sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Assim se vai evoluindo


Aprendendo, repetindo, aplicando. Com os que primeiro usaram as palavras, por vezes noutros sentidos, mas que nos podem servir, ainda que por mero pedantismo retórico. Não fora a leitura dos escritores latinos e gregos por alturas do Humanismo renascentista, com palavras trazidas directamente, por via erudita, para as suas obras – e posteriormente adaptadas à língua comum - continuaríamos a deturpar e a empobrecer cada vez mais os romanços vulgares. Os requintes de linguagem, afinal, ainda que provenientes tantas vezes, de preciosismos retóricos, (e que a evolução tecnológica e científica propõe igualmente ao longo dos tempos) – mas que ajudaram na criação dos engenhos literários, por exemplo, não deixam de ir valorizando os discursos – pese embora o magnífico texto satírico de Paulo Tunhas, troçando da ministra, a propósito da “resiliência” pairando abusivamente, ameaçadora da nossa pacatez mortiça - e destacando a classe médica, como excepção necessária da sua importância – para bem do Governo e da Nação, que da tal resiliência precisam, por diferentes razões, embora.

“Resiliência”

A pobre ministra não tem obviamente instrumentos intelectuais que lhe permitam resistir a uma tão grande magia e a palavra saiu-lhe da boca mecanicamente, como se não passasse de um puro autómato.

PAULO TUNHAS

OBSEVADOR, 02 dez 2021

Na semana passada, a ministra Marta Temido declarou que um dos critérios para futura contratação de médicos para o SNS seria a sua “resiliência”. A coisa, pela inevitável sugestão de que o actual pessoal do Serviço Nacional de Saúde não seria suficientemente “resiliente”, gerou indignação pública. Até o bastonário da Ordem dos Médicos, o sempre urbano Miguel Guimarães, levantou a possibilidade de uma demissão da ministra, que depois, emocionada, veio pedir desculpa pelas suas palavras, que teriam sido mal interpretadas, tese partilhada de modo vibrante por Sónia Fertuzinhos, ornamento maior da bancada do PS na Assembleia da República. Mas as desculpas e a defesa veemente da ministra não chegam para esconder o facto gritante do seu desprezo esquerdista pelas reivindicações de boas condições de trabalho por médicos e enfermeiros (a glória de servir o Estado é para Marta Temido recompensa bastante) nem a evidência de ela se encontrar na triste situação de presidir ao processo de destruição do SNS.

Neste contexto, parecerá estranho que se venha manifestar alguma compreensão pela ministra. É, no entanto, isso que me proponho hoje fazer. Não nego a intencionalidade perversa no uso da palavra “resiliência”. Mas há condições atenuantes. Uma delas, talvez a maior, é de ordem muito geral e prende-se com o modo como as pessoas se relacionam com a linguagem. Supor-se-ia que a linguagem, entre as suas várias dimensões, comportasse a função de designar eficazmente os múltiplos aspectos da realidade exterior, ajudando-nos a identificá-los da forma menos equívoca possível. Ora, se é verdade que, no campo das ciências, tal se obtém com razoável sucesso, as coisas mudam radicalmente de aspecto no domínio da política, onde tudo é, na sua essência, muito mais ambíguo, por razões que não são conjunturais, mas estruturais. E este particular problema da linguagem política – que é a linguagem que, nas suas múltiplas variantes, falamos no dia-a-dia – ganha proporções inéditas em situações de crise da vida social, quando, por exemplo, ao poder convém criar uma realidade alternativa que distraia as pessoas dos problemas concretos que afectam a sociedade.

Multiplicam-se então, com extraordinária profusão, expressões que se utilizam como se se referissem a ideias claras e bem definidas, quando, com muita boa vontade, designam apenas arremedos de conceitos sem unidade efectiva e insusceptíveis de determinar o que quer que seja. A utilização dessas expressões não supõe qualquer actividade do espírito, apenas uma passiva receptividade às palavras que circulam no ar do tempo e uma declarada vocação para as papaguear com apaixonado entusiasmo, como quem assobia no escuro para afastar de si o legítimo e justificado medo da ausência de pensamento.

“Resiliência” é apenas uma destas palavras. Desde que António Costa a pôs em circulaçãoe avisou, na devida altura, que a iríamos ouvir muitas vezes –, ela aparece em todo o lado, a propósito ou a despropósito, como um sinal mágico que é suposto produzir um encantamento instantâneo. A pobre ministra não tem obviamente instrumentos intelectuais que lhe permitam resistir a uma tão grande magia, e, como a Dra. Graça Freitas com a sua querida “evidência científica”, a palavra saiu-lhe da boca mecanicamente, como se não passasse de um puro autómato. Sem dúvida que, fazendo parte do Governo, ela é uma parte interessada na mistificação – mas é igualmente uma sua vítima, já que por essa mistificação ela própria se encontra envolvida. É um caso mais comum do que parece.

Seria ocioso pretender enumerar as várias expressões que, hoje em dia, cumprem a mesma função encantatória que a palavra “resiliência”. Mas, para dar uma ideia mais clara do vazio de pensamento que produz tal florilégio de expressões, talvez não seja inútil mencionar um ou outro espécime.

Tomemos, por exemplo, a expressão “justiça climática”. Não há dia em que não a ouçamos mencionada em jornais televisivos, com justiceira convicção. No entanto, não há nenhuma ideia precisa à qual ela se refira. Aponta, quando muito, para uma nebulosa vaga na qual se adivinham algumas nesgas de sentido navegando num oceano desabitado de ideias.

Ou então “neoliberalismo”. Não há idiota, néscio ou esperto, que não recorra à expressão para se referir a tudo o que no universo lhe parece merecedor da sua virtuosa reprovação. Acontece que “neoliberalismo” possui um carácter tão difuso que a inconsequência no uso da palavra é uma fatalidade sem apelo. Se a expressão se refere a um conceito, é a um conceito que o mais das vezes é tão vazio como o de uma faca sem cabo à qual foi retirada a lâmina.

Ou, por último, “nem de esquerda, nem de direita”. Admito perfeitamente que, no foro íntimo, tal como na reflexão, filosófica ou outra, não se seja nem de direita nem de esquerda. De facto, não se trata de um direito: é uma obrigação, tanto quanto se visa a verdade. Acontece, no entanto, que transportar essa dimensão individual para a esfera política, em que, entre outras coisas, se vota num determinado partido, é, salvo em situações particulares, cometer o que tecnicamente se chama uma anfibolia: confundir o que releva de uma faculdade com o que releva de uma outra. Por mim, poupo-me a descrever as circunvoluções da minha alma. A fenomenologia do espírito de cada um a cada um diz respeito. O que eu sei é que, politicamente, o que conta é o voto, e o voto é um gesto que, apesar de não trazer consigo a fé, representa uma posição. Tudo o resto é escapatória reles ou mistificação deliberada. Pelo voto, sou de direita, como, pelo voto, outros são de esquerda.

Querem saber uma coisa, amigos e amigas? Andamos condenados a viver num mundo em que a maioria das palavras públicas servem quase apenas para comunicar farrapos de ideias mal remendadas e sem contacto que não seja precário e aleatório com a realidade. Isto emperra o pensamento – e emperra a vida. Mas temos que aguentar a triste época. Nesse sentido, um sentido preciso e limitado, há uma coisa de que precisamos muito, se queremos manter alguma sanidade mental: chama-se, desta vez com propriedade, resiliência. Resiliência, sem aspas, para aguentar a “resiliência”.

MINISTÉRIO DA SAÚDE   GOVERNO   POLÍTICA   LÍNGUA   CULTURA

COMENTÁRIOS

Albino Mulato: Não sei se será resiliência apoiar sistematicamente PR e esperar resultados diferentes. Há a história do soldado raso que se concorreu a cabo. Também era persistente...            Amilcar Alhão: Como boa socialista, ela é uma pobre Ministra, mas está longe de ser uma Ministra pobre.          Ediberto Abreu: Como sempre, excelente artigo.           Fernando Prata: Concordo totalmente com o autor. Utilizam-se em Portugal, palavras sem significado e que estão totalmente desligadas de qualquer realidade. Essa é uma técnica que os políticos sempre gostaram, mas que evoluiu de forma doentia e assustadora com este governo. Este é também o reflexo da maioria dos políticos terem formação em direito, que como sabemos, é uma área onde o jogo com as palavras é fundamental.          Rita Salgado: e se ligarmos estes modernismos de linguagem com "ou seja", então faz-se o pleno!         Luís Rodrigues: O termo “resiliência” e seus aparentados tornaram-se muleta retórica para disfarçar o vazio ou o vago das ideias. Um caso extremo é usar a palavra para dar nome a um plano de recuperação.          Agnelo Furtado: APOIADO! Paulo Tunhas          João Ramos: Crónica objectiva e clara mas tristemente divertida quando comparada com a nossa pobre realidade política…            Pobre Portugal: Senhor Paulo Tunhas, parabéns pela cristalina crónica. E os meus sinceros pêsames pela derrota do seu Rangel. Cisca Impllit: Resiliência, stress... palavras vindas da física e da mecânica para qualificar materiais e que podem enriquecer o léxico corrente, claro, quando bem empregues. Para tanto, é necessário que quem o aplica tenha uma certa espessura intelectual - inversamente proporcional - ao automatismo indigente da banalidade e dos modismos!!!          João Alves: Duas outras palavras desempenham a mesma função encantatória e mistificadora na linguagem política. Refiro-me as palavras ‘esquerda’ e ‘socialista’ quando por elas se pretende caracterizar a orientação política do povo português. Mas enganam-se. Na ausência de uma sociedade civil autónoma e de uma burguesia empreendedora, os portugueses, partindo de um sentimento congénito de inveja, desenvolveram uma cultura estatista de subsídio-dependência que tem sido explorado em benefício próprio por PS, PCP e BE.             antonyo antonyo > João Alves: Assino por baixo .                Portugal, que Futuro: "Nesse sentido, um sentido preciso e limitado, há uma coisa de que precisamos muito, se queremos manter alguma sanidade mental: chama-se, desta vez com propriedade, resiliência. Resiliência, sem aspas, para aguentar a “resiliência”. - Inteiramente de acordo, Paulo Tunhas. O termo resiliência usa-se em muitas outras áreas do conhecimento para além da resistência de materiais. Os Economistas usam o termo desde pelo menos 1803 quando Jean Baptiste Say escreveu o Tratado de Economia Política. Os médicos e psicólogos usam-no para se referirem à capacidade, para uma pessoa confrontada com acontecimentos muito graves, de acionar mecanismos de defesa que lhe permitam aguentar e mesmo "dar a volta por cima", tirando partido do infortúnio. E para terminar, em Resiliência e Crescimento Económico, Jorge Braga de Macedo escreveu: "Nos anos 70, contra todas as previsões acerca dos efeitos perversos da desvalorização cambial em economias rígidas, a nossa economia evidenciou tal capacidade de adaptação aos choques petrolíferos que foi difícil desabituá-la dessa mesma desvalorização cambial e das suas consequências inflacionistas. Dito de outro modo, a resposta das economias aos choques é mais decisiva para o crescimento do que a origem e força dos próprios choques, podendo gerar habituação perversa nas empresas e nos trabalhadores que só maior resiliência pode corrigir." Manuel Cabral > Portugal, que Futuro: É pena não indicar a data do escrito de Jorge Braga de Macedo...

Portugal, que Futuro > Manuel Cabral: 03 de Março de 2003. Se pesquisar na internet por "Resiliência e Crescimento Económico", vai encontrar.        Francisco Tavares de Almeida: Excelente texto. Apenas tenho alguma dúvida no final mas talvez a resiliência possa ser usada em sentido figurativo porque no sentido literal - capacidade de recuperar a forma primitiva depois de sofrer uma deformação - apenas se aplica a materiais. João Floriano > Francisco Tavares de Almeida: Aplica-se também a pessoas. Usa-se muito  em artigos de psicologia e comportamento para definir pessoas que passaram por marginalidade e conseguiram sair e voltar à sociedade.         joão reis: Nem todos têm o condão de serem uns privilegiados na inteligência como é o caso do 'rico' autor deste artigo recheado de instrumentos intelectuais bem evidenciados nesta crónica em que o ego é por demais evidente. Presunção e Água Benta, Cada Qual Toma a que Quer...            Duarte Correia > joão reis: As pessoas estruturam as suas mensagens apoiadas em noções, ideias, conceitos, categorias, e elaboradas de acordo com as suas competências. Problema de ego ou de linguagem elaborada? Um economista não pode expor as suas verdades como o merceeiro, com todo o respeito pelos merceeiros, posto que cada macaco no seu galho.         joão reis > Duarte Correia: Apesar de todos os considerandos apresentados pelo autor, existe uma noção básica/elementar que é o devido respeito pelos outros sob pena de ser considerado um trapaceiro. Duarte Correia > joão reis: Compreendo bem o bem fundado do seu ponto de vista, mas deixe-me recorrer a uma tese de vários sentidos, muito problematizada pelas ideologias progressistas, tendo em vista o designado «horizonte de espera, de expectativas»: i)- Empregar uma linguagem adequada ao destinatário, "descendo" até ele;  ii)- Empregar uma linguagem de nível ajustado ao objecto, conceptualmente elaborada, para que o destinatário "suba" até ela; iii)- Se se realiza "i", diz-se em certa teoria da informação que só há ruido, não há mensagem inovadora; iv)- Se se realiza "ii", espera-se que a elevada elaboração da mensagem suscite uma esperada função pedagógica. Agora depende daquilo que nós esperamos de quem escreve, sendo porém certo que se a linguagem não nos inquietar, suscitar alguma perplexidade, também certamente nada aprenderemos. Cumprimentos. P.S. Embora podendo ser sacrílego dizer isto, sabe que mesmo Estaline, apesar do seu imenso dogmatismo, propugnava por que os seus "informes" pudessem elevar o nível de compreensão do povo obreiro.   joão reis > Duarte Correia: Caro Duarte, compreendo e concordo com o seu comentário, sublinho apenas que este artigo não me surpreendeu porque as minhas expectativas sobre o autor não me causam nenhuma perplexidade. Cumprimentos.         Mario Areias: Mais um excelente texto. Apenas uma nota. Julgo que está na altura de deixar os epítetos de esquerda e direita e passar a utilizar os temos socialista e não socialista. Penso que define melhor os campos.         advoga diabo: Que seria de Portugal e dos portugueses sem estas inteligências luminosas, a, recostados lá do alto das suas torres de marfim, dar os seus doutos conselhos a esta pobre gente, como Temido, que, serôdios, se esfalfam pateticamente até ao hilariante, notoriamente envelhecendo dia a dia aos olhos de todos, na vã tentativa de ir ajudando a resolver os problemas dos seus compatriotas? Tanta presunção e parasitismo!        Joao Figueiredo > advoga diabo: Concordo perfeitamente , isto de falar para o espelho...         Manuel Lorena: Excelente texto, Dr. Paulo Tunhas! Aprendemos consigo muitos conceitos que transmite de forma muito acessível! Obrigado.       Hipo Tanso:  Um texto que prima pela clareza das ideias, pela beleza e elegância da forma como as exprime, pelo ensinamento linguístico que, para muita gente, contém. Além de tudo o mais, uma verdadeira pérola de literatura satírica. Reduzir a ministra à sua mesquinha dimensão de "coitadita, foi vítima do ambiente político em que se movimenta (quando se movimenta)" - parece-me um verdadeiro achado.         João Floriano: Tudo o que o Dr. paulo Tunhas aqui escreve magistralmente, como sempre, vai ao encontro do que eu penso. Não tenho no entanto, nem vagamente, a pretensão de chegar perto da capacidade intelectual e conhecimentos do articulista. Eu acho igualmente que a senhora ministra não sabe concretamente o verdadeiro significado de resiliência. a palavra soa bem, e tornou-se um belíssimo bordão à semelhança de uma expressão «na medida em que», usada igualmente aqui há tempos em contextos onde não se percebia bem  a sua utilização. Para além desta identificação, ainda que vaga de opinião (a justiça climática também me vai aos nervos...), ficaram algumas referências que com a devida vénia peço ao Dr. Paulo Tunhas para utilizar aqui neste espaço. Assim quando eu quiser chamar burro ao meu interlocutor direi apenas: «O senhor tem grande escassez de instrumentos intelectuais». Se  se der o caso de o comentário ser perfeitamente possidónio eu direi: «o senhor é um verdadeiro ornamento kitsch deste espaço.» Finalmente quando um comentário for daqueles tipo lençol em que na quarta linha já estou a dormir direi. «o senhor é tal e qual uma faca sem cabo à qual retiraram  a lâmina:» ou seja uma faca imaginária. Há só aqui um pequeno pormenor que me causa um certo mau estar e desconfiança: florilégio. O dr. Paulo Tunhas nem sonha que eu existo e que o leio aqui de uma catacumba estilo casa troglodita na margem sul, muito diferente da sofisticação  da Cedofeita.  Já que me chamo Floriano, dar-se-à o caso de florilégio ser a verborreia  por mim produzida? Impossível. Nunca o Dr. Paulo Tunhas leria um comentário meu. É mesmo ser desconfiado!!!!        João Amorim: Fabuloso texto, entre tantos outros, deste autor, que é, na minha opinião, um dos maiores expoentes das letras portuguesas.        Quinta Sinfonia: Off topic. O que se passa com a colocação tão tardia das colunas de opinião no Observador? 

Nenhum comentário: