I -A guerra dói mas continua
Aquilo que Putin tem feito é pura
propaganda destinada a captar o apoio da massa da população russa, a qual
parece não ter saído até hoje do vazio ideológico deixado pela queda do regime
soviético.
OBSERVADOR, 25 mai 2022, 00:1510
A
guerra prossegue há três meses sem mais objectivos aparentes do que os do
primeiro dia: a «invasão» da Rússia e a «defesa» da Ucrânia. Esta última foi rapidamente apoiada à distância com
armas e dinheiro fornecidos pela NATO em nome da solidariedade mas sem esta ir,
contudo, ao ponto de levar a Ucrânia para a dita NATO, possivelmente com receio
que a Rússia cumprisse a ameaça da bomba nuclear, conforme anunciou desde o
primeiro minuto!
Pensasse ele o que pensasse após a
usurpação da Crimeia em 2014, Putin nunca chegou a formular quaisquer
objectivos precisos quando invadiu a Ucrânia em Fevereiro de 2022 nem declarou
os seus motivos e objectivos concretos. O ataque da Rússia tão pouco se revestiu até agora de
quaisquer valores ideológicos: nem direita nem esquerda; nem democracia nem
ditadura. A única
bandeira agitada é, de ambos os lados, o sentimento patriótico, seja lá o que
isso for concretamente. Na prática,
trata-se de a Rússia continuar a apropriar-se de territórios ucranianos a fim
de Putin mobilizar o ego russo enquanto a Ucrânia tenta impedir que isso
aconteça!
Com
efeito, não só a movimentação do exército russo se mostrou errática desde o
início, durante o qual Putin ainda teve o auxílio armado da Bielorússia, como
não foi além da destruição sistemática das cidades de Kiev e Cracóvia das quais
não logrou contudo apoderar-se assim como da grande maioria das inúmeras
localidades ucranianas alvejadas. Com excepção das zonas que a Rússia já
controlava, como a Crimeia e a costa marítima, bem como duas cidades
importantes, as tropas russas limitaram-se a bombardear até ao último prédio
dos centros urbanos da Ucrânia oriental no seguimento da intervenção política
russa de 2014 e da ocupação da Crimeia.
Em
suma, aquilo que Putin tem feito sustentado pelos «siloviki» é pura propaganda destinada a
captar o apoio da massa da população russa, a qual parece não ter saído até
hoje do vazio ideológico deixado pela queda do regime soviético e pela
emergência de um patriotismo tanto mais exacerbado quanto isolado e
insatisfeito, para não dizer derrotista…
Desde então, a sociedade russo não foi capaz de criar efectivas representações
partidárias!
O gigantesco desfile militar de Maio em
Moscovo, entremeado de bandeiras vermelhas com a foice e o martelo, ilustra bem
o carácter artificial da propaganda nacionalista do regime, assim como a
frustração patriótica dos cidadãos russos perante a riqueza comparativa do
«mundo ocidental», ao qual a Ucrânia e outros países do antigo império
soviético têm vindo a aderir, cerceando assim as aspirações imperiais de uma
efectiva elite… se é que existe.
Repito: não há aqui, como de resto
também não há na Ucrânia, por motivos sócio-culturais idênticos, qualquer
ideologia propriamente dita que vá além da língua e da religião natais… Quanto às classificações ideológicas que
actualmente florescem, como em
Portugal, onde os comentadores se deixam aprisionar pelos «slogans» de
«direita» e «esquerda», é sabido
há muito tempo que a grande maioria dos portugueses, quando revela a sua
«ideologia», o que já de si não é fácil, se classifica nos lugares centrais
entre as tais «esquerda» e «direita»… Pretender, pois, como uma comentadora do «Público», que tanto a Rússia como a
Ucrânia são de «direita», não acrescenta rigorosamente nada à guerra entre os
dois países, pelo contrário.
