De Natal, em Youtube – A “Oratória” de J. S. Bach. Outros se
seguirão, talvez. E os pensamentos acompanham, distraídos na mágoa de a nossa
educação portuguesa não considerar este género de aprendizagem, que o belo texto
de Rita Castro Blanco fez desejar
acompanhar, com o espectáculo que a Internet
nos concede, seguido, a espaços, de quadros da Natividade, além das
variadas alternâncias de coros, solos, grupos instrumentais, a figura do
maestro, orquestrando, um público atento, sem tosses. Um belo começo de dia.
Escutemos e sigamos, gratos a R.
C. B.
que explicou…
A história e o legado da
"Oratória": porque é que Bach continua a ser um dos mais ouvidos nos
concertos de Natal?
A "Oratória de Natal"
de J.S. Bach é a grande vencedora na hora de programa as actuações festivas,
entre o Natal e o Ano Novo. Mas o que tem esta obra que a torna tão especial?
OBSERVADOR, 25 dez 2021
Para
os que programam os concertos de dezembro, é difícil escolher que tipo de
música querem oferecer ao público no concerto que antecede o Natal. Quando
optam por um carácter mais popular ou familiar, são geralmente concertos
dedicados à música tradicional, às fanfarras festivas, ou aos filmes e
animações natalícias para crianças; com grupos corais ouvimos cânticos de
várias proveniências, ou até algo mais sério como uma missa ou o Te Deum de W.A. Mozart; as orquestras que se mantêm na programação mais erudita
geralmente acabam por tocar uma mistura de peças que evocam o Natal, como o Quebra Nozes de P.Y.
Tchaikovsky, Sleigh Ride de F. Delius, a suite O Tenente Kijé de S. Prokofiev ou até as Quatro
Estações de A. Vivaldi. No entanto, nas grandes produções orquestrais e
corais, as duas peças mais tocadas são o Messias de G.F.
Händel e a Oratória
de Natal de J.S. Bach, sendo que a segunda é sem dúvida a grande
vencedora.
O Messias de Händel é na realidade uma oratória escrita para o tempo da
Páscoa. Os seus textos são adaptados da Bíblia, mas sem continuidade
textual. Tornou-se uma peça muito popular por ser confortável de
executar, e por não ter uma continuidade dramática rígida, permitindo
rearranjar a obra sem que a força estrutural se perca. A sua
primeira parte, de três, conta a história do nascimento de Jesus Cristo, e, por
isso, facilmente ganhou um lugar justificado como peça tradicional de Natal.
Já
a Oratória de Natal (Weihnachts-Oratorium) de Bach,
número de catálogo BWV 248, foi escrita especificamente para o Natal. O
seu texto é também adaptado da Bíblia, mas segue de forma bastante linear parte
do segundo capítulo do evangelho de S. Lucas – O nascimento de Cristo – e parte do segundo capítulo do evangelho de S.
Mateus – A visita
dos Magos.
Bach foi o Kantor (director
musical) da igreja de S. Tomás em Leipzig desde 1723 até à sua morte em 1750. De entre as várias funções que desempenhava como Kantor,
Bach tinha de compor para os serviços dominicais para as duas maiores igrejas
das quatro onde prestava serviço – a
Igreja de S. Tomás e a Igreja de S. Nicolau.
Para as três grandes festas religiosas, Natal, Páscoa e Pentecostes, era
esperado que escrevesse e executasse a música (neste caso, dirigisse o coro)
para as celebrações integrais dessas Festas. O tempo de Natal prolonga-se
desde o dia de Natal até ao domingo a seguir à Festa da Epifania (dia 6 de
janeiro). Em 1734-35, quando Bach escreveu a Oratória
de Natal, houve
seis dias de celebrações: três dias consecutivos a começar no dia 25 de
dezembro, o dia de ano novo, o domingo entre o dia de ano novo e a Festa da
Epifania (que, por causa mudança dos dias semanais de um ano para o outro, não
existe em todos os anos) e, finalmente, o dia da Festa da Epifania.
[a “Oratória de
Natal” de Bach, dirigida por John Eliot Gardiner e a sua orquestra de câmara, a
English Baroque Soloists:]
Bach
não escreveu uma Oratória para cada celebração, porque esse era um género
musical grande demais para um só serviço religioso. Assim sendo, escreveu 6 Cantatas, um género semelhante mas mais modesto e curto,
para cada dia do tempo de Natal:
BWV
248 I – “Jauchzet, frohlocket! Auf, preiset die Tage”, para a solenidade do Dia
de Natal
BWV
248 II – “Und es waren Hirten in derselben Gegend “, para o segundo dia de
Natal
BWV
248 III – “Herrscher des Himmels, erhöre das Lallen”, para o terceiro dia de
Natal
BWV
248 IV – “Fallt mit Danken, fallt mit Loben”, para a Festa da Circuncisão, que
deveria ser cantada na celebração do Ano Novo
BWV
248 V – “Ehre sei dir, Gott, gesungen”, para o domingo a seguir ao Ano Novo
BWV
248 VI – “Herr, wenn die stolzen Feinde schnauben”, para a Festa da Epifania.
Bach
escreveu estas 6 Cantatas com uma ideia musical única e por isso é que assim as
agrupou sob o mesmo nome “Weihnachts-Oratorium”. Geralmente assumimos que as quase duas horas e
meia de música são de facto uma só obra, e estamos habituados a ouvi-la do
princípio ao fim. Mas, sabendo que foram escritas para dias específicos das
celebrações de Natal, percebemos que cada uma destas Cantatas tem uma função
definida, tanto nos festejos litúrgicos como no conteúdo dramático e musical.
