Numa história de abjecção. Mais uma só, nos objectivos que nos orientam, numa longa história de sujeitos e objectos em coesão, como conta Paulo Tunhas, nos seus escrúpulos morais de sujeito fixe e de objectivos adversos.
Uma
história de abjecção
Alguns chamam a isto arrogância. Não
me parece. O que transpareceu sempre do comportamento de Eduardo Cabrita foi um
palpável sentimento de inferioridade. Daí a sua agressividade e a sua
grosseria.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 09
dez 2021,
Já
toda a gente falou e escreveu sobre o assunto, mas há qualquer coisa,
parece-me, que ninguém notou suficientemente. O assunto, é claro, é a demissão
de Eduardo Cabrita. E o que me parece que não foi suficientemente notado
é uma particular abjecção, mais profunda ainda que o notório grotesco da
personagem.
“Eu sou passageiro” e “A viatura que me
transportava foi vítima de um acidente”, disse Eduardo Cabrita, respectivamente
na manhã e na tarde de sexta-feira passada, depois de o seu motorista ter sido
acusado de homicídio por negligência no caso do acidente que vitimou Nuno
Santos a 18 de Junho deste ano. É preciso reconhecer ao ex-ministro um génio
vocabular particular e nunca desmentido. Sempre que abre a boca, depois
de uma das trapalhadas em que se mete, consegue piorar a situação,
acrescentando o grotesco à gravidade da situação. Desta vez foi, entre outras
coisas, a forma delicada como, depois de uma mentirita (as obras na A6 não estariam
sinalizadas), lançou a responsabilidade no seu motorista e descobriu que o
seu carro tinha sido a vítima num acidente mortal. This piano has been
drinking, not me, dizia pastosamente Tom Waits numa canção antiga.
Desde que se tornou conhecido do
grande público, ao tirar repetidas vezes o microfone a um secretário de Estado
de Passos Coelho, um episódio a todos os títulos memorável, que ele não falha. Não falhou, por exemplo, no caso das “golas de fumo”,
fazendo notar aos jornalistas que eles se rodeavam de perigosos microfones
combustíveis. E não falhou aquando do homicídio de Ihor Homenyuk por
funcionários do SEF, lançando um sonoro “Bem-vindos ao combate pela defesa dos
direitos humanos!” aos deputados que o interrogavam sobre o tristíssimo
acontecimento. Não falha. Se pode acrescentar palavras que piorem a
circunstância, não hesita por um instante e elas saem-lhe da boca com uma
naturalidade estarrecedora. Se calhar, é isto que a sua mulher, a também ex-ministra Ana Paula Vitorino, quando se põe a falar “do
Eduardo” com palavras que o pudor me impede de reproduzir aqui, chama “dar o
peito às balas”. Parece-me
modéstia, até porque em Portugal, a acreditar no hino, gostamos de marchar
contra os canhões. O Eduardo, para aproveitar a sugestão de intimidade
da esposa, é mais do género de desafiar, com virilidades tauromáquicas de
forcado, obuses e tudo daí para cima.
Alguns
chamam a isto arrogância. Francamente,
não me parece. A arrogância, por mais complexas e equívocas que sejam estas
coisas, supõe um sentimento, eventualmente perverso, de superioridade. Ora, nunca senti nada disso ao ver e ouvir Eduardo
Cabrita. Muito pelo contrário. Ousaria até dizer: muitíssimo pelo contrário. O
que transpareceu sempre do seu comportamento foi um palpável sentimento de inferioridade, próprio a alguém
que vive muito mal na sua pele, julgando-se permanentemente acossado, e
dolorosamente consciente das suas limitações e da sua incompetência. Daí, muito explicavelmente, a sua agressividade e a
sua grosseria, defesas naturais de alguém que se imagina perseguido e que, ao
mesmo tempo, sabe que não está à altura do cargo que ocupa.
Mas
porque é que o deixaram tanto tempo a fazer aquelas figuras grotescas? Porquê
deixar uma alma assim atormentada exibir em público o seu indisfarçável
mal-estar? E quem é que assim quis que fosse? A última pergunta é a mais fácil
de responder: António
Costa, evidentemente. A
partir daí, a resposta à primeira pergunta surge com toda a aparência do
indubitável. A primeira pessoa a oferecê-la foi, tanto quanto sei, na
televisão, há já algum tempo, José Miguel Júdice. Segundo ele,
Costa precisaria de ter à sua volta um certo número de sacos de pancada que
absorvessem as críticas feitas ao Governo e, de caminho, o protegessem a ele.
Ora, quem melhor do que Eduardo Cabrita para ocupar um
lugar cimeiro na distinta hierarquia dos sacos de pancada? Tinha todas as qualidades requeridas e mais algumas. A
escolha era óbvia, tanto mais que gozava do excelente disfarce de uma
velhíssima amizade, que a comunicação social gostosamente propagandeava. Costa protegeria Cabrita por causa desse nobre
sentimento entre iguais.
É aqui que entra, forte e feia, a
abjecção. Costa e
Cabrita nunca foram iguais, no sentido de se colocarem no mesmo plano e de
apresentarem excelências comuns. Visivelmente, um era o senhor, o outro o
escravo. A dialéctica da abjecção encontrava um óptimo lugar para se
manifestar. Como é que alguém se presta a entrar num jogo que o humilha
quotidianamente para satisfazer os interesses de outra pessoa? E – sobretudo,
muito sobretudo – como é que alguém não hesita em sacrificar de modo tão cruel
uma outra pessoa em benefício exclusivo dos seus interesses próprios, ao mesmo
tempo que só tem para o outro belas e doces palavras (“excelente ministro”,
etc.)?
Decididamente,
o que interessa politicamente nesta triste história não é certamente Cabrita, a
não ser que a nossa curiosidade incida sobre os profundos mistérios que levam
certos indivíduos às mais servis paixões. O que
interessa politicamente é o que tudo isto nos revela sobre a
ausência de limites na apetência pelo poder de António Costa. Porque, como é óbvio, se ele fez o que fez a Cabrita,
tal não se deveu a um qualquer impulso sádico de que o outro seria um objecto
preferencial. O que ele fez a Cabrita – a utilização do outro como um
mero meio, sem nunca o considerar como um fim em si mesmo, para falar como um
filósofo – faz-nos constantemente a todos nós. Portugal e os portugueses verosimilmente não lhe
interessam senão como meio de perpetuar o seu poder. A abjecção – volto a
insistir na palavra, porque me parece a mais justa – da relação de Costa com
Cabrita não se distingue grandemente da abjecção da relação de Costa com os
portugueses. Que, diga-se de passagem, em muitos casos partilham, até talvez
por razões idênticas, a esquisita paixão humilhante do ex-ministro.
MINISTÉRIO
ADMINISTRAÇÃO INTERNA POLÍTICA GOVERNO
COMENTÁRIOS:
José Dias: Aparentemente
escapou ao inefável "maria" que Miguel Macedo conduzia a sua viatura
particular e ... fez questão de pagar a multa que a estrutura dirigente da GNR,
quiçá habituada aos bons métodos socialistas dos anos que o precederam (e que
estão de volta), de imediato correu a "perdoar"! Belos tempos
efectivamente em que ministros não aceitavam benesses e tratamento especial
dado pelas estruturas que tutelavam ...
Carlos Vito: Excelente
artigo. Vai ao encontro das razões profundas que permitem explicar não só o
comportamento de Cabrita mas também deste com o seu "dono".
Creio ainda que o sujeito se deixou deslumbrar cada vez mais com o poder, como
prova a afirmação que vai ficar para a posteridade, que era apenas
"passageiro". Convenceu-se que o apoio do amo estaria sempre
disponível ignorando o maquiavelismo de Costa, a personagem mais perigosa
da política portuguesa.
AL MA: Muito bom. Lourenço de Almeida: muito bem escrito
Muito bom artigo Paulo Tulhas. Tenho-me batido, por
aqui no Observador, por algo que considero execrável: o aproveitamento político
da dor de terceiros, o falecido e o motorista, para atacar a abantesma do
Cabrita. Paulo Tulhas, neste artigo usa o infeliz evento apenas como
introdução, não faz dele a pedra de toque da opinião. Logo de imediato parte
para o que realmente interessa, que é o desfiar do Rosário maldito, desta tropa
fandango que os portugueses escolheram para os governar. Paulo Tunhas, como
sempre, soberbo.
josé maria: Miguel Macedo foi o primeiro ministro da
Administração Interna a ser multado pela GNR. O episódio ocorreu, segundo o
Sol, há cerca de um ano quando o então governante circulava em excesso de
velocidade. Ainda que a multa lhe fosse perdoada,
este fez questão de pagá-la. Tudo porque, ao ser apanhado a circular a
162km/hora, depois de uma ultrapassagem – quando ia a caminho de Braga, no seu
carro particular, com a filha –, Macedo fez questão de pagar a multa no valor
de 120 euros.
Notícias ao Minuto, 21/11/2014 Belos tempos, quando as
multas eram perdoadas ao
MAI em excesso de velocidade, a 162 km/hora, conduzindo o seu carro particular,
na companhia da sua filha...
josé maria: Miguel Relvas terá pedido desculpa por alegada ameaça
a jornalista do Público. Sic, 19/5/2012 Belos tempos governamentais, em que não
existiam histórias de abjecção moral correspondentes e tudo era tratado com um
civismo ministerial irrepreensível... Aparentemente escapou ao inefável "maria"
que Miguel Macedo conduzia a sua viatura particular e ... fez questão de pagar
a multa que a estrutura dirigente da GNR, quiçá habituada aos bons métodos
socialistas dos anos que o precederam (e que estãode volta), de imediato correu
a "perdoar"! Belos tempos efectivamente em que ministros não
aceitavam benesses e tratamento especial dado pelas estruturas que tutelavam
...
Carlos Vito: Excelente artigo. Vai ao encontro das razões profundas
que permitem explicar não só o comportamento de Cabrita mas também deste
com o seu "dono". Creio ainda que o sujeito se deixou deslumbrar cada
vez mais com o poder, como prova a afirmação que vai ficar para a posteridade,
que era apenas "passageiro". Convenceu-se que o apoio do amo estaria
sempre disponível ignorando o maquiavelismo de Costa, a personagem mais
perigosa da política portuguesa. Lourenço de Almeida: muito bem escrito.
Paulo Cardoso: Muito bom artigo Paulo Tulhas. Tenho-me batido, por
aqui no Observador, por algo que considero execrável: o aproveitamento político
da dor de terceiros, o falecido e o motorista, para atacar a abantesma do
Cabrita. Paulo Tulhas, neste artigo usa o infeliz evento apenas como
introdução, não faz dele a pedra de toque da opinião. Logo de imediato parte
para o que realmente interessa, que é o desfiar do Rosário maldito, desta tropa
fandango que os portugueses escolheram para os governar. Paulo Tulhas, como
sempre, soberbo.
joão Melo: Até que enfim
que alguém escreve algo de jeito sobre estes crápulas que nos desgovernam! Um
artigo que seja mais claro do que este é, parece-me, muito difícil de
encontrar. Parabéns Paulo Tunhas! Brilhante. Pena é que a oposição, que existe
neste país de faz de conta, não consiga fazer análises como esta, e depois
difundi-las até que os portugueses compreendam como tudo isto é
maquiavélico! Abjecto!!
José Monteiro > joão Melo:
A "crapulice" desceu à cidade,
para
mal da minha costela de esquerda.
Crapulice
& Trafulhice SA.
Abjectos
seres, abjecto sistema!
A
"irresponsabilidade" assentou praça na Ordem da Rosa.
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