segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Leituras viradas para o outro

 

Também gostamos dos escritos voltados para o eu, como é o de tantos poetas, virados para o mundo intemporal, (embora alguns desses também para a alteridade, Cesário sendo referência sempre admirável), a que o sentido de universalidade imprime uma amplitude de pensamento elevado, que quadra melhor a esses leitores, pelo sentido mais abstracto do seu discurso, quer este tome a via poética, quer a satírica, quer a de reflexão humanista, própria desses tempos em que a política não avassalava o mundo com tanta gritaria, mais contidos os humanos, talvez, nos seus espaços mais reduzidos, porque conquistados pelo esforço titânico da bravura pessoal, e não descobertas ainda as teorias da fraternidade universal, impondo a sua empatia de exclusividade benemérita, e especificidade na exclusão, através da selvajaria tribal, em voga. O mundo de hoje sendo cada vez mais amplo em espaços de confronto, mais acessíveis aos adeptos dos meios de acção mais sofisticados, tecnologicamente falando, e talvez mais perversos, porque de mais amplo alcance. Quanto a mim, eles não preenchem, talvez, tanto, as nossas ânsias de espiritualidade, dados os espaços da coscuvilhice pessoal ou alheia, nele subentendidos, que me parece ser o caso de algumas das obras citadas por João Carlos Espada. Prefiro, realmente, os clássicos. Talvez, é certo, por ignorância. Ou por cansaço.

 

Livros para o Natal

Em vez de guerras entre tribos, classes, gerações, ou ideologias, seria melhor recordarmos a permanente conversação pluralista como tranquilo distintivo das nossas sociedades livres ocidentais.

João Carlos Espada

OBSERVADOR, 20 dez 2021

Retomando uma longa e bem estabelecida tradição — que não foi centralmente desenhada por qualquer autoridade central— volto à clássica sugestão de livros para assinalar a quadra Natalícia.

1A minha primeira e muito enfática sugestão vai para o Volume Zero das Obras Completas de Mário Soares, um notável projecto da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, sob a direção de José Manuel dos Santos — que foi recentemente apresentado na Fundação Gulbenkian com a presença do Presidente da República e do Primeiro-Ministro. O empreendimento terá 15, talvez 20 volumes, ainda não se sabe exactamente. É um projecto notável que merece ser acarinhado. Em primeiro lugar, sem qualquer dúvida, porque Mário Soares foi um dos principais pais-fundadores da nossa democracia. Mas/e também porque realça o papel crucial que as ideias e os ideais desempenham na acção política.

Esta nobre — não sei se me atreva a dizer aristocrática— dimensão da vida política está hoje infelizmente esquecida: pelo tribalismo político, de esquerda e de direita, que domina as redes sociais; bem como, receio ter de mencionar, pelo abaixamento dos padrões de grande parte dos debates políticos, incluindo entre os políticos.

2Também num registo não-tribal recomendo o mais recente livro de Andrew Roberts, biógrafo de Winston Churchill, sobre o Rei George III: The Last King of America: The Misunderstood Reign of George III (Viking/Allen Lane). Conheço bem Andrew Roberts, que tem vindo a Portugal a meu convite, mas receio ter de confessar que ainda não li o livro — que vem sendo abundantemente referido pela imprensa internacional. The Economist recomenda o livro, dizendo que se trata de uma defesa ‘Tory’ [conservadora] de um monarca mal interpretado e que Andrew Roberts sustenta ter sido respeitador de regras gerais e do protocolo, bem como da democracia parlamentar.

Não posso esconder a minha curiosidade perante este argumento de Andrew Roberts. Em primeiro lugar, porque o liberal-conservador Churchill, biografado por Roberts, criticou George III e defendeu a Declaração de Independência americana de 1776 contra ‘o último rei da América ‘. Em segundo lugar, porque Edmund Burke, um clássico liberal-conservador que condenou o despotismo ‘iluminado’ da Revolução Francesa, também tinha criticado severamente  a intolerância do Rei George III para com as reivindicações dos colonos ingleses na América— os quais, segundo Burke, basicamente reivindicavam o respeito pelas ‘liberdades inglesas’ na América.

Mas Andrew Roberts é certamente um grande historiador e este seu novo livro certamente merece ser tomado em séria conta. Estimulará seguramente um debate não-tribal sobre um momento crucial da história moderna — o nascimento da ‘primeira nova nação’, como lhe chamou o nosso saudoso amigo Seymour Martin Lipset.

3Uma genuína expressão de não-tribalismo reside certamente no facto de Andrew Roberts ter apresentado o seu livro em defesa de George III em Monticello, residência de Thomas Jefferson, um dos pais-fundadores da República Americana, fundador da distinta Universidade de Virginia, e crítico veemente de George III.

