Também gostamos dos
escritos voltados para o eu, como é o de tantos poetas, virados para o mundo
intemporal, (embora alguns desses também para a alteridade, Cesário sendo
referência sempre admirável), a que o sentido de universalidade imprime uma amplitude
de pensamento elevado, que quadra melhor a esses leitores, pelo sentido mais
abstracto do seu discurso, quer este tome a via poética, quer a satírica, quer a de
reflexão humanista, própria desses tempos em que a política
não avassalava o mundo com tanta gritaria, mais contidos os humanos, talvez,
nos seus espaços mais reduzidos, porque conquistados pelo esforço titânico da
bravura pessoal, e não descobertas ainda as teorias da fraternidade universal,
impondo a sua empatia de exclusividade benemérita, e especificidade na exclusão,
através da selvajaria tribal, em voga. O mundo de hoje sendo cada vez mais
amplo em espaços de confronto, mais acessíveis aos adeptos dos meios de acção
mais sofisticados, tecnologicamente falando, e talvez mais perversos, porque de
mais amplo alcance. Quanto a mim, eles não preenchem, talvez, tanto, as nossas
ânsias de espiritualidade, dados os espaços da coscuvilhice pessoal ou alheia, nele
subentendidos, que me parece ser o caso de algumas das obras citadas por João Carlos Espada. Prefiro, realmente, os clássicos. Talvez, é certo, por ignorância. Ou por cansaço.
Livros para o Natal
Em vez de guerras entre tribos,
classes, gerações, ou ideologias, seria melhor recordarmos a permanente
conversação pluralista como tranquilo distintivo das nossas sociedades livres
ocidentais.
João Carlos Espada
OBSERVADOR, 20 dez
2021
Retomando
uma longa e bem estabelecida tradição — que não foi centralmente desenhada por
qualquer autoridade central— volto à clássica sugestão de livros para assinalar a quadra Natalícia.
1A
minha primeira e muito enfática sugestão vai para o Volume Zero das Obras Completas de Mário Soares, um notável projecto da Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, sob a direção de José Manuel dos Santos — que foi recentemente
apresentado na Fundação Gulbenkian com a presença do Presidente da República e
do Primeiro-Ministro. O empreendimento terá 15, talvez 20 volumes, ainda não
se sabe exactamente. É um projecto notável que merece ser acarinhado. Em
primeiro lugar, sem qualquer dúvida, porque Mário Soares foi um dos principais
pais-fundadores da nossa democracia. Mas/e também porque realça o papel crucial
que as ideias e os ideais desempenham na acção política.
Esta
nobre — não sei se me atreva a dizer aristocrática— dimensão da vida política
está hoje infelizmente esquecida: pelo tribalismo político, de esquerda e de
direita, que domina as redes sociais; bem como, receio ter de mencionar, pelo
abaixamento dos padrões de grande parte dos debates políticos, incluindo entre
os políticos.
2Também
num registo não-tribal recomendo o mais recente livro de Andrew Roberts, biógrafo de Winston Churchill, sobre o Rei
George III: The Last King of America: The
Misunderstood Reign of George III (Viking/Allen Lane). Conheço bem Andrew Roberts, que tem vindo a
Portugal a meu convite, mas receio ter de confessar que ainda não li o
livro — que vem sendo abundantemente referido pela imprensa
internacional. The Economist recomenda o livro, dizendo que se
trata de uma defesa ‘Tory’ [conservadora] de um monarca mal interpretado e
que Andrew Roberts sustenta ter sido respeitador de regras gerais e do
protocolo, bem como da democracia parlamentar.
Não
posso esconder a minha curiosidade perante este argumento de Andrew Roberts. Em
primeiro lugar, porque o liberal-conservador Churchill, biografado por
Roberts, criticou George III e defendeu a Declaração de Independência americana
de 1776 contra ‘o último rei da América ‘. Em segundo lugar, porque
Edmund Burke, um clássico liberal-conservador que condenou o despotismo
‘iluminado’ da Revolução Francesa, também tinha criticado severamente a
intolerância do Rei George III para com as reivindicações dos colonos ingleses
na América— os quais, segundo Burke, basicamente reivindicavam o respeito pelas
‘liberdades inglesas’ na América.
Mas
Andrew Roberts é certamente um grande historiador e este seu novo livro
certamente merece ser tomado em séria conta. Estimulará seguramente um
debate não-tribal sobre um momento crucial da história moderna — o nascimento
da ‘primeira nova nação’, como lhe chamou o nosso saudoso amigo Seymour Martin
Lipset.
3Uma
genuína expressão de não-tribalismo reside certamente no facto de Andrew Roberts ter
apresentado o seu livro em defesa de George III em Monticello, residência de
Thomas Jefferson, um dos pais-fundadores da República Americana, fundador da
distinta Universidade de Virginia, e crítico veemente de George III.
