terça-feira, 14 de dezembro de 2021

De estarrecer, sempre

 

A maldade humana. Desde sempre. Para sempre.

Elie Wiesel, o Tzadik

Da noite dos seus quinze anos, Wiesel tirou uma força pouco comum. A de testemunhar não só pelos mortos do seu próprio povo mas por todas as vítimas da opressão, do sofrimento e da injustiça.

ESTHER MUCZNIK

OBSERVADOR, 04 jul 2016, 21:4422

Terá sido Elie Wiesel, um Tzadik, um dos trinta e seis Justos que, segundo uma antiga lenda talmúdica, salvam o mundo em cada geração? Nunca o saberemos porque, segundo a mesma lenda, ninguém os conhece e eles próprios ignoram que é a sua presença que mantém a Criação. O que sabemos de Elie Wiesel é que foi e permanecerá a eterna testemunha do Holocausto, assombrado pela memória, atormentado pela injustiça, obcecado pela interrogação permanente: como foi possível?

Elie Wiesel sobreviveu a Auschwitz-Birkenau, e aos seus campos de trabalhos forçados de Monowitz/Buna, e finalmente a Buchenwald, “capitais nocturnas de um reino estranho, imenso e intemporal onde, soberana, a morte terá tomado o rosto de Deus assim como os seus atributos sobre o céu e sobre a terra, até mesmo no coração dos homens”. Tinha 15 anos e viu serem engolidos pelas trevas a mãe, o pai, e uma irmã. A matrícula A-7713 ficará sempre gravada a fogo na sua alma: toda a sua obra será inspirada por esse ano maldito, embora apenas um livro, A Noite, escrito em 1958, narre o seu itinerário pessoal nos campos nazis e a morte do pai.

No mundo dos sobreviventes, Wiesel ocupa um lugar aparte. Nascido em Sighet, pequeno burgo judaico da Transilvânia nas montanhas dos Cárpatos, toda a sua infância é ritmada pela vivência tranquila do shtetl — essas aldeias de maioria judaica do leste europeu –, em conversação permanente com Deus: primeiro no Heder, a escola primária judaica, mais tarde na Yeshiva, academia de estudos talmúdicos onde estuda a Torá e o Talmude, embalado pelos contos e lendas hassídicas, sempre narradas em Iídiche. A criança que acompanhando a sua comunidade chorava a destruição do Templo e se iniciava nos mistérios da Cabala, como forma de apressar a vinda do Messias, descobre brutalmente o Mal absoluto e não esquecerá:Não esquecerei nunca esses instantes que assassinaram o meu Deus e a minha alma, e os meus sonhos que tomaram o rosto do deserto”.

O seu rosto atormentado, os sulcos que retalham as suas faces, dizem-nos o que foi a sua vida: um combate permanente contra o esquecimento, essa “segunda morte”, uma batalha incessante contra a injustiça, um questionamento interminável. Como grande parte dos sobreviventes, Elie Wiesel sentia-se de alguma forma culpado por ter sobrevivido: Porquê eu? Porquê eu que nada fiz para o merecer? Desse questionamento angustiado nasce a determinação de ser a voz dos que já não estão, dos que beberam o cálice até ao fim. Mas não só. Da noite dos seus quinze anos, Wiesel tirou uma força pouco comum. A de testemunhar não só pelos mortos do seu próprio povo mas por todas as vítimas da opressão, do sofrimento e da injustiça. Auschwitz, crime único, atroz e sem perdão, é também, do seu ponto de vista, uma advertência à humanidade … E o Judeu, como expressão da condição humana levada ao extremo.

Elie Wiesel foi toda a vida apoiante de Israel, embora se considerasse sempre como um judeu da Diáspora e um sionista religioso: “Não moro em Jerusalém, mas Jerusalém vive em mim”. Na sua entrevista a Brigitte Fanny Cohen, confessa no entanto ter algum sentimento de culpabilidade em relação a Israel.Sinto-me incompleto porque não vivo lá”. Para ele, Israel incarnava o destino judaico constantemente sob ameaça de destruição: em 1967, quando as feridas do Holocausto ainda sangravam e o mundo judaico revivia o temor do extermínio, Wiesel vai a Israel em plena guerra como forma de expressar a sua solidariedade profunda.

Para um homem profundamente religioso como era Wiesel antes do Holocausto, o “silêncio de Deus” na época é uma questão lancinante que percorre muitos dos seus livros. Mas esta questão nunca é resolvida pela perda da fé. Para Wiesel a dúvida resolve-se pelo questionamento, pelo debate intimo, através da conversação milenária que os judeus entretêm com Deus. Antes do Holocausto, a religião era para ele aceitação; depois de Auschwitz é sinónimo de revolta. À boa maneira judaica, no seguimento de Abraão, Moisés ou Job, o dialogo com o divino inclui a discussão, o afrontamento e desafio: Acreditar em Deus, apesar de Deus; “Só o homem que sabe reconhecer o Deus oculto pode exigir a sua “desocultação”, escreveu Levinas. Wiesel subscreve: “Com ou contra Deus, mas nunca sem Ele”.

Numa conferência dada em Nova Iorque em 1975, publicada por Brigitte F. Cohen, Wiesel conta que um dos trinta e seis justos fora a Sodoma tentar salvar os seus habitantes do pecado e do castigo. Andara noite e dia por toda a cidade pregando contra a avidez e o roubo, a mentira e a indiferença – em particular contra a indiferença. Mas ninguém o ouvia e o mal continuava a ser perpetrado, até que uma criança, com pena dele, perguntou-lhe: “Pobre estrangeiro, porque gritas? Dia após dia, ouço-te, vejo-te, e ninguém te escuta, ninguém te liga. Não vês que é sem esperança? “Eu sei”, responde o justo: “No início eu acreditava que podia mudar os homens. Mas hoje sei que não o conseguirei. E se grito ainda hoje, se grito com uma convicção ainda maior, com mais fervor, é para que os homens, a mim, não me possam mudar.” Quem sabe, talvez Elie Wiesel tenha sido o Justo da Sodoma dos nossos dias

HOLOCAUSTO  HISTÓRIA   CULTURA   OBITUÁRIO   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

Utilizador Removido,20/07/2018: Li a "noite" e fiquei com uma dúvida sobre a parte final desta obra onde Wiesel refere que ele e o seu pai decidiram, em janeiro de 1945, acompanhar voluntariamente os carrascos dos nazis para campos de concentração,  mais a oeste (Buchenwald), no território da Alemanha, em vez de aguardar a chegada dos libertadores soviéticos que chegariam poucos dias depois. Situação tanto mais insólita uma vez que Wiesel estaria ferido num pé e teria dificuldade em andar.            Fernando Fernande, 06/07/2016: É um prazer ler o seu escrito e seus livros. Parabéns!         Man Jean-Pierre Thiran 05/07/2016: Esther Mucznik em mais uma ladainha Judia...em geral, fazem o papel de vítimas...mas o que importa sublinhar hoje é que os Judeus fazem aos Palestinianos à décadas é uma versão Light do gueto de Varsóvia - está lá tudo - o confinamento, as humilhações, as rusgas, as invasões e destruições de casas, o estrangulamento económico e a fome, as expropriações e até a tortura de jovens ou o seu assassinato em plena luz do dia (bem documentado na Internet) - o Estado Judaico está ao orgulho das SS...mas se lhe restam dúvidas aqui vai um testemunho de um Judeu lúcido e integro !...https://www.youtube.com/watch?v=P-QNP4Zw-KQ           SAAda SA > Jean-Pierre Thiran 05/07/2016: Os judeus são uns mauzinhos, que fazem tudo isso apenas porque querem e podem, nada mais. São terríveis.              jorge pichel > SAAda SA 05/07/2016: Não os judeus. Os sionistas que são uma religião fundamentalista e extremista que não hesita em actos de terror como foi o caso da matança de Gaza.  Jean-Pierre Thiran > SAAda SA 05/07/2016: cresce a aparece            SAAda SA > Jean-Pierre Thiran, 05/07/2016: Ai que medo!         SAAda SA > jorge pichel, 05/07/2016: É isso, claro. Um horror. jorge pichel, 04/07/2016: Messianismo genocida israelense mergulha infelizmente as suas raízes no discurso dos antepassados remotos. O livro de Josué conta o que os hebreus deveriam fazer após atravessar o Jordão: «Yahvé, o teu Deus, escolheu-te como povo especial, mais do que todos os povos da Terra (cap.7, versículo 6). E eles destruíram a fio de espada tudo o que existia na cidade: homens e mulheres, jovens e velhos, mesmo os bois, as ovelhas e os burros (cap,8,versículos 24 e 26).O movimento de condenação da chacina de Gaza que alastra pelo mundo justifica-se plenamente.         Miguel Carvalho 05/07/2016: "A de testemunhar não só pelos mortos do seu próprio povo mas por todas as vítimas da opressão, do sofrimento e da injustiça". Desde que não sejam palestinianos, não é D. Ester? Esses podem ser bombardeados e morrer aos milhares, sempre que o  Netanyahu acorda mal disposto, com o apoio entusiasmado do povo de Israel.               SAAda SA > Manuel Carvalho, 05/07/2016: É isso, pá, os palestinianos são bombardeados porque o tipo acorda mal-disposto. Pois, porreiro, ainda bem que ficamos todos esclarecidos. Manuel Carvalho > SAAda SA 05/07/2016: Se o Netanyahu fosse o líder de um qualquer país africano, já tinha apanhado 30 anos de cadeia no TPI. Em 2014, Israel bombardeou Gaza e matou mais de 500 crianças, num total de 2079 palestinianos,      Fernando Fernandes > Manuel Carvalho 06/07/2016: Pouco conhecimento do que fala.    josé maria,   04/07/2016: Os judeus sofreram os horror do Holocausto. E deveriam tirar dessa terrível e trágica experiência alguma elementar lição de Humanidade. Mas não. Ao colocarem os palestinianos no gueto de faixa de Gaza, estão a incorrer num comportamento similar ao dos nazis, quando encerraram os judeus no pavor do gueto de Varsóvia.         SAAda SA josé maria 05/07/2016: Tem mesmo tudo a ver. Que bom saberes isso e compartilhares connosco.          Antepassados no NKVD, rapaz, 04/07/2016: Foi uma das vítimas da barbárie nazi. Mas depois tornou-se apoiante de outra barbárie semelhante à nazi, a barbárie sionista. Merece o nosso reconhecimento pela primeira parte da sua vida. Mas não o merece pelo que depois se tornou.

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