sábado, 4 de dezembro de 2021

Mas nunca oportunistas


As “Considerações inoportunas” de Jaime Nogueira Pinto - pelo contrário, sempre oportunas, corajosas e bem ilustradas – assim desejássemos nós, colher nelas reforços que assentassem nas nossas mentes despidas, na sua maioria, de interesse real de ilustração. Que fossem, pelo menos, menos comodistas, as mentes, não raro desabridamente ou malevolamente interpretadas, tais considerações, por importunos dizeres inócuos ou banais, no politicamente correcto do consenso geral – esse, sim, bem oportunista - exceptuados, é claro, os saudosistas da velha guarda, extinta.

Considerações inoportunas

Sob o grande manto retórico da universalização de conceitos que todos parecem subscrever, persiste a contradição e o conflito de valores.

JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observador         

OBSERVADOR, 03 dez 2021

Às vezes é preciso pensar a política – uma actividade que parece ter caído em desuso no calor da luta pela sobrevivência e perante a inconciliabilidade do tempo curto e das regras da comunicação com a conceptualização de valores e ideias. Há muitas explicações para este estado de coisas. A primeira, é a decadência das fontes do pensamento político e filosófico.

Depois dos grandes ciclos – Iluminismo, Revolução e Contra-Revolução; Capitalismo-Marxismo-Fascismo; Tradicionalismo-Progressismo; Conservadorismo-Liberalismo – e das polémicas confrontações da Guerra Fria entre Comunismo Totalitário e Capitalismo Liberal, entrámos numa espécie de grande centro ou trégua, em que se universalizaram certos conceitos, que, genuína ou oportunisticamente, todos parecem subscrever. Conceitos como “Democracia” e “Direitos Humanos”, que passaram a ser proclamados por todos os regimes e dirigentes, das democracias europeias às oligarquias terceiro-mundistas. São retóricas globais, cartilhas repetidas com mais ou menos convicção, da América à China, de Kinshasa a Berlim.

E não é preciso ir tão longe. Quem leia os programas dos partidos domésticos do chamado “arco constitucional” vê essa mesma amálgama de princípios vagos e simpáticos, agora reforçada pela linguagem dita inclusiva, que invade ou se propõe invadir todos os discursos e documentos.

Sobre esta insidiosa platitude de ideias e princípiosinodoros, incolores e insípidos, mas não inócuos – distinguem-se duas dissidências que se alimentam reciprocamente. Uma, é a nova direita identitária e popular; a outra é a esquerda globalista, uma esquerda ideológica e cultural mas com expressão política.

Mais que uma dissidência, esta esquerda globalista é uma radicalização abusiva e consequente dos princípios “universais” que todos ou quase todos subescrevem ou “deviam subscrever”. A ela pertencem movimentos como o Woke, a Ideologia de Género e outras correntes a que, com alguma reserva, poderíamos chamar neo-marxistas ou neo-gramscianas. Estas correntes aplicam o materialismo dialéctico e os seus mecanismos de análise, procurando adaptá-los à realidade presente do mundo euro-americano. E a realidade presente exige novos pólos de confronto, novos “oprimidos” e muita adaptação: como falar em “proletariado”, em “classe operária”, num mundo onde a indústria praticamente desapareceu? Como clamar por unidade contra “o grande capital”, quando o grande capital se despersonalizou e se tornou, em muitos casos, um aliado objectivo desta mesma esquerda na guerra às identidades familiares e nacionais e a tudo o que atrapalhe a global circulação de capitais, activismos e “causas fracturantes”?

A revisão do sovietismo e do marxismo-leninismo de tipo soviético-estalinista começou com Gramsci, que escreveu parte substancial da sua reflexão crítica no confinamento do fascismo italiano, com tempo de escrita e livros para consulta (coisas que, por ironia da sorte, não lhe teriam sido facultadas na Rússia Soviética dos anos trinta, entre a Tcheka e o Goulag). A revisão dos socialismos reais e da conceptualização jadnovista que os pretendeu justificar foi também feita na liberdade do mundo capitalista por heterodoxos como Henri Lefebvre e Herbert Marcuse, na linha da Escola de Frankfurt. Depois, o Maoísmo trouxe uma dialéctica de povos, em que as periferias afro-asiáticas se levantariam contra o “centro” euroamericano, onde estaria a própria Rússia, considerada “social-fascista” ou “revisionista”.

À direita, a novidade ideológica dos anos 80 foi a coligação reaganista de conservadores religiosos, falcões anticomunistas e neo-liberais económicos. Uma coligação que funcionou no terreno, num tempo em que as crises e as humilhações da década anterior, do Watergate à presidência de Jimmy Carter, possibilitaram uma radicalidade ideológica de resposta que Reagan corporizou e para a qual conseguiu apoio popular. Mas o reaganismo, que uniu nacionalismo, religião e liberdade económica, foi um momento único na América.

A vitória na Guerra Fria veio depois, paradoxalmente, destruir alguns dos fundamentos da coligação vitoriosa, ao transformar o mundo num grande mercado, para onde se deslocaram as indústrias americanas – dispensando os operários que tinham votado num líder conservador e popular como Reagan. Também, nos últimos anos da Guerra Fria, desaparecido o Grande Timoneiro, a China, sob o nacionalista autoritário e pragmático Deng Xiaoping, começou a usar nichos de capitalismo para tirar o povo da miséria e salvar o regime. A seguir à Guerra Fria, como a seguir à Grande Guerra e à Segunda Guerra Mundial, multiplicaram-se as utopias. Antes, tinham que ver com o fim da Guerra e a Paz Perpétua; agora, com o fim da História e o advento da Democracia Liberal como modelo único de regime político.

Contudo, logo no princípio deste século, veio o macroterrorismo jihadista e a resposta ao macroterrorismo dos neoconservadores, que trouxe vinte anos de empenhamento frustrado da América em guerras longínquas. E frustrados os projectos globais e amalgamadas as ideologias, as divisões da Humanidade voltaram a fazer-se pela religião, pela nação, pelas raízes, por aquilo que une os homens no meio dos outros homens.

É esta a dialéctica dos novos e nossos tempos: um mundo de Estados que voltam a comportar-se ou a entender-se em função do espaço, da população, dos recursos, numa Geopolítica que, turvadas as bipolarizações ideológicas, volta aos seus eixos de competição, sob o manto de fantasias e utopias que continuam a servir para definir o melhor dos mundos – e a  velha bondade das novas esquerdas.

Assim, os valores e as ideias voltam a estar de pé e em confronto, embora às vezes aqui pareçae é esse o “mal português” há muitas décadasque não há confronto e que todos pensam o mesmo ou pensam pouco.

 Está a chegar o tempo de ver para além da retórica das boas ideias e melhores palavras e reconhecer as contradições e os conflitos que estão em jogo. E de fazer as escolhas necessárias.

A SEXTA COLUNA   CRÓNICA   OBSERVADOR   POLÍTICA   FILOSOFIA POLÍTICA   GEOPOLÍTICA   MUNDO

COMENTÁRIOS:

maria ribeiro: Desengeringonçar é também desabrilar, desproletarizar,  desmarxizar,  desconsumizar, desendividar, desparasitar, descorromper, desempalavrar, desilucionar,            Maria Madeira: Artigo muito interessante.            maria ribeiro: Analisar é decompor o todo nas suas partes para ver as suas relações, funções e causas. A Análise política é complexa, é mais fácil substituí-la por palpites. Adivinhar é descobrir por supostos meios sobrenaturais, supranormais ou engenhosos artifícios (Houaiss), pressagiar, pressentir, descobrir por suposição ou  puro acaso. Requer uma superior auto estima que coloca os adivinhadores acima dos meros raciocínios humanos. Estamos na época da opinião por palpites,         josé maria: Hoje, qualquer país civilizado não tem futuro nem progresso fora de uma ideia política de social-democracia. A direita está condenada à fossilização temporal.         Acg: Mais um excelente texto e, ao contrário do que titula, com considerações bem oportunas, não só porque nos relembra um passado recente no que à atividade política diz respeito, porque a memória é cada vez mais curta, mas também porque, por aqui, andamos a perder tempo e 1975 e os seus horrores - felizmente cortados cerce em 25 de novembro - já vai ficando longe, muito longe, a ideologia, hoje, nada tem a ver com aquilo que então estava na ordem (melhor, desordem) do dia. A questão é que, não fora a adesão à então CEE e os muitos milhares de milhões que por aqui caíram, continuaríamos pouco melhor. Assim, se estamos melhor (estamos por essa razão) continuamos bem longe do desejável, perdidos "no calor da luta pela sobrevivência". Um bom texto, precisamos de quem nos abra os olhos.         Maria Emília Santos Santos: O Deus de Jesus Cristo,  que tanto incomoda  os esquerdistas  a pontos de O quererem apagar da História da Criação Universal, e consequentemente da Civilização cristã europeia,  ainda Se mantém no comando de todo o criado! Um belo dia Ele acorda, e põe fim ao poder das trevas e a tantos seguidores desgraçados, imbecis,  tresloucados  que não sabem o que fazem nem para onde os seus chefes os estão a conduzir! Haverá um "mar vermelho" para passar, mas, como no tempo dos faraós, só alguns  farão a travessia. Os que agora  usam o poder para escravizar,  verão a justiça divina cair sobre eles sem dó nem piedade. Que esse dia venha depressa!        miguel benis: Anda muita gente distraída e convencida que com meia dúzia de pensamentos "bonzinhos", Portugal vai no Bom caminho...          bento guerra: A ignorância dos "opinion makers" é muito atrevida (não é o caso deste pensador JNP) e vai contaminando uma opinião pública preguiçosa de pensar.           maria ribeiro > bento guerra: JNP não é um "fala-barato". A dificuldade da análise política começa pela dificuldade de sairmos dos nossos interesses pessoais, da multiplicidade dos campos científicos (e filosóficos) sujeitos a uma crítica epistemológica, requer uma formação especializada. É claro que todos nós devemos ter as nossas opiniões políticas mas outra coisa é fazer análise política          João Floriano: Aprendo sempre muito com as crónicas de JNP. Em Portugal não tem havido confronto de ideias e a culpa vai sobretudo para uma direita acomodada, envergonhada da sua existência e que acredita  nas patacoadas que a esquerda vai impingindo: a esquerda é boa,  a direita é má.  Quando surgem grupos que desafiam esta concepção maniqueísta e falsa, são imediatamente silenciados com os termos que todos nós conhecemos. O que a direita precisa é estender-se no divã e trabalhar a sua auto-estima.          Américo Silva: A vocação do império é o domínio sem limite. Foi assim no Egipto, vicissitudes várias acabaram no domínio do mundo da época, as terras férteis do Nilo. Foi assim com Alexandre, e com os romanos. As ideias servem o império, como o cristianismo foi usado para dominar a África, o comunismo foi usado em 1917 para combater a Rússia, como agora se usa a democracia para combater a China ou o Irão. Nas margens do império, enquanto houver império, a guerra será constante.           Jorge Carvalho: Ninguém sabe que coisa quer. Ninguém conhece que alma tem, Nem o que é mal nem o que é bem. Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Ó Portugal, hoje és nevoeiro… É a Hora! Nada melhor que estes versos de F. Pessoa para referir o momento actual. Obrigado, Jaime Nogueira Pinto.

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