As “Considerações
inoportunas” de Jaime
Nogueira Pinto - pelo contrário, sempre oportunas, corajosas e bem
ilustradas – assim desejássemos nós, colher nelas reforços que assentassem nas
nossas mentes despidas, na sua maioria, de interesse real de ilustração. Que fossem,
pelo menos, menos comodistas, as mentes, não raro desabridamente ou
malevolamente interpretadas, tais considerações, por importunos dizeres inócuos
ou banais, no politicamente correcto do consenso geral – esse, sim, bem oportunista
- exceptuados, é claro, os saudosistas da velha guarda, extinta.
Considerações inoportunas
Sob o grande manto retórico da
universalização de conceitos que todos parecem subscrever, persiste a
contradição e o conflito de valores.
JAIME NOGUEIRA
PINTO, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 03
dez 2021
Às
vezes é preciso pensar a política – uma actividade que parece ter caído em
desuso no calor da luta pela sobrevivência e perante a inconciliabilidade do
tempo curto e das regras da comunicação com a conceptualização de valores e
ideias. Há muitas explicações para este estado de coisas. A
primeira, é a decadência das fontes do pensamento político e filosófico.
Depois
dos grandes ciclos – Iluminismo,
Revolução e Contra-Revolução; Capitalismo-Marxismo-Fascismo;
Tradicionalismo-Progressismo; Conservadorismo-Liberalismo – e das polémicas confrontações da Guerra Fria entre
Comunismo Totalitário e Capitalismo Liberal, entrámos
numa espécie de grande centro ou trégua, em que se universalizaram certos
conceitos, que, genuína ou oportunisticamente, todos parecem subscrever. Conceitos como “Democracia” e “Direitos Humanos”, que
passaram a ser proclamados por todos os regimes e dirigentes, das democracias
europeias às oligarquias terceiro-mundistas. São retóricas globais, cartilhas repetidas com mais ou
menos convicção, da América à China, de Kinshasa a Berlim.
E
não é preciso ir tão longe. Quem
leia os programas dos partidos domésticos do chamado “arco constitucional” vê
essa mesma amálgama de princípios vagos e simpáticos, agora reforçada pela
linguagem dita inclusiva, que invade ou se propõe invadir todos os discursos e
documentos.
Sobre
esta insidiosa platitude de ideias
e princípios – inodoros,
incolores e insípidos, mas não inócuos –
distinguem-se duas dissidências que se alimentam reciprocamente. Uma, é a nova
direita identitária e popular; a outra é a esquerda globalista, uma esquerda
ideológica e cultural mas com expressão política.
Mais que uma dissidência, esta
esquerda globalista é uma radicalização abusiva e consequente dos princípios
“universais” que todos ou
quase todos subescrevem ou “deviam subscrever”. A ela pertencem movimentos como o Woke, a
Ideologia de Género e outras
correntes a que, com
alguma reserva, poderíamos chamar
neo-marxistas ou neo-gramscianas. Estas
correntes aplicam o materialismo
dialéctico e os seus mecanismos de análise, procurando adaptá-los à realidade presente do mundo
euro-americano. E a
realidade presente exige novos pólos de confronto, novos “oprimidos” e muita
adaptação: como
falar em “proletariado”, em “classe
operária”, num mundo
onde a indústria praticamente desapareceu? Como clamar por unidade
contra “o grande capital”, quando o
grande capital se despersonalizou e se tornou, em muitos casos, um aliado
objectivo desta mesma esquerda na guerra às identidades familiares e nacionais
e a tudo o que atrapalhe a global circulação de capitais, activismos e “causas
fracturantes”?