Ainda para mais, nem todos os fiéis assíduos de Leipzig puderam ouvir a
Oratória completa nesse Natal. Bach dividia os seus serviços pelas Igrejas de S.
Tomás e de S. Nicolau, e prestava os seus serviços musicais semanais
alternadamente entre essas duas igrejas.
Nos dias de Solenidade e nos dias maiores das Festas, havia dois serviços
diários (de manhã e à tarde), o que permitia a Bach dividir-se pelas duas
paróquias e executar a Cantata do dia em cada uma. Mas nos dias menores, só
havia um serviço – em 1734 aconteceu no terceiro dia de Natal e no Domingo a
seguir ao Ano Novo. Assim sendo, só houve uma atuação “completa” da Oratória na
Igreja se S. Nicolau.
A Oratória de Natal é uma obra
bastante longa e complexa, porém Bach foi muito engenhoso na sua composição. Em primeiro lugar, contornou o problema da
longa duração de uma Oratória para os serviços religiosos dividindo-a em 6 Cantatas mais curtas. Em segundo lugar, em vez de usar os textos que
iam ser lidos no evangelho diário, como seria de esperar, usou secções mais
seguidas dos evangelhos para contar a história da natividade de forma
ininterrupta e para lhe dar um maior sentido de continuidade dramática. Por
último, reutilizou muita música de outras composições (cantatas) de anos
anteriores nesta Oratória, compondo de raiz apenas os recitativos e poucos
números solísticos. Estas três caraterísticas da composição de Bach
contribuem para a coerência e coesão estrutural da Oratória.
Escritas para servir cada dia das celebrações de Natal, as
cantatas da Oratória valem musicalmente por si próprias. Cada uma trata de uma secção definida da história
da Natividade: O nascimento de Jesus; O anúncio aos pastores; A
adoração dos pastores; A circuncisão de Jesus; A viagem dos Reis Magos; A adoração
dos Reis Magos.
A instrumentação integral da Oratória conta com 4 solistas, coro a 4 vozes, 2 flautas
transversais, 2 oboés, 2 oboés d’amore, 2 oboés da caccia, 2 trompas, 3
trompetes, tímpanos, violinos I e II, violas e contínuo (que usualmente conta com
fagote, violoncelo, violone e órgão). Os
meios de que Bach dispunha para cada dia das celebrações variavam, e por isso a
instrumentação é diferente para cada Cantata. Assim, adaptou o número de
músicos que podia usar de forma engenhosa para criar o ambiente musical mais
apropriado ao tema que apresentava. Por exemplo, a primeira, terceira e
última cantatas usam os três trompetes — a sua sonoridade brilhante e marcial
contribui para o sentido de festejo e exuberância dos acontecimentos. Já a
cantata do segundo dia, que apresenta os pastores, conta com todos os
instrumentos de sopro de madeira para criar uma atmosfera pastoral.
A
quarta Cantata é a única que tem trompas — essa
mudança de instrumentação para um registo mais grave com um timbre mais suave
contribui para uma atmosfera mais íntima, apropriada para os textos da
circuncisão e nomeação de Jesus.
A técnica de “reciclagem” de outras
composições chama-se Paródia Musical, e a Oratória de Natal é um dos maiores e
mais bem-sucedidos exemplos dessa técnica.
Para além de Bach se autorreferenciar com outras cantatas, essas contêm, por
sua vez, textos e melodias corais já conhecidos e estabelecidos por outros compositores. O
uso da paródia musical serviu um propósito muito prático de economizar as
composições que Bach tinha de fazer para as celebrações de Natal, bem como de
agradar aos fiéis de Leipzig ao utilizar hinos fáceis de reconhecer, e até
mesmo conferir um maior sentido de unidade à Oratória por usar corais de
algumas cantatas originais em mais do que uma cantata da Oratória. Por exemplo,
no coral nº. 5 da primeira cantata,, “Wie soll ich dich empfangen” (Como devo
recebê-Lo), Bach usa um verso de um hino de advento escrito Paul Gerhardt, que
emparelhou com uma melodia do compositor e organista Hans Leo Hassler. Esta
melodia é ouvida novamente no último coral da última cantata, “Nun seid ihr
wohl gerochen” agora com a letra de Georg Werner.
Quer seja ouvida por
partes, quer na íntegra, não há dúvida nenhuma da mestria de Bach em adaptar a
sua música para ocasiões festivas e em musicar os textos bíblicos de forma
coerente. Hoje em dia é capaz de ser a peça mais programada nos concertos de
Natal.
Proponha uma correção, sugira uma
pista: ritamcblanco@gmail.com
COMENTÁRIOS:
Jorge Carvalho: Excelente
artigo. Parabéns. Muito
obrigado João Almeida: Parabéns
pelo artigo. Apenas uma chamada de atenção: a igreja onde Bach estreou muitas
obras em Leipzig, a Thomaskirche, evoca o apóstolo Tomé (que em alemão é
designado como Thomas). Basta ouvir ou ler a designação da igreja em alemão
para se compreender a razão da tradução "cair" literalmente em
"Tomás", mas sabendo que o nome da igreja evoca o apóstolo de Cristo,
e que entre os 12 apóstolos, na designação em português, nenhum se chama Tomás
havendo sim um Tomé, então a tradução mais apropriada é "Igreja de São
Tomé de Leipzig". Este comentário não invalida o merecido elogio à autora
pela qualidade genérica do artigo. bento guerra: A
representação de quinta-feira, na Gulbenkian, foi algo arrastada, sem a
vibração festiva que esta obra permite (anexo ao programa havia um excelente
"podcast" de Alexandre Delgado ). Talvez por haver máscaras a mais
naquelas caras
Sata:
Muito obrigado pela excelente explicação
da "Oratória de Natal" de Bach.
Nenhum comentário:
Postar um comentário