação” não é porém um tique, uma sorte ou um atributo, é uma decisão de vida. Logo, com o poder de a mudar e longe andam de nós, seja em que domínio for, compensadores exemplos de boas “desinstalações”.

5Que tem isto a ver com o Natal? Nada, dirão os distraídos ou os apressados. Pode ter, sugiro eu. Participar na promoção do bem comum tornando acessível um artefacto clínico que menoriza o sofrimento, não é obviamente um exclusivo de efemérides religiosas ou de datas celebratórias. Mas pode torná-las menos ansiosas e mais doces, reduzindo a grande margem que separa a saúde do sofrimento e haverá melhor motivo de festejo natalício?

6Há dias o jesuíta Vasco Pinto de Magalhães que não é um radical, nem um ortodoxo, nem um duro de coração, antes um homem deste tempo – inteligência fértil, aberta, lúcida, atentíssima – separou águas. Descendente, herdeiro, continuador e propagador da civilização judaica-cristã, usou e ousou de uma perplexidade vibrante, para perguntar “onde estava o festejado?” neste Natal que ele queria “outro”:

“Entre bolinhas, fitas e estrelas foram a pouco-e-pouco desaparecendo todos os sinais pessoais do Natal. Não nasce nem nasceu ninguém. Acabou o presépio e até do pai Natal que ainda era alguém, ficaram as renas. Esvaziaram tudo o que era pessoal. Razões ideológicas ou económicas? Certamente as duas, ajudam-se. Ficam as Boas Festas’ A quem? Porquê? Onde está o festejado?”

Outro Natal. Porque como também disse José Tolentino de Mendonça “os dias 24 e 25 passam depressa mas as questões que colocam à nossa humanidade são mais do que lentas. São irremovíveis”.

Boas Festas, caro leitor,

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