A
revisão do sovietismo e do marxismo-leninismo de tipo soviético-estalinista
começou com Gramsci, que escreveu parte substancial da sua reflexão crítica no
confinamento do fascismo italiano, com tempo de escrita e livros para consulta
(coisas que, por ironia da sorte, não lhe teriam sido facultadas na Rússia
Soviética dos anos trinta, entre a Tcheka e o Goulag). A revisão dos
socialismos reais e da
conceptualização jadnovista que os pretendeu justificar foi também feita na
liberdade do mundo capitalista por heterodoxos como Henri Lefebvre
e Herbert
Marcuse, na linha
da Escola de
Frankfurt. Depois, o
Maoísmo trouxe uma dialéctica
de povos, em que as
periferias afro-asiáticas se levantariam contra o “centro” euroamericano, onde
estaria a própria Rússia, considerada “social-fascista” ou “revisionista”.
À
direita, a novidade ideológica dos anos 80 foi a coligação reaganista de conservadores religiosos,
falcões anticomunistas e neo-liberais económicos. Uma coligação que funcionou no terreno, num tempo
em que as crises e as humilhações da década anterior, do Watergate à presidência de Jimmy Carter, possibilitaram uma radicalidade ideológica de
resposta que Reagan corporizou e para a qual conseguiu apoio popular. Mas o reaganismo, que uniu nacionalismo, religião
e liberdade económica, foi um momento único na América.
A vitória na Guerra Fria veio depois, paradoxalmente, destruir alguns dos
fundamentos da coligação vitoriosa, ao transformar o mundo num grande mercado, para
onde se deslocaram as indústrias americanas – dispensando os operários que
tinham votado num líder conservador e popular como Reagan. Também, nos
últimos anos da Guerra Fria,
desaparecido o Grande Timoneiro, a
China, sob o
nacionalista autoritário e pragmático Deng
Xiaoping, começou a
usar nichos de capitalismo para tirar o povo da miséria e salvar o regime. A seguir à Guerra Fria, como a seguir à Grande Guerra
e à Segunda Guerra Mundial, multiplicaram-se as utopias. Antes, tinham que ver com o fim da Guerra e a Paz
Perpétua; agora, com o fim da História e o advento da Democracia Liberal como
modelo único de regime político.
Contudo,
logo no princípio deste século, veio o macroterrorismo jihadista e a resposta ao macroterrorismo dos neoconservadores, que trouxe vinte anos de empenhamento frustrado da
América em guerras longínquas. E
frustrados os projectos globais e amalgamadas as ideologias, as divisões da
Humanidade voltaram a fazer-se pela religião, pela nação, pelas raízes, por
aquilo que une os homens no meio dos outros homens.
É esta a dialéctica dos novos e nossos
tempos: um
mundo de Estados que voltam a comportar-se ou a entender-se em função do
espaço, da população, dos recursos, numa Geopolítica que, turvadas as
bipolarizações ideológicas, volta aos seus eixos de competição, sob o manto de
fantasias e utopias que continuam a servir para definir o melhor dos mundos – e
a velha bondade das novas esquerdas.
Assim,
os valores e as ideias voltam a estar de pé e em confronto, embora às vezes aqui pareça – e é esse o “mal português” há muitas décadas – que não há
confronto e que todos pensam o mesmo ou pensam pouco.