Uma palavra de reconhecimento é aqui
devida ao nosso amigo Andrew O’Shaughnessy — vice-presidente da Thomas
Jefferson Foundation em Monticello e professor na Universidade de Virginia —
que foi anfitrião da apresentação do livro de Andrew Roberts sobre George
III. O’Shaughnessy, a propósito, é um
grande amigo de Portugal (e da brandura de costumes do Estoril), onde seus pais
tiveram casa de férias durante várias décadas; e é também um frequente
participante no Estoril Political Forum, promovido pelo IEP-UCP.
Recentemente, apresentou entre nós (via zoom) o seu livro mais recente, que
também muito recomendo: The Illimitable Freedom of the Human Mind:
Thomas Jefferson’s Idea of a University (University of Virginia Press).
4Uma
quarta sugestão não-tribal vai para o livro de Adrian Wooldridge, muito distinto colunista da revista The
Economist, sobre The Aristocracy
of Talent: How Meritocracy Made the Modern World(Allen Lane). Trata-se de um muito sofisticado argumento sobre os
efeitos perversos de ideias respeitáveis, quando são levadas a versões extremas.
Uma
dessas ideias respeitáveis é a de que simples selecção escolar fundado no
mérito pode ocultar uma profunda desigualdade social fundada na condição
económica das famílias. Em
contrapartida, a ideia oposta de contrariar esta desigualdade através da
abolição da seleção escolar fundada no mérito conduz a um abaixamento geral dos
padrões e a um regresso a uma aristocracia fundada no berço.
Por outras palavras, precisamos de um
equilíbrio gentlemanly entre extremos rivais: não devemos aceitar o
abaixamento de padrões inerente à abolição da selecção escolar fundada no
mérito; por outro lado, não devemos interpretar o sucesso fundado no mérito
como fonte de arrogância meritocrática contra quem não obteve sucesso.
Voltarei
seguramente a este tema crucial para uma sociedade livre — que deve ser
simultaneamente meritocrática e inclusiva. Nos bons velhos tempos,
isto implicava o [poderei dizer ‘aristocrático’?] mandamento
Vitoriano de um gentleman não se levar demasiado a sério, mas de
levar muito a sério os seus deveres.
5Uma
adicional referência não-tribal ao livro de Bruce
Clark sobre um dos pilares da nossa
civilização ocidental, distinguida pela permanente conversação pluralista e
civilizada entre perspectivas rivais: Athens: City of Wisdom (Pegasus). Trata-se de uma eloquente chamada de atenção para que
a nossa civilização ocidental não foi centralmente desenhada por ninguém —
certamente não pelos déspotas esclarecidos do Iluminismo, ou do
contra-Iluminismo, continental. A nossa civilização ocidental simplesmente
emergiu, fundada numa conversação moderada e civilizada entre perspectivas
diferentes, muitas vezes rivais. Atenas é certamente aqui uma referências
crucial —em conversação com Roma e Jerusalém.
6E
ainda uma referência não-tribal ao livro de Bobby
Duffy, Generations, (Atlantic Books). Aí é registada a crescente discrepância de
disposições políticas entre as gerações: os mais
velhos são mais conservadores, os mais novos mais radicalmente ‘progressistas’,
hoje auto-designados ‘woke’. Numa era
dominada pelas chamadas ‘políticas de identidade de grupos [ou de tribos]’,
isto poderia sugerir a conclusão de que existe hoje uma luta de classes [ou
de tribos] entre gerações.
Mas
Bobby Duff apresenta abundante evidência empírica que mostra que a
disparidade ideológica entre gerações convive simultaneamente com solidariedade
de afectos. Os mais velhos preocupam-se com os projectos de vida
dos mais novos e estes também se preocupam com as condições de reforma dos mais
velhos.
7Creio que está aqui mais uma profunda
mensagem não-tribal. Em vez de vermos em tudo sinais de uma luta irredentista
entre tribos, classes, gerações, ou ideologias, seria melhor encararmos a
permanente conversação pluralista como tranquilo distintivo das nossas
sociedades livres ocidentais.
Como
escrevia o liberal-conservador The Telegraph de Londres, esta é a principal mensagem pluralista do Natal. E esta também foi a mensagem do muito saudoso Karl Popper,
destacado defensor da Sociedade Aberta contra os seus inimigos colectivistas,
comunistas e fascistas. Enfatizou
ele o crucial contributo do Cristianismo para a emergência da Sociedade Aberta
do Ocidente. E recordou que Jesus Cristo recomendou “amar o próximo” e não
“amar a tribo”.
Votos
de Feliz Natal.
LIVROS
LITERATURA CULTURA NATAL SOCIEDADE
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