Aprendendo, repetindo, aplicando. Com os
que primeiro usaram as palavras, por vezes noutros sentidos, mas que nos podem
servir, ainda que por mero pedantismo retórico. Não fora a leitura dos
escritores latinos e gregos por alturas do Humanismo renascentista, com
palavras trazidas directamente, por via erudita, para as suas obras – e
posteriormente adaptadas à língua comum - continuaríamos a deturpar e a
empobrecer cada vez mais os romanços vulgares. Os requintes de linguagem,
afinal, ainda que provenientes tantas vezes, de preciosismos retóricos, (e que a
evolução tecnológica e científica propõe igualmente ao longo dos tempos) – mas
que ajudaram na criação dos engenhos literários, por exemplo, não deixam de ir
valorizando os discursos – pese embora o magnífico texto satírico de Paulo Tunhas, troçando da ministra, a propósito da “resiliência”
pairando abusivamente, ameaçadora da nossa pacatez mortiça - e destacando a
classe médica, como excepção necessária da sua importância – para bem do
Governo e da Nação, que da tal resiliência
precisam, por diferentes razões, embora.
“Resiliência”
A pobre ministra não tem obviamente
instrumentos intelectuais que lhe permitam resistir a uma tão grande magia e a
palavra saiu-lhe da boca mecanicamente, como se não passasse de um puro
autómato.
PAULO TUNHAS
OBSEVADOR, 02 dez
2021
Na
semana passada, a ministra Marta Temido declarou que um dos critérios para futura
contratação de médicos para o SNS seria a sua “resiliência”. A coisa, pela
inevitável sugestão de que o actual pessoal do Serviço Nacional de Saúde não
seria suficientemente “resiliente”, gerou indignação pública. Até o
bastonário da Ordem dos Médicos, o sempre urbano Miguel Guimarães, levantou a
possibilidade de uma demissão da ministra, que depois, emocionada, veio
pedir desculpa pelas suas palavras, que teriam sido mal interpretadas, tese
partilhada de modo vibrante por Sónia Fertuzinhos, ornamento maior da
bancada do PS na Assembleia da República. Mas as desculpas e a defesa veemente
da ministra não chegam para esconder o facto gritante do seu desprezo
esquerdista pelas reivindicações de boas condições de trabalho por médicos e
enfermeiros (a glória de servir o Estado é para Marta Temido recompensa
bastante) nem a evidência de ela se encontrar na triste situação
de presidir ao processo de destruição do SNS.
Neste
contexto, parecerá estranho que se venha manifestar alguma compreensão pela
ministra. É, no entanto, isso que me proponho hoje fazer. Não nego a
intencionalidade perversa no uso da palavra “resiliência”. Mas há condições
atenuantes. Uma delas, talvez a maior, é de ordem muito geral e prende-se com o
modo como as pessoas se relacionam com a linguagem. Supor-se-ia que a
linguagem, entre as suas várias dimensões, comportasse a função de designar
eficazmente os múltiplos aspectos da realidade exterior, ajudando-nos a
identificá-los da forma menos equívoca possível. Ora, se é verdade que, no
campo das ciências, tal se obtém com razoável sucesso, as coisas mudam
radicalmente de aspecto no domínio da política, onde tudo é, na sua essência,
muito mais ambíguo, por razões que não são conjunturais, mas estruturais. E
este particular problema da linguagem política – que é a linguagem que, nas
suas múltiplas variantes, falamos no dia-a-dia – ganha proporções inéditas
em situações de crise da vida social, quando, por exemplo, ao poder convém
criar uma realidade alternativa que distraia as pessoas dos problemas concretos
que afectam a sociedade.
Multiplicam-se
então, com extraordinária profusão, expressões que se utilizam como se se
referissem a ideias claras e bem definidas, quando, com muita boa vontade, designam
apenas arremedos de conceitos sem unidade efectiva e insusceptíveis de
determinar o que quer que seja. A utilização dessas expressões não supõe
qualquer actividade do espírito, apenas uma passiva receptividade às palavras
que circulam no ar do tempo e uma declarada vocação para as papaguear com
apaixonado entusiasmo, como quem assobia no escuro para afastar de si o
legítimo e justificado medo da ausência de pensamento.
