sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Abulia


Disse-o Sá Carneiro na sua Caranguejola”:

«…… Desistamos.  A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co’a breca! Levem-me prà enfermaria! —
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará……..»

Mas que isso não impeça Paulo Tunhas de continuar lutando, pelas suas causas que são, afinal, as de muitos mais. Uma sociedade envelhecida, sim. Mas também tantos jovens o estão, hoje! Adaptados, com subsídio, com que lhes acenam o futuro, as tais políticas da solidariedade envolvente, agasalhante… Continuem lutando os Paulo Tunhas do nosso agrado, por uma sociedade mais ampla de conceito e de empenhamento. De orgulho.

 

Questão de estilos

O conflito está na sociedade, quer se queira quer não. O que acontece é que ele pode, em certos casos, perder os bons modos e deslocar-se do centro da vida política para a periferia.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 23 dez 2021.

Sábado passado, de manhã, apanhei um táxi para ir comprar um romance de Camilo a um alfarrabista na Rua Formosa. O taxista era falador. O tempo (é preciso chuva), o futebol (o Porto está bem) e, quase a chegar ao destino, a política. Rui Rio vai ganhar as eleições. É sério. Fala uma linguagem que toda a gente percebe. É pão, pão, queijo, queijo. Nunca ouso discordar de um taxista, é um dos meus poucos princípios firmes. Mais um voto garantido para o homem sério, pensou ele de certeza.

À saída, com o livro de Camilo (com as “palavras difíceis” – em Camilo sempre muitas – sublinhadas pelo anterior proprietário) debaixo do braço, fui a pé até à Praça D. João I apanhar outro táxi. Há muito que não via tanta gente na rua. Em Santa Catarina, tudo fervilhava, tudo mexia, no meio de uma luz branca, doce e bonita. O povo, meu colega, andava às compras. Como levo, desde há mais ou menos vinte anos, uma vida de eremita, sem quase, nos últimos tempos, me dar conta dos confinamentos, fiquei surpreendido. Mas foi tudo menos desagradável. Pelo contrário, gostei. Lembrou-me um mundo antigo, que tinha praticamente esquecido, quando ainda sentia a cidade como minha. É curioso como o contacto com uma pequena multidão pode despertar um sentimento assim. Deve dizer bem da humanidade.

O segundo taxista também era falador. Desta vez, a política veio logo à tona. Era uma pessoa de esquerda, tinha votado no PS nas duas últimas eleições. Mas zangara-se com Costa com o fim da geringonça. Não lhe perdoava, dizia ele, o fim da aliança com a esquerda. Devia pagar por isso. Felizmente, havia Rui Rio. Rui Rio ia fazer o que é preciso fazer. Toda a gente percebe o que ele diz. E está preparado para governar – para me servir dos sublinhados de Os brilhantes do brasileiro, é “de sola e vira”. Mais uma vez, não contrariei o entusiasmo, que durou até à Cozinha da Amélia, onde ia almoçar.

Estas coisas, sobretudo se acompanhadas de outros sinais que se sentem por aí, dão que pensar. Eu sei que é no Porto, onde Rio goza de uma popularidade que não tem no resto do país. Mas quer dizer alguma coisa. Quer dizer pelo menos uma coisa. Que um dos atractivos maiores de Rio para certas pessoas não reside em qualquer corte com o programa de governação do PS, mas numa mera questão de estilo. Nem, de facto, podia ser de outra maneira, até porque, que eu tenha reparado, Rui Rio não anunciou nunca um programa verdadeiramente diferente do programa do PS em matérias substantivas. É mais uma questão da maneira de falar e da aura de seriedade que muitos vêem nele. É, como disse, uma questão de estilo. O que mostra que, para uma fatia indeterminada da sociedade, ele é persuasivo e ecoa um ideal de homem político.

Deste motivo maior, e da ausência de um motivo político bem definido, há algo que se pode deduzir sem grande risco de incorrer em erro. Muita gente está resignada ao seu actual modo de viver, sem imaginação para pensar algo diferente. Nem sempre foi assim. Nuno Gonçalo Poças lembrou excelentemente, aqui no Observador, que noutros tempos houve vontade de acreditar na possibilidade de uma alternativa, como com a Aliança Democrática, em 1979. Hoje essa vontade é extremamente ténue. No essencial, as pessoas parecem estar conformadas com a mediocridade reinante e agarram-se ao que vai flutuando à superfície de um declínio ao qual se parecem ter habituado.

Uma atitude deste tipo exclui à partida a possibilidade da conflitualidade política. Ou, pelo menos, redu-la à dimensão de um antagonismo de personalidades, sem qualquer divergência substantiva em matéria propriamente política. Ora, por mais que nos tentem convencer do contrário os apóstolos do consenso e da harmonia social, isto não pode ser uma coisa boa. O conflito político é a essência da liberdade e uma sociedade que se pretende sem conflito é, por definição, uma sociedade pouco livre. Mais. O conflito está na sociedade, quer se queira quer não. O que acontece é que ele pode, em certos casos, perder os bons modos e deslocar-se do centro da vida política, que devia ser o seu lugar nas democracias liberais, para a periferia, sob a forma dos populismos de esquerda e de direita. Para algum lado ele teria de ir.

Mas estas duas questões – a dimensão conflitual da vida política e a natureza do populismo – são matéria suficientemente complexa para me abster neste artigo de ir mais longe. Tanto mais que me caíram nas mãos dois excelentes livros que lidam com estes assuntos e dos quais tenciono falar para a semana. Uma coisa, no entanto, devo acrescentar: uma sociedade destinada a escolher entre António Costa e Rui Rio é uma sociedade que vai por muito maus caminhos. Não por causa de nenhum deles em particular – não nego nem a habilidade nem a seriedade –, mas por causa de nenhum deles representar nada de substancialmente diferente do outro. Politicamente, entenda-se.

RUI RIO   POLÍTICA   DEMOCRACIA   SOCIEDADE  ELEIÇÕES LEGISLATIVAS

COMENTÁRIOS:

josé maria: Ó Paulo Tunhas, António Costa vai ganhar outra vez e com apoio maioritário dos taxistas, pode crer...            Joaquim Moreira: De facto, ao que julgo saber, não se trata apenas de uma "Questão de estilos", mas da forma de entender que tipo de política fazer! E se dois taxistas o estão a dizer, só prova que Rui Rio tem muita razão na sua forma de a entender. Mas, antes de implementar uma política de centro, de esquerda ou de direita, precisa dos votos que ao PS foram ter. Estou a ver que o Paulo Tunhas, como eremita, que diz ser, tem andado mui distraído com o que está a acontecer. Mas já falta muito pouco para ver! No entanto aproveito para lhe dizer que a CS distorce com muita frequência, o seu pensamento e a sua coerência. Por isso até aproveito para apelar à sua paciência, e ir ver o último tweet na conta de Rui Rio, para perceber, mais do que o seu estilo, o seu feitio! Ao demonstrar uma falsidade de um programa – Polígrafo - que é suposto dizer só a verdade! Sobre o tema dos professores, e a forma como mentem certos senhores!           Pobre Portugal: Ressabiado como sempre! Ainda não digeriu a derrota do Rangel. Só alguém de muita má fé é que diz que Rui Rio é igual ao António Costa.              Jorge Tavares > Pobre Portugal: Bem, os dois são diferentes em alguma coisa. Por exemplo, Rui Rio fala em apoiar as empresas, sem que isso queira necessariamente significar o dar subsídios às empresas "escolhidas". Todos os "apoios" de que António Costa fala, são compadrio (crony capitalism). Francisco Tavares de Almeida: Excelente artigo, como habitualmente. Se tenho alguma crítica é à inveja que me provocou ao informar que ia almoçar à Cozinha da Amélia. Não era preciso.          advoga diabo: Se com "perder os bons modos" PT quis dizer ter uma atitude reaccionária , sistematicamente contra o largamente maioritário, em nome de uma ideologia nefasta, então precisa olhar-se ao espelho!           Maria Augusta > advoga diabo: Não tens espelhos em casa, camarada! Vou ali e já volto. Se é apenas uma questão de estilos, então é uma questão de estilos “arquitectada” e não natural. Fosse natural, teria ocorrido também nos tempos do governo de Passos Coelho. O envenenamento também é assim, arquitectado, quando o indivíduo se dá por doente, já está de pés para a cova.         José Tomás: Não são só os taxistas a pensar isso. A fidelíssima Antena 1 começou os noticiários de hoje com o anúncio de que a "ministra da Saúde já preparou contratos com o sector privado para reforçar a rede hospitalar com mais de 400 camas" - ou seja, debandou, à bruta, da ala esquerda (de rogar pragas aos privados) para o centro - que é onde o PS já percebeu que pode perder a batalha. Amanhã deve anunciar que quando fica tensa já não se acalma a ouvir o hino da CGTP, mas "Uma Casa Portuguesa"!           Andrade QB > José Tomás: Nisso são mestres. A notícia de hoje à noite é a de apoio ao "terceiro sector". Rio vai ter que ir buscar muito voto à esquerda para compensar os que o PS vai buscar ao centro.  De lamentar é que os jornalistas tão acutilantes com tanta coisa, nisto finjam não ver.          bento guerra: Costa protege do vírus, arranja empréstimos lá fora e até "salvou" a TAP como nosso encargo e tem o patrocínio de s. excelência de Belém. Acham que o nortenho Rio tem pedalada para lhe ganhar?             Américo Silva: Mais de 80% dos portugueses votaram socialista nas últimas eleições legislativas, e muitos querem uma alternativa socialista ao partido socialista. O problema é que o PSD é um saco de gatos onde Rui Rio está longe de uma maioria de 51% que possa conferir estabilidade. Este é o drama.               Manuel Cabral > Américo Silva: A forma de escrita que usou leva ao erro. Na realidade, o PS teve menos de 2 milhões de votos, ou seja, menos de 40% de metade dos votantes, quando os eleitores, incluídos os emigrantes, são mais de 10 milhões! Dito de outro modo, mais de 80% dos portugueses registados  NÃO VOTARAM NO PS!             Américo Silva > Manuel Cabral: Cumprimentos. O que diz está certo, como também o que eu disse está. Os partidos socialistas BE+PCP+PS+PSD e Livre, tiveram 81% dos votos. Festas felizes.             Manuel Cabral > Américo Silva: PSD?! Os partidos da «frente de esquerda» tiveram em 2019 no máximo 57,5%  dos votantes, (PS+BE+PCP+PAN+LIVRE), ou seja. de 30% dos eleitores registados. Se não, confira SFF: https://www.eleicoes.mai.gov.pt/legislativas2019/    Manuel Cabral > Américo Silva: O que eu quero significar é que metade dos Portugueses não votaram: abstiveram-se. Este último facto é uma confirmação possível da hipótese levantada pelo Paulo Tunhas!          Américo Silva > Manuel Cabral: Está correto, mas Rui Rio não se cansa de dizer que o PSD é socialista, embora não faça parte da frente de esquerda. Se o regime fosse presidencialista era fácil substituir um governo socialista por outro governo socialista completamente distinto. Assim é muito difícil, há deputados do PSD socialistas, outros liberais, outros conservadores.             Elvis Wayne > Américo Silva: Têm de facto razão. Apenas uma minoria da população se deslocou para ir votar e essa minoria votou pela manutenção do tacho. Cumprimentos e Boas Festas!            Américo Silva > Elvis Wayne: Obrigado. Para si e para todos os seus, festas felizes. FernandoC: Gostei de o ler, uma vez mais. Feliz natal.           Carlos Quartel: Uma abordagem muito interessante e muito profunda da sociedade portuguesa. Esse cómodo convívio com a mediocridade, com o "poucochinho, mas certinho" é uma das nossas características. E isto não é uma afirmação vazia, há sinais concretos de que estamos bem servidos, no que a espírito de rebanho diz respeito. Veja-se a naturalidade com que as pessoas vão vacinar-se, com que usam máscara mesmo quando não obrigatório (milhares usam-na na rua no campo e mesmo no carro, indo sós) a total ausência de greves (excepto as ordenadas pela Inter) e dolce paz com que são encaradas as mais baixas manobras, aceitando que Costa governasse perdendo eleições, etc. Mais sinais podem ser encontrados em casais de 20 anos, cuja primeira preocupação é comprar casa e ficar 40 anos a pagá-la, havendo mesmo muita gente que já comprou campa no cemitério da terra. Gente semi-morta, sem atrevimento, sem espírito de aventura, nada, a sua vida está já programada. Teremos viver com eles...........               Elvis Wayne > Carlos Quartel: A esquerda cospe no prato do Estado Novo, mas utiliza da censura, do controlo dos media, criou uma moderna versão da disciplina de "religião e moral", promove ou mantêm restos do corporativismo e claro, beneficia e cultiva a mesma mentalidade submissa e de rebanho que permitiu ao Professor Salazar manter-se no poder durante 40 anos e sempre sem grandes esforços ou purgas. O PS e demais apêndices constituem a versão matarruana e inculta da União Nacional, sendo a única diferença que (por enquanto) ninguém se mantêm durante demasiado tempo à frente da máquina súcialista.         Cisca Impllit: Um partido que já não serve um país,  acalma momentaneamente  a consciência dos eleitores. Como sempre, um artigo muito bem escrito com espessura humana.         Manuel Martins: Não será esse sentimento de resignação e ausência de conflito , uma avaliação de que até estamos bem, comparando com muitos outros países? De que a política pouco influencia a vida de cada um, e que a mesma resulta sim das boas ou más decisões que se tomou, ou do empenho ou falta dele? Sempre tive a percepção que o país real é bem diferente do pais das estatísticas oficiais,  da comunicação social,  e do que nos dizem os políticos. A maioria do povo não quer, neste mundo instável e perigoso,  revoluções,  experimentalismos ou mudanças radicais.           Henrique Mota: A aceitação da mediocridade em que se encontra a sociedade portuguesa, não deve ser alheia ao acelerado envelhecimento da população - 180 seniores por cada 100 jovens , ao contrário do que acontecia na segunda metade do século passado. Com a idade tornamo-nos com menos vontade de mudar, aceitando o” status quo” , ainda que este seja mau.            Carlos Quartel > Henrique Mota: Infelizmente essa não é  essa a razão. Não esqueça a paz e tranquilidade do salazarismo, quase 50 anos de ditadura, sem manifestações de desagrado significativas, Salvo uns arrufos do PC, nunca se passava nada e, sem a questão colonial, eventualmente ainda cá estávamos cantando e rindo, com pão e vinho sobre a mesa.

 

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