Uma palavra de reconhecimento é aqui devida ao nosso amigo Andrew O’Shaughnessy — vice-presidente da Thomas Jefferson Foundation em Monticello e professor na Universidade de Virginia — que foi anfitrião da apresentação do livro de  Andrew Roberts sobre George III. O’Shaughnessy, a propósito, é um grande amigo de Portugal (e da brandura de costumes do Estoril), onde seus pais tiveram casa de férias durante várias décadas; e é também um frequente participante no Estoril Political Forum, promovido pelo IEP-UCP.  Recentemente, apresentou entre nós (via zoom) o seu livro mais recente, que também muito recomendo: The Illimitable Freedom of the Human Mind: Thomas Jefferson’s Idea of a University (University of Virginia Press).

4Uma quarta sugestão não-tribal vai para o livro de Adrian Wooldridge, muito distinto colunista da revista The Economist, sobre The Aristocracy of Talent: How Meritocracy Made the Modern World(Allen Lane). Trata-se de um muito sofisticado argumento sobre os efeitos perversos de ideias respeitáveis, quando são levadas a versões extremas.

Uma dessas ideias respeitáveis é a de que simples selecção escolar fundado no mérito pode ocultar uma profunda desigualdade social fundada na condição económica das famílias. Em contrapartida, a ideia oposta de contrariar esta desigualdade através da abolição da seleção escolar fundada no mérito conduz a um abaixamento geral dos padrões e a um regresso a uma aristocracia fundada no berço.

Por outras palavras, precisamos de um equilíbrio gentlemanly entre extremos rivais: não devemos aceitar o abaixamento de padrões inerente à abolição da selecção escolar fundada no mérito; por outro lado, não devemos interpretar o sucesso fundado no mérito como fonte de arrogância meritocrática contra quem não obteve sucesso.

Voltarei seguramente a este tema crucial para uma sociedade livre — que deve ser simultaneamente meritocrática  e inclusiva. Nos bons velhos tempos, isto implicava o [poderei dizer ‘aristocrático’?] mandamento Vitoriano de um gentleman não se levar demasiado a sério, mas de levar muito a sério os seus deveres.

5Uma adicional referência não-tribal ao livro de Bruce Clark sobre um dos pilares da nossa civilização ocidental, distinguida pela permanente conversação pluralista e civilizada entre perspectivas rivaisAthens: City of Wisdom (Pegasus). Trata-se de uma eloquente chamada de atenção para que a nossa civilização ocidental não foi centralmente desenhada por ninguém — certamente não pelos déspotas esclarecidos do Iluminismo, ou do contra-Iluminismo, continental. A nossa civilização ocidental simplesmente emergiu, fundada numa conversação moderada e civilizada entre perspectivas diferentes, muitas vezes rivais. Atenas é certamente aqui uma referências crucial —em conversação com Roma e Jerusalém.

6E ainda uma referência não-tribal ao livro de Bobby Duffy, Generations, (Atlantic Books). Aí é registada a crescente discrepância de disposições políticas entre as gerações: os mais velhos são mais conservadores, os mais novos mais radicalmente ‘progressistas’, hoje auto-designados ‘woke’. Numa era dominada pelas chamadas ‘políticas de identidade de grupos [ou de tribos]’, isto poderia sugerir a conclusão de que existe hoje uma luta de classes [ou de tribos] entre gerações.

Mas Bobby Duff apresenta abundante evidência empírica que mostra que a disparidade ideológica entre gerações convive simultaneamente com solidariedade de afectos. Os mais velhos preocupam-se com os projectos de vida dos mais novos e estes também se preocupam com as condições de reforma dos mais velhos.

7Creio que está aqui mais uma profunda mensagem não-tribal. Em vez de vermos em tudo sinais de uma luta irredentista entre tribos, classes, gerações, ou ideologias, seria melhor encararmos a permanente conversação pluralista como tranquilo distintivo das nossas sociedades livres ocidentais.

Como escrevia o liberal-conservador The Telegraph de Londres, esta é a principal mensagem pluralista do Natal. E esta também foi a mensagem do muito saudoso Karl Popper, destacado defensor da Sociedade Aberta contra os seus inimigos colectivistas, comunistas e fascistas. Enfatizou ele o crucial contributo do Cristianismo para a emergência da Sociedade Aberta do Ocidente. E recordou que Jesus Cristo recomendou “amar o próximo” e não “amar a tribo”.

Votos de Feliz Natal.

LIVROS    LITERATURA    CULTURA    NATAL    SOCIEDADE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nenhum comentário: