Um texto bem explícito de Patrícia Fernandes, sobre as
transformações sociais, culturais - raciais – sofridas na velha Europa dos valores
universais, humanistas, trazidas por todas essas convulsões políticas que temos
vindo vivendo e amparando, destruindo-nos um pouco, por toda a parte – na língua,
nas tradições, na história – hoje menosprezadas em função dos valores do
acolhimento universal a esses que se expandem, hoje, para se imporem por cá, em
substituição… Será? Chapéus há muitos.
Não há um Israel para nós
Por que razão é perversa a
desvalorização das tradições e valores europeus? Porque eles garantiram
direitos e liberdades, em contexto de sociedade aberta, que não sucederam em
qualquer outra tradição.
PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de Economia e
Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 20 dez 2021
“Pus-me
a pensar. Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram bons;
as nossas doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos métodos? Com
certeza que deveriam ser.” Fernando
Pessoa, O banqueiro anarquista
Publicado
em janeiro de 2015, Submissão de Michel Houellebecq é um livro a que vale a pena regressar. Não só
pelo estilo literário e o uso sublime da língua e da ironia do escritor
francês, mas também porque Houellebecq
se revela um leitor perspicaz dos
nossos tempos, confrontando-nos com o mais fundamental de todos os dilemas: o
da nossa identidade, pessoal e colectiva. O argumento
do livro é conhecido: nas eleições presidenciais francesas de 2022, o
crescimento da extrema-direita origina o habitual cordão sanitário republicano,
que leva à presidência o líder da Fraternidade Muçulmana. A consequência é a
transformação da república francesa em república islâmica, perante a
progressiva submissão dos franceses.
O
tópico da presença muçulmana na Europa é frequentemente revisitado e tem sido
radicalizado em torno da ideia de Grand Remplacement (expressão popularizada com a obra de Renaud
Camus, de 2011, e que tem sido aproveitada na campanha presidencial por Éric
Zemmour). Mas Houellebecq dispõe a questão de modo mais
desafiante: o fim da cultura europeia resultaria da própria
ratoeira democrática, que coloca a legitimidade do poder na decisão da maioria,
tornando possível que a vitória democrática caiba a um partido que representa
uma cultura alternativa aos valores ocidentais. Afinal, e
como refere Houellebecq, a
transcendência é uma vantagem seletiva: as comunidades que mantêm uma narrativa
religiosa reproduzem-se mais, aumentando as suas hipóteses de sobrevivência.
É
interessante notar como, nestas eleições ficcionadas, os primeiros a fugir de França são os judeus, que
migram em larga escala para Israel. Sentem-se ameaçados pelas possibilidades de vitória,
seja ela da Frente Nacional ou da Fraternidade Muçulmana, e a história já lhes
deu demasiadas oportunidades de aprendizagem. Israel representa a sua salvação, não só física como
cultural, constituindo uma espécie de Heimat a que podem regressar.
Submissão é um exercício literário
e não podemos, nem devemos, analisar o livro como se se tratasse de uma obra de
teoria ou ciência política. Ainda assim, permite que nos confrontemos com o
que significa a identidade europeia, os seus valores e as suas conquistas, considerando
a nossa história e as nossas tradições. Em
linha com o conservadorismo reacionário francês, Houellebecq apresenta-se como
um crítico da modernidade, e
em Submissão é
particularmente evidente a desaprovação do individualismo, da destruição do
espírito comunitário e da fragilização das tradições familiares e religiosas –
e a anunciação da decadência da civilização europeia no caminho designado como
progresso. A esta luz,
o término desse caminho significa a estranha morte da Europa,
para usar a formulação de Douglas Murray. Não precisamos então de subscrever a teoria da grande
substituição para reconhecermos a importância do tema e o modo como a questão
identitária é hoje central para a nossa reflexão sobre a Europa e o seu futuro
(em que Europa e União Europeia se confundem). Essa reflexão deve ser empreendida considerando dois eixos
principais: a política de imigração e o multiculturalismo – isto é: o tipo de políticas públicas que queremos
estabelecer para quem quer entrar na Europa e o tipo de políticas públicas que
queremos adoptar para quem ficar dentro das nossas fronteiras.
