É o respeito pelos velhos valores morais
registados nos livros, tanto de reflexões ou pensamentos clássicos, como nas
obras poéticas ou romanescas que constituem exemplos de participações sociais,
que ajudam à formação e reflexão humana, desde que venham preservados nas
famílias…. É claro que todas essas assembleias são importantes nas orientações
a tomar, mas já passámos por tudo isso, e chegámos a isto: a facilidade de
matar, segundo o valor do mais forte – nas armas e na falta de escrúpulos. A educação
conta para alguma coisa? Tudo parece tão frágil! E tão teórico …
As assembleias de cidadãos podem salvar a democracia?
– Parte II
A reflexão política deliberativa deve
ser um compromisso entre vários mundos e ser representativa da sociedade atual
e não de uma sociedade futura e imaginada sob pena da alienação política se
agravar
PATRÍCIA
FERNANDES , Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade
do Minho
No
domínio das teorias da democracia, a reflexão inicial parte sempre da
democracia liberal: foi este o
modelo que consagrou o espírito contratualista da soberania popular e os
princípios liberais de limitação do poder político, direitos individuais e estado
de direito. O seu elemento
central é o conceito
de representação – é a
representação que o torna moderno, por oposição aos modelos antigos de
democracia directa. Isto
significa que quase todas as teorias que se apresentam como correctivas ou
alternativas da democracia liberal têm o mecanismo de representação como alvo.
Como vimos,
as teorias de
democracia deliberativa procuram
corrigir e ampliar o conceito de representação alargando o processo deliberativo
às pessoas comuns (i.e., retirando-o do espaço exclusivo das elites
políticas). Já as teorias de democracia participativa, por regra mais radicais, pretendem substituir o
mecanismo de representação por uma participação directa e não mediada no poder
por parte dos cidadãos. Neste sentido, as duas teorias não se confundem e
devemos, por isso, clarificar os seus limites.
As
propostas de democracia participativa apelam, por regra, a uma participação imediata dos
cidadãos, acreditando que um igual exercício do poder é a única forma de
verdadeira democracia. O
processo de deliberação que conduz à formação da vontade política não é central
para estas teorias: em sociedades informadas e emancipadas, os cidadãos sabem
formar as suas posições e o objetivo das estruturas de participação é
simplesmente garantir que a expressão dessa vontade é feita de forma livre e
igual.
As
teorias deliberativas assentam
num pressuposto diferente: centrando-se no processo de deliberação no
seu duplo sentido – discussão e decisão –, estas teorias não consideram que a
resposta já se encontra tomada, mas antes que os cidadãos devem ser livres de
participar de forma igual no processo deliberativo que conduz à decisão final.
As assembleias de cidadãos não constituem, então, fóruns de
expressão de vontade, mas momentos de aprendizagem,
questionamento e discussão de uma determinada medida (e é por essa razão que não devem ser televisionadas).
Antes,
porém, de regressarmos à avaliação das iniciativas recentemente promovidas,
importa fazer notar que a democracia deliberativa não se confunde com aquele
mecanismo: as teorias deliberativas cobrem um variado leque de reflexões e
interpretações e as assembleias são apenas um dos mecanismos desenvolvidos. Em
Portugal, João de
Almeida Santos chama a
atenção para esse aspecto, em “A política deliberativa: afinal, o que é?”, quando elogia a possibilidade aberta pela
internet de multiplicação de espaços de deliberação:
“A
rede iniciou um poderoso processo de desintermediação da política e da
comunicação, devolvendo soberania à cidadania, dotando-a de instrumentos
capazes de promover auto-organização e automobilização política e
comunicacional, reforçando fortemente o espaço público deliberativo e
substituindo a velha mass communication por uma mass self-communication que
vê emergir o indivíduo singular com maior protagonismo e capacidade de
autónoma intervenção no espaço público deliberativo.”
Encontramos
este tipo de democracia deliberativa na plataforma digital disponibilizada pela
Conferência sobre o Futuro da Europa, em que os cidadãos foram chamados para
participar na discussão como parte do processo deliberativo.
Já
as assembleias de cidadãos constituem uma modalidade de democracia deliberativa
diferente: aqui pretende-se criar um fórum de deliberação que não é constituído
por representantes que apresentam ideias ou agendas políticas pré-determinadas
(nomeadamente, por partidos políticos), mas por pessoas comuns que deverão
deliberar (examinar, discutir e formar uma decisão) sobre um determinado
assunto. Importa notar que elas não são representantes, recuperando-se,
portanto, o espírito da democracia directa dos antigos: a sua participação
funciona, antes, como uma espécie de experiência mental que legitima o processo
político.