“Resiliência” é apenas uma destas palavras. Desde que António Costa a pôs em circulação – e
avisou, na devida altura, que a iríamos ouvir muitas vezes –, ela
aparece em todo o lado, a propósito ou a despropósito, como um sinal mágico que
é suposto produzir um encantamento instantâneo. A pobre ministra não tem
obviamente instrumentos intelectuais que lhe permitam resistir a uma tão grande
magia, e, como a Dra. Graça Freitas com a sua querida “evidência científica”, a
palavra saiu-lhe da boca mecanicamente, como se não passasse de um puro
autómato. Sem dúvida que, fazendo parte do Governo, ela é uma parte
interessada na mistificação – mas é igualmente uma sua vítima, já que por essa
mistificação ela própria se encontra envolvida. É um caso mais comum do que
parece.
Seria
ocioso pretender enumerar as várias expressões que, hoje em dia, cumprem a
mesma função encantatória que a palavra “resiliência”. Mas, para dar uma ideia
mais clara do vazio de pensamento que produz tal florilégio de expressões,
talvez não seja inútil mencionar um ou outro espécime.
Tomemos,
por exemplo, a expressão “justiça climática”.
Não há dia em que não a ouçamos mencionada em jornais televisivos, com
justiceira convicção. No entanto, não há nenhuma ideia precisa à qual ela se
refira. Aponta, quando muito, para uma nebulosa vaga na qual se
adivinham algumas nesgas de sentido navegando num oceano desabitado de ideias.
Ou
então “neoliberalismo”.
Não há idiota, néscio ou esperto, que não recorra à expressão para se referir a
tudo o que no universo lhe parece merecedor da sua virtuosa reprovação.
Acontece que “neoliberalismo” possui um carácter tão difuso que a
inconsequência no uso da palavra é uma fatalidade sem apelo. Se a
expressão se refere a um conceito, é a um conceito que o mais das vezes é tão
vazio como o de uma faca sem cabo à qual foi retirada a lâmina.
Ou,
por último, “nem de esquerda, nem de direita”.
Admito perfeitamente que, no foro íntimo, tal como na reflexão, filosófica ou
outra, não se seja nem de direita nem de esquerda. De facto, não se trata de
um direito: é uma obrigação, tanto quanto se visa a verdade.
Acontece, no entanto, que transportar essa dimensão individual para a esfera
política, em que, entre outras coisas, se vota num determinado partido, é,
salvo em situações particulares, cometer o que tecnicamente se chama uma anfibolia:
confundir o que releva de uma faculdade com o que releva de uma outra. Por mim, poupo-me a descrever as circunvoluções da
minha alma. A fenomenologia do espírito de cada um a cada um diz respeito.
O que eu sei é que, politicamente, o que
conta é o voto, e o voto é um gesto que, apesar de não trazer consigo a fé,
representa uma posição. Tudo o
resto é escapatória reles ou mistificação deliberada. Pelo voto, sou de
direita, como, pelo voto, outros são de esquerda.
Querem
saber uma coisa, amigos e amigas? Andamos condenados a viver num mundo
em que a maioria das palavras públicas servem quase apenas para comunicar
farrapos de ideias mal remendadas e sem contacto que não seja precário e
aleatório com a realidade. Isto emperra o pensamento – e emperra a vida. Mas temos que aguentar a triste época. Nesse sentido,
um sentido preciso e limitado, há uma coisa de que precisamos muito, se
queremos manter alguma sanidade mental: chama-se, desta vez
com propriedade, resiliência. Resiliência, sem aspas, para aguentar a
“resiliência”.
MINISTÉRIO DA SAÚDE GOVERNO POLÍTICA LÍNGUA CULTURA
COMENTÁRIOS
Albino Mulato: Não sei se será resiliência apoiar sistematicamente PR e esperar resultados
diferentes. Há a história do soldado raso que se concorreu a cabo. Também
era persistente... Amilcar
Alhão: Como boa
socialista, ela é uma pobre Ministra, mas está longe de ser uma Ministra pobre. Ediberto Abreu: Como sempre, excelente artigo. Fernando Prata:
Concordo
totalmente com o autor. Utilizam-se em Portugal, palavras sem significado e que
estão totalmente desligadas de qualquer realidade. Essa é uma técnica que os
políticos sempre gostaram, mas que evoluiu de forma doentia e assustadora com
este governo. Este é também o reflexo da maioria dos políticos terem formação
em direito, que como sabemos, é uma área onde o jogo com as palavras é fundamental. Rita Salgado: e se ligarmos estes modernismos
de linguagem com "ou seja", então faz-se o pleno! Luís Rodrigues: O termo “resiliência” e seus
aparentados tornaram-se muleta retórica para disfarçar o vazio ou o vago das
ideias. Um caso extremo é usar a palavra para dar nome a um plano de
recuperação. Agnelo
Furtado: APOIADO! Paulo
Tunhas João Ramos: Crónica objectiva e clara mas
tristemente divertida quando comparada com a nossa pobre realidade política… Pobre Portugal: Senhor Paulo Tunhas, parabéns
pela cristalina crónica. E os meus sinceros pêsames pela derrota do seu Rangel.
Cisca Impllit: Resiliência, stress... palavras vindas da física e da
mecânica para qualificar materiais e que podem enriquecer o léxico corrente,
claro, quando bem empregues. Para tanto, é necessário que quem o aplica tenha
uma certa espessura intelectual - inversamente proporcional - ao automatismo
indigente da banalidade e dos modismos!!! João Alves: Duas outras palavras
desempenham a mesma função encantatória e mistificadora na linguagem política.
Refiro-me as palavras ‘esquerda’ e ‘socialista’ quando por elas se pretende
caracterizar a orientação política do povo português. Mas enganam-se. Na
ausência de uma sociedade civil autónoma e de uma burguesia empreendedora, os
portugueses, partindo de um sentimento congénito de inveja, desenvolveram uma
cultura estatista de subsídio-dependência que tem sido explorado em benefício
próprio por PS, PCP e BE. antonyo
antonyo > João Alves: Assino por baixo . Portugal, que
Futuro: "Nesse
sentido, um sentido preciso e limitado, há uma coisa de que precisamos muito,
se queremos manter alguma sanidade mental: chama-se, desta vez com
propriedade, resiliência.
Resiliência, sem aspas, para aguentar a “resiliência”. - Inteiramente de acordo, Paulo
Tunhas. O termo resiliência usa-se em muitas outras áreas do conhecimento
para além da resistência de materiais. Os Economistas usam o termo desde pelo
menos 1803 quando Jean Baptiste Say escreveu o Tratado de Economia Política. Os
médicos e psicólogos usam-no para se referirem à capacidade, para uma pessoa
confrontada com acontecimentos muito graves, de acionar mecanismos de defesa
que lhe permitam aguentar e mesmo "dar
a volta por cima", tirando partido do infortúnio. E para terminar,
em Resiliência e Crescimento Económico, Jorge Braga de Macedo escreveu: "Nos anos 70, contra todas as
previsões acerca dos efeitos perversos da desvalorização cambial em economias
rígidas, a nossa economia evidenciou tal capacidade de adaptação aos choques
petrolíferos que foi difícil desabituá-la dessa mesma desvalorização cambial e
das suas consequências inflacionistas. Dito de outro modo, a resposta das
economias aos choques é mais decisiva para o crescimento do que a origem e
força dos próprios choques, podendo gerar habituação perversa nas empresas e
nos trabalhadores que só maior resiliência pode
corrigir." Manuel
Cabral > Portugal,
que Futuro: É pena não indicar a data do
escrito de Jorge Braga de Macedo...
Portugal, que Futuro > Manuel
Cabral: 03 de Março de 2003. Se pesquisar na internet por
"Resiliência e Crescimento Económico", vai encontrar. Francisco Tavares de Almeida: Excelente texto. Apenas
tenho alguma dúvida no final mas talvez a resiliência possa ser usada em
sentido figurativo porque no sentido literal - capacidade de recuperar a forma
primitiva depois de sofrer uma deformação - apenas se aplica a materiais. João
Floriano > Francisco
Tavares de Almeida: Aplica-se também a pessoas. Usa-se muito em
artigos de psicologia e comportamento para definir pessoas que passaram por
marginalidade e conseguiram sair e voltar à sociedade. joão reis: Nem todos têm o condão de serem
uns privilegiados na inteligência como é o caso do 'rico' autor deste artigo
recheado de instrumentos intelectuais bem evidenciados nesta crónica em que o
ego é por demais evidente. Presunção e Água Benta, Cada Qual Toma a que Quer... Duarte Correia > joão reis: As pessoas estruturam as suas
mensagens apoiadas em noções, ideias, conceitos, categorias, e elaboradas de
acordo com as suas competências. Problema de ego ou de linguagem elaborada? Um
economista não pode expor as suas verdades como o merceeiro, com todo o
respeito pelos merceeiros, posto que cada macaco no seu galho. joão reis > Duarte
Correia: Apesar de todos os considerandos apresentados pelo
autor, existe uma noção básica/elementar que é o devido respeito pelos outros
sob pena de ser considerado um trapaceiro. Duarte Correia > joão reis: Compreendo bem o bem fundado do
seu ponto de vista, mas deixe-me recorrer a uma tese de vários sentidos, muito problematizada
pelas ideologias progressistas, tendo em vista o designado «horizonte de
espera, de expectativas»: i)- Empregar uma linguagem adequada ao destinatário,
"descendo" até ele; ii)- Empregar uma linguagem de nível ajustado ao
objecto, conceptualmente elaborada, para que o destinatário "suba"
até ela; iii)- Se se realiza "i", diz-se em certa
teoria da informação que só há ruido, não há mensagem inovadora; iv)- Se se realiza
"ii", espera-se que a elevada elaboração da mensagem suscite uma
esperada função pedagógica. Agora depende daquilo que nós esperamos de quem
escreve, sendo porém certo que se a linguagem não nos inquietar, suscitar
alguma perplexidade, também certamente nada aprenderemos. Cumprimentos. P.S. Embora
podendo ser sacrílego dizer isto, sabe que mesmo Estaline, apesar do seu imenso
dogmatismo, propugnava por que os seus "informes" pudessem elevar o
nível de compreensão do povo obreiro. joão
reis > Duarte
Correia: Caro Duarte, compreendo e concordo com o seu
comentário, sublinho apenas que este artigo não me surpreendeu porque as minhas
expectativas sobre o autor não me causam nenhuma perplexidade. Cumprimentos. Mario Areias: Mais um excelente texto. Apenas
uma nota. Julgo que está na altura de deixar os epítetos de esquerda e direita
e passar a utilizar os temos socialista e não socialista. Penso que define
melhor os campos.
advoga diabo: Que seria de Portugal e dos portugueses sem estas
inteligências luminosas, a, recostados lá do alto das suas torres de marfim,
dar os seus doutos conselhos a esta pobre gente, como Temido, que, serôdios, se
esfalfam pateticamente até ao hilariante, notoriamente envelhecendo dia a dia
aos olhos de todos, na vã tentativa de ir ajudando a resolver os problemas dos
seus compatriotas? Tanta presunção e parasitismo! Joao Figueiredo > advoga diabo:
Concordo perfeitamente
, isto de falar para o espelho... Manuel Lorena: Excelente texto, Dr. Paulo
Tunhas! Aprendemos consigo muitos conceitos que transmite de forma muito
acessível! Obrigado. Hipo
Tanso: Um texto que prima pela clareza das ideias,
pela beleza e elegância da forma como as exprime, pelo ensinamento linguístico
que, para muita gente, contém. Além de tudo o mais, uma verdadeira pérola de
literatura satírica. Reduzir a ministra à sua mesquinha dimensão de
"coitadita, foi vítima do ambiente político em que se movimenta (quando se
movimenta)" - parece-me um verdadeiro achado. João Floriano: Tudo o que o Dr. paulo Tunhas
aqui escreve magistralmente, como sempre, vai ao encontro do que eu penso. Não
tenho no entanto, nem vagamente, a pretensão de chegar perto da capacidade
intelectual e conhecimentos do articulista. Eu acho igualmente que a senhora
ministra não sabe concretamente o verdadeiro significado de resiliência. a
palavra soa bem, e tornou-se um belíssimo bordão à semelhança de uma expressão
«na medida em que», usada igualmente aqui há tempos em contextos onde
não se percebia bem a sua utilização. Para além desta identificação,
ainda que vaga de opinião (a justiça climática também me vai aos nervos...),
ficaram algumas referências que com a devida vénia peço ao Dr. Paulo Tunhas
para utilizar aqui neste espaço. Assim quando eu quiser chamar burro ao meu
interlocutor direi apenas: «O senhor tem grande escassez de instrumentos
intelectuais». Se se der o caso de o comentário ser perfeitamente
possidónio eu direi: «o senhor é um verdadeiro ornamento kitsch deste espaço.»
Finalmente quando um comentário for daqueles tipo lençol em que na quarta linha
já estou a dormir direi. «o senhor é tal e qual uma faca sem cabo à qual
retiraram a lâmina:» ou seja uma faca imaginária. Há só aqui um pequeno
pormenor que me causa um certo mau estar e desconfiança: florilégio. O dr.
Paulo Tunhas nem sonha que eu existo e que o leio aqui de uma catacumba estilo
casa troglodita na margem sul, muito diferente da sofisticação da
Cedofeita. Já que me chamo Floriano, dar-se-à o caso de florilégio ser a
verborreia por mim produzida? Impossível. Nunca o Dr. Paulo Tunhas leria
um comentário meu. É mesmo ser desconfiado!!!! João Amorim: Fabuloso texto, entre tantos
outros, deste autor, que é, na minha opinião, um dos maiores expoentes das
letras portuguesas. Quinta
Sinfonia: Off topic. O que
se passa com a colocação tão tardia das colunas de opinião no Observador?
Nenhum comentário:
Postar um comentário