Sermos progressistas é o nosso lema. Jaime Nogueira Pinto expõe o
problema magistralmente, com a competência do seu muito saber e o critério da
sua muita decência. O seu sofrimento é por se ver frustrado nessa sua decência,
no seu muito saber. Mas tem muitos contrários, desses que Álvaro de Campos
descreve como
«Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar
da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o
Indefinido.»
Mas não transcrevi todos
esses contrários, deixei-os com as suas ambições “estreladas”, embora não do mesmo
calibre das de Álvaro de Campos…
Releiamos, antes, o
texto magistral, sob os dois ou mais aspectos citados, de JNP, e fiquemos gratos porque existe e é
nosso. Como o Álvaro de Campos também é…
Revogar o “irrevogável”
A nova regulação do aborto tem levado
o mundo progressista à histeria. É que além do abrir o precedente da revogar de
“conquistas”, a causa ainda une esquerdas antigas e modernas.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR,21 mai
2022, 00:1829
Depois do transvio do documento
preparatório da decisão sobre o aborto do Supremo Tribunal de Justiça dos
Estados Unidos, a esquerda americana entrou em histeria, ante a possível revogação
do “irrevogável”. Uma
histeria que entronca na histeria mais geral que começou em 2016, com a eleição
de Donald Trump, que escalou com o Black Lives Matter, que acalmou com a
eleição de Biden, mas que volta agora com o rascunho do texto que se propõe
alterar – ou “reverter” – a regulação sobre o aborto.
Duas medidas
Note-se
que, ao contrário do divulgado pela desinformação geral, e aqui decalcado pela
generalidade dos nossos obedientes media, a decisão do Supremo Tribunal
americano não proíbe o aborto. O que acontece é que, se a decisão for
aprovada, a regulação do aborto
passará a ser estadual e não federal,
havendo também um mandatório dos prazos máximos para a terminação voluntária da
gravidez. Pouco
importa. O aborto é um assunto tabu, transversal, por diferentes
razãos, às várias esquerdas, antigas e modernas. Talvez por isso as maniqueias
“forças do progresso”, antigas e modernas, não se cansem de apresentar o facto
como se de um escandaloso “retrocesso” se tratasse.
Estas “forças do progresso”, que
congregam as várias esquerdas, dividem-se em duas espécies, uma mais ociosa e
“civilizada”, outra mais activista e “rebelde”. A mais
ociosa e civilizada é uma elite esclarecida, a burguesia liberalizante mais ou
menos iluminada, chique e hedonista, tipo Macron, que se congratula com a
extinção da pena de morte na legislação europeia enquanto exige que se consagre
o “direito fundamental” de a impor aos nascituros. A mais activista e rebelde é a colorida turba que
sai à rua e que mistura militantes do Black Lives Matter, adeptos de Greta
Thunberg e velhas e velhos feministas, em manifestações de fúria, com cartazes
assassinos, pedindo o extermínio dos adversários e acorrendo às casas dos
juízes do Supremo Tribunal americano para os intimidar.
Todos
nos lembramos do ataque ao Capitólio por uma multidão de deploráveis, incentivados
pelo populista Trump. Desta vez, na marcha sobre o Supremo Tribunal, parece
que não eram deploráveis que marchavam, que não era sequer uma turba: era
uma multidão de “esclarecidos arautos do progresso e do direito à privacidade e
ao corpo”, alheia a quaisquer incentivos, oficiais ou outros. O senador Ted
Cruz, do Texas, que ainda tentou chamar a atenção para o possível paralelo,
criticando o silêncio cúmplice do presidente Biden em relação à crescente
anti-democraticidade dos “democratas”,
foi rapidamente descartado: tratava-se, evidentemente, de uma caluniosa falácia
conservadora, já que qualquer semelhança entre os deploráveis de
extrema-direita do ataque ao Capitólio e os activistas democráticos do ataque
ao Supremo Tribunal era pura coincidência.
Nada
que não seja já tradição numa Esquerda que, continuando a assumir-se como
detentora da verdade e da modernidade, aprendeu com os nazis e com os
comunistas que tem de começar por arvorar-se em raça superior ou em vanguarda
esclarecida e por desumanizar os adversários ideológicos (os “deploráveis”, os
“populistas”, os “retrógrados” os “ignorantes” os “inimigos da Humanidade”)
para os poder depois aniquilar em boa consciência em nome da Justiça, da
História e do Progresso. Quem
conheceu e viveu o movimento associativo na Lisboa e na Coimbra dos anos
sessenta sabe que era já esse o entendimento que a esquerda académica tinha das
liberdades e da Liberdade nas Faculdades, aplicando nos espaços que dominava as
mesmas regras e a mesma repressão de que acusava a Censura e a PIDE.
Estes
dois pesos e estas duas medidas continuam a ser aplicados pelos grandes media à
política em geral e à política americana em particular: se Hunter Biden, o filho do presidente norte-americano
que andou em negócios pela Ucrânia e pela China, com o pai Vice-Presidente a
cobri-lo, fosse filho de Donald Trump, ou se fosse Trump o protagonista das
inúmeras gafes, “senior moments” e índices de impopularidade de Biden, as
escandalosas ocorrências teriam mais cobertura do que a Covid 19 ou do que a
guerra na Ucrânia. Do mesmo
modo, se as evidências científicas comprovassem que não havia vida antes do
nascimento, a descoberta teria mais antena do que Aquecimento Global. Assim não
sendo, por cá e pelo mundo, é o silêncio.
Matéria de facto
Em Setembro de 2021, George Weigel
publicou em First Things um artigo intitulado “Catholic Beliefs and the
Abortion Debate”, em que estabelecia a diferença entre acreditar nos mistérios
da Religião e saber que a vida humana começava na concepção. Para Weigel, os católicos deviam acreditar que a
vida humana começava na concepção, não porque preservar a vida desde o começo
fosse – como também o era – um imperativo religioso e moral, mas porque assim o
demonstrava a Ciência. Tal como a Terra era redonda, Vénus era o segundo
planeta do Sistema Solar e o sangue circulava no corpo, também o facto de a
vida humana começar com um embrião com “um carácter genético identitário”,
constituindo “um exemplar único da espécie Homo Sapiens no primeiro grau do seu
desenvolvimento natural”, não era matéria de fé, era matéria de facto, de facto
científico. Porém, Weigel lembrava que os movimentos pró-aborto continuavam a
tentar ignorar ou a dissimular esse facto, transformando-o numa crença
religiosa – logo,
sectária; logo, não-científica; logo, produto de uma visão reaccionária,
medieval, passadista, a cheirar “a mofo e a sacristia”.
Ironicamente, são os factos e o mofo de
uma visão presa a um velho paradigma, uma visão passadista sobre uma vida
outrora invisível e, logo, mais facilmente descartável, que agora se abafam. E
o que agora se esconde, à sombra de uma velha luta feminista, é o profundo
machismo, em infeliz associação com o moderno hedonismo, que continua a
determinar a promoção da solução rápida do aborto em prejuízo de mais
trabalhosas e onerosas políticas sociais e de saúde numa ética de
co-responsabilização. Assim, exalta-se e penaliza-se exclusivamente a mulher pelo
começo ou pelo fim de uma vida –
como se uma coisa ou outra fossem da sua inteira e exclusiva responsabilidade e
não tivessem implicações físicas, psicológicas e económicas, nem houvesse
co-responsabilidades parentais e sociais.
Velhas e novas utopias
A Utopia, no sentido ambíguo que lhe
imprimiu o próprio Morus de sociedade perfeita localizada “em lugar nenhum”,
sempre existiu no pensamento ocidental. E
tem uma raiz bíblica no paraíso terrestre e nas palavras do Sermão da Montanha;
palavras que, laicizadas e transportadas para contextos menos metafóricos e
virtuosos e mais voluntariosos continuam
a trazer o selo e o encanto da virtude a muitos pregadores revolucionários.
Esquece-se,
no entanto, que uma das características desse mesmo pensamento do Ocidente – Thomas Morus é o santo padroeiro dos políticos – é procurar o ideal mas reconhecer que, no mundo do
possível, ficamos e ficaremos sempre aquém desse ideal. E tanto mais
irremediavelmente aquém quanto mais nos esquecermos da realidade da natureza
humana, ou de que, quase sempre, “Qui veut faire l’ange, fait la bête”, como
dizia Pascal.
O
problema das angélicas utopias – e a mais completa e real foi o
marxismo-leninismo – é que, seguindo Marx, os seus criadores ou executores
revolucionários, os filósofos operacionais que quiseram mudar a natureza das
coisas, não recuaram perante nada para cumprir voluntariosamente os seus
projectos de construção do melhor dos mundos: proibindo, perseguindo,
prendendo, fuzilando, enforcando, massacrando, durante todo o século XX, da
Rússia ao Cambodja, da China à Etiópia, dezenas de milhões de homens e mulheres
que viram como obstáculos. E para se
legitimarem e descartarem Deus, a realidade e o imponderável, fizeram equivaler
o seu sonho à Verdade Última, o seu método à Justiça Suprema e a sociedade
traçada a régua e esquadro e sangue ao Paraíso Terrestre.
Entretanto,
as coisas mudaram, e o que era o
bem social absoluto, a sociedade sem senhores nem escravos e sem ricos nem
pobres, é agora o bem individual absoluto, o indivíduo sem limitações físicas,
esculpido à imagem e semelhança da sua própria vontade, o Homo Deus de Harari,
senhor da vida e da morte. Fernando Pessoa, na pele de Bernardo Soares, anteviu bem o presente dessossego quando sugeriu que
do “moral” se passaria ao “estético”, e do “social” ao “individual.”
Num
tempo fértil em sonhos destes, pródigos em paraísos na terra, agora “estéticos
e individuais” mas igualmente totalitários, poucos se lembrarão, apesar da
História e apesar daquilo a que começamos a assistir, que este tipo de pensamento utópico quase sempre degenera
em distopia.
A expropriação da terra é agora a
expropriação do corpo, que não deve pertencer já ao Criador, que não deve já
sujeitar-se à tirania do sexo biológico, nem relacionar-se com que quer que
seja de sagrado ou até de natural, para que possa ser retraçado, mutilado,
eutanasiado, ou, se a Ciência e a conta bancária o permitirem, eternizado. Porém, tal como nas sociedades que ensaiaram o
“socialismo real”, o que poderia parecer liberdade individual, elevação das
vítimas da fome de dignidade e respeito, instauração das mais amplas
liberdades, esconde muitos calvários e assume rapidamente outros contornos. Sem
que ninguém obrigue ninguém, todos somos compulsivamente chamados a subsidiar
os novos projectos utópicos, a trabalhar para a nova utopia “estética e
individual”, a louvar os seus métodos e a hastear as suas bandeiras, sob pena
de sermos diagnosticados como seres patalógicos e confinados ao gueto dos
“fóbicos”, os antigos inimigos do povo.
Porque
é que a reversão de Roe v. Wade, ou a remissão de uma decisão que se queria
global para o domínio federal, causa tanta histeria, tanto choque? Talvez
porque, ao contrário do que acontece com outras causas fracturantes, como as
sexuais ou de género, na causa do aborto confluam dois paradigmas marxistas,
duas utopias de esquerda, uma velha e outra nova, uma marxista, outra
neo-marxista. Na causa
do aborto, o feminismo histórico e a memória de muitas lutas em prol das
mulheres vítimas do uso, do abuso e do abandono masculino ou impossibilitadas
de sair do círculo vicioso nascimento/procriação/morte, num tempo anterior à
generalização da contracepção e ao conhecimento da vida intra-uterina, conflui
com o moderno hedonismo da liberdade de acção sobre o próprio corpo e do
pretenso controlo sobre a vida e sobre a morte. É, assim, compreensível que, à
esquerda, seja generalizado o choque, também pelo que a ideia de “revogação” de
“irrevogáveis conquistas” pode representar para o profetismo progressivo das esquerdas,
habituadas a uma marcha linear da História.
A efectivar-se, a decisão do Supremo
Tribunal norte-americano será, para muitos, uma conquista da defesa da vida, da
vida dos mais frágeis e da nossa vida como sociedade e comunidade humana, mas,
para outros, não passará de um “recuo civilizacional”, de um retrocesso no
sentido da História, de um grave acidente na marcha para o melhor dos mundos.
Para
já, os opositores prometem não ter respeito por nada: nem pela de divisão dos
poderes, nem pelo Estado de Direito, nem pela verdade dos factos. E como
senhores da verdade, vão inquisitorialmente expurgar o mal, com os utópicos
olhos postos no novo ideal.
Preparemo-nos
para o pior.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO ABORTO SAÚDE
COMENTÁRIOS:
Pensamento Positivo: Caros: Contra o aborto, acho que somos todos, mesmo os
que o não assumem. Que não é o sermos contra que vai acabar com ele, acho que
também deveríamos estar todos de acordo. Que uma lei bem redigida como a nossa
para regular essas coisas sem criar grandes dramas na sociedade se impõe, isso
nem deveria ser questão, porque já não vivemos em tempos que vivem nem de
utopias idealistas nem de amanhãs que cantam... Dito isto; há nesta história
toda dos EUA uma coisa de que ainda não vi ninguém falar: Esta decisão, a vir,
será para revogar uma outra decisão de 1973 do mesmo SCOTUS. Ora: Então, e o
Congresso e os vários POTUS que já por lá passaram ainda não tiveram tempo para
legislar sobre a matéria?... Ah, e tal, sempre divididos? Hã?.. Da Grreite Rizete: Artigo magistral! Paulo Silva: Privacidade, um dos mais altos e nobres
valores burgueses ao qual as esquerdas se agarram das formas mais desprezíveis
possíveis... Gil
Lourenço: Muito
bom. Não esquecer que não é apenas a esquerda. Os da IL também estão com eles.
Na realidade eles já compraram a agenda toda da esquerda. A comunicação social
é uma lástima. Totalitária naquilo que quer veicular nem que seja com mentiras.
Ao menos resta-nos JNP.
André Silva: O bebé é gerado DENTRO mas não é “corpo da mulher”. Ou
então revejam as disciplinas de biologia e de anatomia. De permeio, revejam também todas as Leis
referentes à maternidade/paternidade, nomeadamente a questão da pensão de
alimentos: se a mulher quiser ou tiver tido um bebé mas sem o consentimento do
pai então deve ser ela e só ela a pagar as contas, mais ninguém e muito menos
todos nós pela Segurança Social, era só o que faltava. Se quiser fazer um
aborto, que o faça, mas sem ser pago pelo SNS, pois um bebé NÃO É uma doença. Também é de bom tom recordar que se uma
mulher não quiser engravidar pode simplesmente: não fazer sexo; só fazer sexo
anal, manual, oral; fazer sexo vaginal mas tomar a pílula e obrigar o parceiro
a usar preservativo; nada disso ou tudo isso e ainda tomar a pílula do dia
seguinte; etc. Significa isto que - excepto por violação ou se a mulher for
atrasadinha mental completa - é impossível uma mulher engravidar sem o querer
ou sem ter a consciência plena de que tal pode acontecer. Por isso o mais chocante é a total
ausência do princípio basilar e civilizacional da liberdade-consequências-responsabilidade
pelos actos e respectivas consequências. Ou então assuma-se PARA TODOS e não
apenas para as coitadinhas que cada um faz o que quer e que lhe apeteça sem
qualquer responsabilização individual. Finalmente, e apesar do atrás exposto, sou totalmente
favorável a que cada uma faça o que lhe der na real gana (desde que eu em
momento algum seja obrigado a contribuir financeiramente para tal), sendo que
até é pena não o terem feito mais vezes no passado, poupando o mundo civilizado
a tantas e tantas criaturas que nada acrescentam, muitas vezes pelo contrário.
Curiosamente, ou não, a esmagadora maioria delas é precisamente a favor do
aborto.
Ahmed Gany: Tenho que imprimir e ler isto com calma!
Jal Morgado: O aborto é a ação mais abominável que existe, porque
mata um ser humano, inocente, indefeso e com a cumplicidade da mãe, pai,
médicos, enfermeiras, políticos, Estado, etc. josé maria: Se o JNP tivesse uma filha que fosse
violada e engravidasse e quisesse abortar, qual seria a sua perspectiva?
Defenderia que ela levasse a gravidez até ao fim ?Se ela não quisesse cuidar do
bébé, o JNP fá-lo-ia ? Estas são questões fundamentais, a que o JNP conseguiria
responder? Desça à Terra e responda às questões concretas que a existência lhe
coloca, quando se afasta do abstraccionismo essencialista que assume de forma
comodista e efectivamente retrógada Manuel Fernandes > josé maria: Sr. Maria, quando é começa a pensar?
Porque limitar-se a repetir os chavões do esquerdismo depois de ler este artigo
é porque ou tem preguiça de usar os miolos ou então porque não os tem. Maria Rodriguesjosé maria: Poderia dar a criança a adoptar a um casal
sem filhos (muitos andam aí a fazer certos tratamentos .... de alto risco).
Madre Tereza de Calcutá propunha isto dizendo que numa situação destas era
preferível fazê-lo a optar pelo aborto. João Alves: JNP não tem razão quando equipara a
repressão e a censura exercidas pelo Estado Novo, via PIDE, com as que eram
postas em prática pela esquerdas marxistas no âmbito dos movimentos
associativos existentes nas Universidades de Lisboa e Coimbra nos anos sessenta.
Na realidade, a euforia censória e repressiva da PIDE ofuscava as tendências
censórias e repressivas latentes dessas esquerdas marxistas. E, embora
eufóricas, não eram tão eficazes quanto isso. No meio académico, se não
fôssemos activistas radicais, íamos sempre podendo dizer o que pensávamos e
comprar os livros que queríamos, nomeadamente na Livraria 111, sita no prédio
onde viveu Mário Soares.
Manuel Pestana: Muito obrigado JNP, por mais este excelente artigo Tiro Liro: Muito bom. Leio a frase final 'Preparemo-nos para o
pior.' com o sentido de 'Preparemo-nos para lutar pelo Valor da Vida'.
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