segunda-feira, 30 de maio de 2022

O que salva a democracia


É o respeito pelos velhos valores morais registados nos livros, tanto de reflexões ou pensamentos clássicos, como nas obras poéticas ou romanescas que constituem exemplos de participações sociais, que ajudam à formação e reflexão humana, desde que venham preservados nas famílias…. É claro que todas essas assembleias são importantes nas orientações a tomar, mas já passámos por tudo isso, e chegámos a isto: a facilidade de matar, segundo o valor do mais forte – nas armas e na falta de escrúpulos. A educação conta para alguma coisa? Tudo parece tão frágil! E tão teórico …

As assembleias de cidadãos podem salvar a democracia? – Parte II

A reflexão política deliberativa deve ser um compromisso entre vários mundos e ser representativa da sociedade atual e não de uma sociedade futura e imaginada sob pena da alienação política se agravar

PATRÍCIA FERNANDES , Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 30/5/22

No domínio das teorias da democracia, a reflexão inicial parte sempre da democracia liberal: foi este o modelo que consagrou o espírito contratualista da soberania popular e os princípios liberais de limitação do poder político, direitos individuais e estado de direito. O seu elemento central é o conceito de representaçãoé a representação que o torna moderno, por oposição aos modelos antigos de democracia directa. Isto significa que quase todas as teorias que se apresentam como correctivas ou alternativas da democracia liberal têm o mecanismo de representação como alvo.

Como vimos, as teorias de democracia deliberativa procuram corrigir e ampliar o conceito de representação alargando o processo deliberativo às pessoas comuns (i.e., retirando-o do espaço exclusivo das elites políticas). Já as teorias de democracia participativa, por regra mais radicais, pretendem substituir o mecanismo de representação por uma participação directa e não mediada no poder por parte dos cidadãos. Neste sentido, as duas teorias não se confundem e devemos, por isso, clarificar os seus limites.

As propostas de democracia participativa apelam, por regra, a uma participação imediata dos cidadãos, acreditando que um igual exercício do poder é a única forma de verdadeira democracia. O processo de deliberação que conduz à formação da vontade política não é central para estas teorias: em sociedades informadas e emancipadas, os cidadãos sabem formar as suas posições e o objetivo das estruturas de participação é simplesmente garantir que a expressão dessa vontade é feita de forma livre e igual.

As teorias deliberativas assentam num pressuposto diferente: centrando-se no processo de deliberação no seu duplo sentido – discussão e decisão –, estas teorias não consideram que a resposta já se encontra tomada, mas antes que os cidadãos devem ser livres de participar de forma igual no processo deliberativo que conduz à decisão final. As assembleias de cidadãos não constituem, então, fóruns de expressão de vontade, mas momentos de aprendizagem, questionamento e discussão de uma determinada medida (e é por essa razão que não devem ser televisionadas).

Antes, porém, de regressarmos à avaliação das iniciativas recentemente promovidas, importa fazer notar que a democracia deliberativa não se confunde com aquele mecanismo: as teorias deliberativas cobrem um variado leque de reflexões e interpretações e as assembleias são apenas um dos mecanismos desenvolvidos. Em Portugal, João de Almeida Santos chama a atenção para esse aspecto, em “A política deliberativa: afinal, o que é?”, quando elogia a possibilidade aberta pela internet de multiplicação de espaços de deliberação:

“A rede iniciou um poderoso processo de desintermediação da política e da comunicação, devolvendo soberania à cidadania, dotando-a de instrumentos capazes de promover auto-organização e automobilização política e comunicacional, reforçando fortemente o espaço público deliberativo e substituindo a velha mass communication por uma mass self-communication que vê emergir o indivíduo singular com maior protagonismo e capacidade de autónoma intervenção no espaço público deliberativo.”

Encontramos este tipo de democracia deliberativa na plataforma digital disponibilizada pela Conferência sobre o Futuro da Europa, em que os cidadãos foram chamados para participar na discussão como parte do processo deliberativo.

Já as assembleias de cidadãos constituem uma modalidade de democracia deliberativa diferente: aqui pretende-se criar um fórum de deliberação que não é constituído por representantes que apresentam ideias ou agendas políticas pré-determinadas (nomeadamente, por partidos políticos), mas por pessoas comuns que deverão deliberar (examinar, discutir e formar uma decisão) sobre um determinado assunto. Importa notar que elas não são representantes, recuperando-se, portanto, o espírito da democracia directa dos antigos: a sua participação funciona, antes, como uma espécie de experiência mental que legitima o processo político.