Na
Europa, o melhor exemplo deste mecanismo pode ser encontrado na República da
Irlanda: uma das
estratégias do seu plano de Open Government é, precisamente, o Ireland’s Citizens’ Assembly. A decisão mais emblemática tomada com recurso a este
mecanismo deliberativo prende-se com a alteração da oitava emenda da
constituição, que possibilitou a aprovação da lei de 2018 sobre a interrupção
voluntária da gravidez: o processo foi iniciado com uma decisão da assembleia
de cidadãos e depois sujeita a referendo, ao invés de se deixar a decisão
unicamente aos actores políticos tradicionais.
Para
que as assembleias de cidadãos possam cumprir o objectivo de superar a crise de
representação das democracias liberais é fundamental que a sua composição
cumpra dois elementos fundamentais: deve resultar de um sorteio de todos os
cidadãos e ser representativa dessa comunidade. Estes
dois elementos são necessários para garantir uma decisão que os cidadãos
reconheçam como sua e não como resultado das elites políticas.
Ora,
nas duas assembleias de cidadãos recentemente promovidas estes requisitos não
se encontram cumpridos – o que não
só retira validade à experiência, como fragiliza a própria teoria deliberativa,
que passa a ser vista com desconfiança pelos eleitores. Ao contrário de
servirem a renovação democrática, as duas iniciativas fragilizaram a confiança
que estes mecanismos deveriam gerar. Vejamos melhor por que razão.
O Conselho de
Cidadãos de Lisboa
Embora o Conselho de Cidadãos de Lisboa
se apresente como inovador, esta iniciativa sofre de um pecado capital: a composição
da assembleia foi sorteada a partir de uma inscrição prévia. Ou seja: numa
primeira fase, o projecto recebeu a inscrição de interessados em participar no
Conselho e, numa segunda fase, o sorteio foi realizado a partir dessas
inscrições. Por que razão é isto um pecado capital?
O
objectivo das assembleias deliberativas é satisfazer um princípio de igualdade
política que não parece respeitado nas democracias representativas: é suposto
os representantes serem a nossa voz no processo de decisão, mas as decisões
parecem desfasadas das nossas preocupações, necessidades e interesses. O
resultado é um defraudar das expectativas democráticas e também uma
desigualdade no acesso ao processo de decisão. O mecanismo do sorteio nas assembleias de cidadãos
visa, precisamente, colmatar esta falha: ao oferecer a possibilidade de
qualquer um de nós ser escolhido para participar, garante-se esse princípio de
igualdade. O facto de serem aquelas pessoas a participar, e não nós, não
resultaria de um mau funcionamento do sistema (que cederia a interesses
partidários e económicos), mas à mera sorte, que nos poderá calhar da próxima
vez.
Ao
ter optado pela inscrição prévia, este projeto destruiu as garantias oferecidas
pelo sorteio e alienou a maioria da população, que, desconhecendo o sorteio,
verá com desconfiança o facto de alguns terem tido acesso a informação
privilegiada – o que põe em causa a expectativa de igualdade que o mecanismo
propõe assegurar.
Mas há uma segunda razão para
considerar a inscrição prévia uma péssima ideia: as assembleias deliberativas devem ser
representativas da comunidade e devem permitir o envolvimento político dos
cidadãos, que, na sua maioria, se sentem afastados da política. No entanto,
a estratégia de inscrição não garante essa representatividade nem esse
envolvimento, na medida em que permite que a iniciativa seja capturada por
grupos activistas. Basta que os elementos destes grupos se inscrevam em
largo número para que fiquem sobre representados na assembleia de cidadãos.
Note-se que não há nada de errado com a existência de grupos activistas,
que devem ter lugar numa sociedade pluralista. Mas o objectivo de uma
assembleia deliberativa não é dar espaço a grupos já envolvidos politicamente –
visa, antes, permitir que os cidadãos comuns se possam envolver politicamente. Se as assembleias não acautelarem esta possível
captura, é o próprio funcionamento do mecanismo que fica posto em causa: as
decisões que resultarem dessas assembleias não serão representativas da
comunidade, mas representativas dos interesses avançados por esses grupos.
E, na verdade, as decisões que
resultaram do Painel de Cidadãos de Lisboa parecem refletir precisamente este
processo de captura. A consequência é a própria fragilização do processo
deliberativo e um aumento da desconfiança face ao sistema. O processo de
inscrição deve ser eliminado nas próximas sessões, sob pena de o executivo de
Carlos Moedas agravar a crise democrática ao invés de a corrigir.
O Painel de
Cidadãos Europeus
De
acordo com a iniciativa organizada no âmbito da Conferência sobre o Futuro da
Europa, os Painéis de Cidadãos Europeus respeitariam as seguintes
condições:
composição por 200 cidadãos europeus
escolhidos por seleção aleatória nos 27 Estados-Membros;
reflexo da diversidade da UE em termos de
origem geográfica (nacionalidade e origem urbana/rural), género, idade,
contexto socioeconómico e nível de instrução;
inclusão de, pelo menos, uma cidadã e um
cidadão por Estado-Membro;
composição de um terço por jovens (com
idades entre os 16 e os 25 anos).
Os
três primeiros requisitos cumprem o espírito das assembleias deliberativas: o
sorteio foi feito a partir da totalidade dos cidadãos europeus de forma
aleatória, reflectindo a diversidade da UE e a representatividade por estado.
Mas a última condição merece reflexão: por que razão deverão os cidadãos
entre 16 e 25 anos representar um terço de cada painel?
Importa
considerar que os jovens entre os 16 e os 25 anos correspondem, no território
da UE, a aproximadamente 11% da população
total, mas nos Painéis de Cidadãos Europeus a sua representatividade
foi elevada para 33%.
A
justificação parece ser simples: se a reflexão é sobre o futuro da UE, seria
natural que os jovens tivessem uma primazia nessa reflexão. No entanto, se
recusarmos esse facilitismo argumentativo, podemos notar o prejuízo desta
opção.
Mais
uma vez: as assembleias de cidadãos visam superar o
distanciamento e a fragilização democrática que resulta das democracias
representativas, integrando no processo de decisão uma opinião representativa
da população. Mas de que
forma é que quase triplicar a representatividade de uma parte da população
garante a representatividade? Elas serão, antes, deturpadas por essa
sobrevalorização de uma parte da população, tornando-se, por isso, menos
representativas – o que cancela o efeito pretendido pelo mecanismo deliberativo.
Essa
perturbação é particularmente relevante num momento em que a sociedade europeia
apresenta divisões sociais e políticas crescentes, marcadas por termos morais e
identitários com forte base geracional. Assim,
privilegiar um grupo etário sobre os restantes só reforçará essas tensões
sociais. Por outro lado, estamos a desprezar a grande maioria da população, que
lida hoje com problemas muito concretos decorrentes da sua idade: dificuldade
em lidar com a transição digital, baixa remuneração salarial para menores
qualificações e desafios que resultam do envelhecimento e perda de autonomia.
Como
muitas vezes acontece, as iniciativas da UE revelam-se contraditórias: por um lado, há projectos dedicados ao problema do
envelhecimento da sociedade e, simultaneamente, desvaloriza-se a proporção de
pessoas que estão directamente implicadas nesse problema e que sofrem ou
sofrerão a curto prazo as suas consequências.
Esta
decisão de primazia
etária resulta
muito do Zeitgeist: se a
modernidade se caracteriza pela imposição de uma lógica de tempo linear (ao
contrário da visão circular dos antigos), os tempos de pós-modernidade
têm imposto a ditadura do progresso e do futuro, sobrevalorizando a novidade e
a juventude em detrimento da experiência e da velhice. Se a sabedoria acumulada com os anos já constituiu o
valor político por excelência, hoje ela parece desvalorizada. Mas que sabedoria e experiência de vida podem trazer
os jovens entre os 16 e os 25 anos? Na verdade, e como diz Lívia Franco a partir
de Tocqueville, “a falta de experiência política aumenta a fé nas
possibilidades das teorias abstratas fazendo aumentar o fosso entre os
problemas reais e as soluções políticas propostas.”
A
reflexão política deliberativa deve antes ser um compromisso entre os vários
mundos e, sobretudo, ser representativa da sociedade actual e não de uma
sociedade futura e imaginada, sob pena de a alienação política e o descrédito
democrático presentes se agravarem. Se desvalorizarmos o presente e a
experiência passada, não haverá futuro para uma UE que tanto reflectiu sobre
ele.
PS:
Recordando que o cerne da democracia deliberativa é garantir que deliberamos em
conjunto com pessoas que pensam de modo diferente, vale muito a pena ler uma
das crónicas desta semana de Miguel Esteves Cardoso.
Professora da Universidade da Beira Interior
COMENTÁRIOS:
José Dias: Cara Sofia Dias, seria uma dissertação para ficar bem vista junto de quem
refere se não viesse, e correctamente na minha opinião, apontar os truques que
fazem com que tais órgãos de recolha do pensar e sentir das comunidades sejam
constituídos de forma a distorcer tais propósitos ... sugiro que volte a ler
com mais atenção e volte a dar a sua opinião. E não tenha vergonha de admitir
que fez uma má interpretação!
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