O
tema ganhou maior produção académica após a crise dos refugiados de 2015, mas o
problema identitário já estava presente na Europa há pelo menos duas décadas. Os sintomas foram-se fazendo sentir, designadamente
com o crescimento
de partidos de cariz identitário, geralmente eurocépticos – mas o mais importante acontecimento talvez tenha
sido o Brexit. Embora o resultado do referendo tenha recebido o
contributo de muitos factores, a questão da imigração ocupou um lugar central,
tornando evidente um problema que as elites políticas europeias preferiram
ignorar. Na verdade, as comunidades não podem ser pressionadas até ao ponto de
sentirem a sua sobrevivência perigar – a partir desse momento, começam a resistir
àquilo que identificam como uma ameaça.
Ivan Krastev, cientista político búlgaro, nunca fugiu a esta
análise. Em After Europe, mostra-nos o problema da perspetiva da
Europa do leste: “Quando vemos na televisão cenas de idosos locais a
protestar contra o estabelecimento de refugiados nas suas vilas despovoadas,
onde nenhuma criança nasce há décadas, o nosso coração sente pelos dois lados –
pelos refugiados, mas também pelas pessoas velhas e sozinhas que têm visto o
seu mundo desaparecer. Vai sobrar alguém para ler poesia búlgara daqui a cem
anos?”
Atendendo
ao que tem acontecido nas últimas décadas, devemos
questionar o sucesso das políticas europeias de imigração – mas também das políticas de multiculturalismo, que recusam o
assimilacionismo e visam a integração da diferença cultural através
do espírito europeu de inclusão.
Recorramos à distinção efetuada por David L. Miller entre
multiculturalismo enquanto política
pública e multiculturalismo enquanto ideologia. Embora as políticas multiculturalistas visem objetivos
nobres e que resultam da própria cultura europeia, a dimensão ideológica tem um
efeito perverso: ela produz uma desvalorização do legado nacional. Como diz Miller, “uma
cultura nacional pressupõe inevitavelmente ter orgulho no que a nação conseguiu
historicamente, quer se trate de desenvolvimentos na arte e na ciência, da
construção de um império ou da defesa de uma fronteira anterior”. Devemos
naturalmente ser críticos da nossa história, mas não podemos repudiar os nossos
valores e desvalorizar as nossas conquistas para acomodar as identidades culturais
migrantes. Em
particular, “não pode ser exigido à maioria que pare de valorizar aqueles
elementos que, até aos dias de hoje, a definiram como pertencendo a um povo
particular.” E entre esses elementos está a religião.
Por que razão é perversa a desvalorização
contínua das tradições e dos valores europeus? A resposta prende-se com a herança civilizacional europeia: os valores
europeus garantiram um conjunto de direitos e liberdades emancipatórias, em
contexto de sociedade aberta, que não aconteceram em qualquer outra tradição. Se a inclusão significa desvalorizar estas
conquistas e estes valores, então tem de haver algo de errado com essa
inclusão, como fica demonstrado pela polémica causada pela recente campanha do
Conselho da Europa.
Mas também a proposta da comissária da UE para a igualdade nos
deve alarmar: as mudanças de linguagem são apresentadas como visando
a inclusão da diversidade, mas acabam por se traduzir no apagamento das nossas
tradições e do nosso passado, como o Papa Francisco chamou a atenção. Tomar este caminho de desvalorização significa o suicídio
da civilização europeia – e essa
morte é particularmente punitiva para os grupos que beneficiaram de uma
emancipação de que não gozam nas outras culturas. É o caso,
claro, das mulheres. E o problema
para as mulheres é que, ao
contrário da comunidade judaica em Submissão, não há um Israel para nós. Não há uma Heimat que nos garanta o
reduto de liberdade feminina que temos hoje no espaço de tradição europeia –
onde podemos, livremente, desenvolver o projeto de vida que desejamos. Apesar
de todos os seus problemas, a civilização europeia representa uma história de
que nos devemos orgulhar e que nos estimula a resistir aos ímpetos iliberais
que nos ameaçam. Celebrar as nossas tradições, como o Natal, pode ser essa
forma de resistência. Votos de um feliz Natal!
Professora da
Universidade da Beira Interior
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