Na Europa, o melhor exemplo deste mecanismo pode ser encontrado na República da Irlanda: uma das estratégias do seu plano de Open Government é, precisamente, o Ireland’s Citizens’ Assembly. A decisão mais emblemática tomada com recurso a este mecanismo deliberativo prende-se com a alteração da oitava emenda da constituição, que possibilitou a aprovação da lei de 2018 sobre a interrupção voluntária da gravidez: o processo foi iniciado com uma decisão da assembleia de cidadãos e depois sujeita a referendo, ao invés de se deixar a decisão unicamente aos actores políticos tradicionais.

Para que as assembleias de cidadãos possam cumprir o objectivo de superar a crise de representação das democracias liberais é fundamental que a sua composição cumpra dois elementos fundamentais: deve resultar de um sorteio de todos os cidadãos e ser representativa dessa comunidade. Estes dois elementos são necessários para garantir uma decisão que os cidadãos reconheçam como sua e não como resultado das elites políticas.

Ora, nas duas assembleias de cidadãos recentemente promovidas estes requisitos não se encontram cumpridos – o que não só retira validade à experiência, como fragiliza a própria teoria deliberativa, que passa a ser vista com desconfiança pelos eleitores. Ao contrário de servirem a renovação democrática, as duas iniciativas fragilizaram a confiança que estes mecanismos deveriam gerar. Vejamos melhor por que razão.

O Conselho de Cidadãos de Lisboa

Embora o Conselho de Cidadãos de Lisboa se apresente como inovador, esta iniciativa sofre de um pecado capital: a composição da assembleia foi sorteada a partir de uma inscrição prévia. Ou seja: numa primeira fase, o projecto recebeu a inscrição de interessados em participar no Conselho e, numa segunda fase, o sorteio foi realizado a partir dessas inscrições. Por que razão é isto um pecado capital?

O objectivo das assembleias deliberativas é satisfazer um princípio de igualdade política que não parece respeitado nas democracias representativas: é suposto os representantes serem a nossa voz no processo de decisão, mas as decisões parecem desfasadas das nossas preocupações, necessidades e interesses. O resultado é um defraudar das expectativas democráticas e também uma desigualdade no acesso ao processo de decisão. O mecanismo do sorteio nas assembleias de cidadãos visa, precisamente, colmatar esta falha: ao oferecer a possibilidade de qualquer um de nós ser escolhido para participar, garante-se esse princípio de igualdade. O facto de serem aquelas pessoas a participar, e não nós, não resultaria de um mau funcionamento do sistema (que cederia a interesses partidários e económicos), mas à mera sorte, que nos poderá calhar da próxima vez.

Ao ter optado pela inscrição prévia, este projeto destruiu as garantias oferecidas pelo sorteio e alienou a maioria da população, que, desconhecendo o sorteio, verá com desconfiança o facto de alguns terem tido acesso a informação privilegiada – o que põe em causa a expectativa de igualdade que o mecanismo propõe assegurar.

Mas há uma segunda razão para considerar a inscrição prévia uma péssima ideia: as assembleias deliberativas devem ser representativas da comunidade e devem permitir o envolvimento político dos cidadãos, que, na sua maioria, se sentem afastados da política. No entanto, a estratégia de inscrição não garante essa representatividade nem esse envolvimento, na medida em que permite que a iniciativa seja capturada por grupos activistas. Basta que os elementos destes grupos se inscrevam em largo número para que fiquem sobre representados na assembleia de cidadãos. Note-se que não há nada de errado com a existência de grupos activistas, que devem ter lugar numa sociedade pluralista. Mas o objectivo de uma assembleia deliberativa não é dar espaço a grupos já envolvidos politicamente – visa, antes, permitir que os cidadãos comuns se possam envolver politicamente. Se as assembleias não acautelarem esta possível captura, é o próprio funcionamento do mecanismo que fica posto em causa: as decisões que resultarem dessas assembleias não serão representativas da comunidade, mas representativas dos interesses avançados por esses grupos.

E, na verdade, as decisões que resultaram do Painel de Cidadãos de Lisboa parecem refletir precisamente este processo de captura. A consequência é a própria fragilização do processo deliberativo e um aumento da desconfiança face ao sistema. O processo de inscrição deve ser eliminado nas próximas sessões, sob pena de o executivo de Carlos Moedas agravar a crise democrática ao invés de a corrigir.

O Painel de Cidadãos Europeus

De acordo com a iniciativa organizada no âmbito da Conferência sobre o Futuro da Europa, os Painéis de Cidadãos Europeus respeitariam as seguintes condições:

composição por 200 cidadãos europeus escolhidos por seleção aleatória nos 27 Estados-Membros;

reflexo da diversidade da UE em termos de origem geográfica (nacionalidade e origem urbana/rural), género, idade, contexto socioeconómico e nível de instrução;

inclusão de, pelo menos, uma cidadã e um cidadão por Estado-Membro;

composição de um terço por jovens (com idades entre os 16 e os 25 anos).

Os três primeiros requisitos cumprem o espírito das assembleias deliberativas: o sorteio foi feito a partir da totalidade dos cidadãos europeus de forma aleatória, reflectindo a diversidade da UE e a representatividade por estado. Mas a última condição merece reflexão: por que razão deverão os cidadãos entre 16 e 25 anos representar um terço de cada painel?

Importa considerar que os jovens entre os 16 e os 25 anos correspondem, no território da UE, a aproximadamente 11% da população total, mas nos Painéis de Cidadãos Europeus a sua representatividade foi elevada para 33%.

A justificação parece ser simples: se a reflexão é sobre o futuro da UE, seria natural que os jovens tivessem uma primazia nessa reflexão. No entanto, se recusarmos esse facilitismo argumentativo, podemos notar o prejuízo desta opção.

Mais uma vez: as assembleias de cidadãos visam superar o distanciamento e a fragilização democrática que resulta das democracias representativas, integrando no processo de decisão uma opinião representativa da população. Mas de que forma é que quase triplicar a representatividade de uma parte da população garante a representatividade? Elas serão, antes, deturpadas por essa sobrevalorização de uma parte da população, tornando-se, por isso, menos representativas – o que cancela o efeito pretendido pelo mecanismo deliberativo.

Essa perturbação é particularmente relevante num momento em que a sociedade europeia apresenta divisões sociais e políticas crescentes, marcadas por termos morais e identitários com forte base geracional. Assim, privilegiar um grupo etário sobre os restantes só reforçará essas tensões sociais. Por outro lado, estamos a desprezar a grande maioria da população, que lida hoje com problemas muito concretos decorrentes da sua idade: dificuldade em lidar com a transição digital, baixa remuneração salarial para menores qualificações e desafios que resultam do envelhecimento e perda de autonomia.

Como muitas vezes acontece, as iniciativas da UE revelam-se contraditórias: por um lado, há projectos dedicados ao problema do envelhecimento da sociedade e, simultaneamente, desvaloriza-se a proporção de pessoas que estão directamente implicadas nesse problema e que sofrem ou sofrerão a curto prazo as suas consequências.

Esta decisão de primazia etária resulta muito do Zeitgeist: se a modernidade se caracteriza pela imposição de uma lógica de tempo linear (ao contrário da visão circular dos antigos), os tempos de pós-modernidade têm imposto a ditadura do progresso e do futuro, sobrevalorizando a novidade e a juventude em detrimento da experiência e da velhice. Se a sabedoria acumulada com os anos já constituiu o valor político por excelência, hoje ela parece desvalorizada. Mas que sabedoria e experiência de vida podem trazer os jovens entre os 16 e os 25 anos? Na verdade, e como diz Lívia Franco a partir de Tocqueville, “a falta de experiência política aumenta a fé nas possibilidades das teorias abstratas fazendo aumentar o fosso entre os problemas reais e as soluções políticas propostas.”

A reflexão política deliberativa deve antes ser um compromisso entre os vários mundos e, sobretudo, ser representativa da sociedade actual e não de uma sociedade futura e imaginada, sob pena de a alienação política e o descrédito democrático presentes se agravarem. Se desvalorizarmos o presente e a experiência passada, não haverá futuro para uma UE que tanto reflectiu sobre ele.

PS: Recordando que o cerne da democracia deliberativa é garantir que deliberamos em conjunto com pessoas que pensam de modo diferente, vale muito a pena ler uma das crónicas desta semana de Miguel Esteves Cardoso.

Professora da Universidade da Beira Interior

POLÍTICA  DEMOCRACIA  SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

José Dias: Cara Sofia Dias, seria uma dissertação para ficar bem vista junto de quem refere se não viesse, e correctamente na minha opinião, apontar os truques que fazem com que tais órgãos de recolha do pensar e sentir das comunidades sejam constituídos de forma a distorcer tais propósitos ... sugiro que volte a ler com mais atenção e volte a dar a sua opinião. E não tenha vergonha de admitir que fez uma má interpretação!

Sofia Dias: Isto é uma dissertação para entrar no Livre ou no Bloco de Esquerda? Falta de vergonha

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