Está a chegar o tempo de ver para
além da retórica das boas ideias e melhores palavras e reconhecer as
contradições e os conflitos que estão em jogo. E de fazer as escolhas
necessárias.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR POLÍTICA FILOSOFIA
POLÍTICA GEOPOLÍTICA MUNDO
COMENTÁRIOS:
maria ribeiro: Desengeringonçar é também desabrilar, desproletarizar,
desmarxizar, desconsumizar, desendividar, desparasitar, descorromper,
desempalavrar, desilucionar, Maria Madeira: Artigo muito interessante. maria ribeiro: Analisar é decompor o todo nas
suas partes para ver as suas relações, funções e causas. A Análise política é
complexa, é mais fácil substituí-la por palpites. Adivinhar é descobrir por
supostos meios sobrenaturais, supranormais ou engenhosos artifícios (Houaiss),
pressagiar, pressentir, descobrir por suposição ou puro acaso. Requer uma
superior auto estima que coloca os adivinhadores acima dos meros raciocínios
humanos. Estamos na época da opinião por palpites, josé maria: Hoje, qualquer país civilizado
não tem futuro nem progresso fora de uma ideia política de social-democracia. A
direita está condenada à fossilização temporal. Acg: Mais um excelente texto e, ao
contrário do que titula, com considerações bem oportunas, não só porque nos
relembra um passado recente no que à atividade política diz respeito, porque a
memória é cada vez mais curta, mas também porque, por aqui, andamos a perder
tempo e 1975 e os seus horrores - felizmente cortados cerce em 25 de novembro -
já vai ficando longe, muito longe, a ideologia, hoje, nada tem a ver com aquilo
que então estava na ordem (melhor, desordem) do dia. A questão é que, não fora
a adesão à então CEE e os muitos milhares de milhões que por aqui caíram,
continuaríamos pouco melhor. Assim, se estamos melhor (estamos por essa razão)
continuamos bem longe do desejável, perdidos "no calor da luta pela
sobrevivência". Um bom texto, precisamos de quem nos abra os olhos. Maria Emília Santos Santos: O Deus de Jesus Cristo,
que tanto incomoda os esquerdistas a pontos de O quererem apagar da
História da Criação Universal, e consequentemente da Civilização cristã
europeia, ainda Se mantém no comando de todo o criado! Um belo dia Ele acorda, e põe
fim ao poder das trevas e a tantos seguidores desgraçados, imbecis,
tresloucados que não sabem o que fazem nem para onde os seus chefes os
estão a conduzir! Haverá um "mar vermelho" para passar, mas, como no
tempo dos faraós, só alguns farão a travessia. Os que agora usam o
poder para escravizar, verão a justiça divina cair sobre eles sem dó nem
piedade. Que esse dia venha depressa! miguel benis: Anda muita gente distraída e
convencida que com meia dúzia de pensamentos "bonzinhos", Portugal
vai no Bom caminho...
bento guerra: A ignorância dos "opinion makers" é muito
atrevida (não é o caso deste pensador JNP) e vai contaminando uma opinião
pública preguiçosa de pensar. maria ribeiro > bento guerra: JNP não é um "fala-barato".
A dificuldade da análise política começa pela dificuldade de sairmos dos nossos
interesses pessoais, da multiplicidade dos campos científicos (e filosóficos)
sujeitos a uma crítica epistemológica, requer uma formação especializada. É claro que todos nós devemos ter as nossas opiniões políticas mas outra
coisa é fazer análise política. João Floriano: Aprendo sempre muito com as
crónicas de JNP. Em Portugal não tem havido confronto de ideias e a culpa
vai sobretudo para uma direita acomodada, envergonhada da sua existência e que
acredita nas patacoadas que a esquerda vai impingindo: a esquerda é
boa, a direita é má. Quando surgem grupos que desafiam esta
concepção maniqueísta e falsa, são imediatamente silenciados com os termos que
todos nós conhecemos. O que a direita precisa é estender-se no divã e trabalhar
a sua auto-estima. Américo Silva: A vocação do império é o
domínio sem limite. Foi assim no Egipto, vicissitudes várias acabaram no
domínio do mundo da época, as terras férteis do Nilo. Foi assim com Alexandre,
e com os romanos. As ideias servem o império, como o cristianismo foi
usado para dominar a África, o comunismo foi usado em 1917 para combater a
Rússia, como agora se usa a democracia para combater a China ou o Irão. Nas
margens do império, enquanto houver império, a guerra será constante. Jorge Carvalho: Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem, Nem o que é mal nem o que é bem. Tudo é incerto e
derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Ó Portugal, hoje és nevoeiro… É a
Hora! Nada melhor que estes versos de F. Pessoa para referir o momento actual.
Obrigado, Jaime Nogueira Pinto.
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