O
único factor em jogo nesta guerra é a desigual dimensão entre o atacante e a
vítima. Muito
mais importante do que as convicções ideológicas dos envolvidos é, obviamente,
a ressurreição da NATO (a OTAN da qual Portugal é membro desde a sua criação em
1949), a qual conferiu ao conflito uma dimensão internacional que só não se
consumou até agora com a derrota da Rússia devido à ameaça nuclear. Assim se
politizou à escala internacional mais uma dessas terríveis guerrilhas que têm
tido lugar fora da Europa!
Entre
o improvável resultado militar e o pouco entusiasmo do recente encontro
diplomático entre o presidente da Ucrânia, efectivo herói da resistência ao
«urso branco», e o primeiro-ministro português, confirmou-se na semana passada
que qualquer dos dois políticos presentes pouco ou nada tinham a dizer e muito
menos a dar um ao outro. Visivelmente, António Costa estava mais preocupado com
as baixas perspectivas dos próximos anos do que com a guerra mundial!
Enquanto
durar, a guerra é má para todos e, quando acabar, isso pouco ou nada
acrescentará à política de cada um, seja ela de «direita» ou de «esquerda»,
como se isso tivesse muito conteúdo e eficácia. Por que razão? Porque as
«ideologias» do começo do XXI estão completamente desgastadas e não passam de
«slogans» atirados à cabeça dos concorrentes a qualquer forma de poder cada vez
mais fugidio e cada vez mais parecido com os seus competidores. A guerra em
curso continuará a ser muito penosa mas não creio que mude o futuro: não tem,
pois, razão de ser.
GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO
II - Está a Ucrânia entregue a si própria?
O confronto de países mais ou menos
demo-liberais, como aqueles que constituem a NATO, com ditaduras como a Rússia,
não se resolverá tão cedo nem provavelmente a bem.
MANUEL VILLAVERDE CABRAL
OBSERVADOR,22
mar 2022, 00:1613
Por
esta altura, poder-se-ia pensar que a resistência oposta pela Ucrânia à invasão
militar russa já teria terminado: ou com uma rápida vitória de Putin e os seus
«homens fortes», os chamados «sloviki», ou com uma pronta e eficaz intervenção da NATO à
qual esta fugiu lamentavelmente até agora. Afinal, nem
uma coisa nem outra: a primeira por manifesta impreparação bélica da Rússia e a
segunda devido ao receio da NATO perante a ameaça nuclear vociferada por Putin
desde o primeiro minuto. Ora, se é
certo que os incompetentes costumam ser perigosos, os receosos costumam ser
egoístas e, neste caso, não quiseram manifestamente arriscar-se a sofrer a
ameaça algo duvidosa dos atrevidos…
Até
aqui, ninguém está a ganhar: a Ucrânia por que foi atacada sem mais nem menos,
embora possa adivinhar os motivos ditatoriais da Rússia, e esta última por que
não estava à espera da reacção da Ucrânia e da sua liderança. Em
contrapartida, a manifesta escassez de informação militar por parte das
televisões, a começar pelas portuguesas, não permite fazer um balanço rigoroso
acerca da efectiva evolução da guerra. Contudo, nesta era em que a
televisão – não só a portuguesa – é incapaz de acompanhar a evolução militar e
se limita a notícias e comentários relativamente marginais, como a estratégia
ucraniana do êxodo das crianças, das jovens mães e dos idosos inaptos para o
combate, há outras fontes de informação que
utilizam material proveniente de ambas as partes envolvidas na guerra, o que
permite ter uma ideia mais precisa acerca daquilo que se tem estado a passar
efectivamente: …
A
boa surpresa é que Putin está a esgotar recursos humanos e armamento com que
contava para demolir o sistema político-militar ucraniano em 3 ou 4 dias… Ora, entretanto, já passaram quase 4 semanas! Dito
isto, o regresso à situação anterior é muito improvável, além das perdas
humanas e materiais verificadas até aqui. A ideia
posta a circular de que haveria um acordo em vista, não se confirmou nem
provavelmente se confirmará. A promessa feita pela Ucrânia de renunciar à
protecção que chegou a solicitar à NATO mal foi atacada mas que os Estados
Unidos e a União Europeia lhe negaram, tem-se mostrado insuficiente para a
Rússia pôr fim à guerra e muito menos devolver os territórios ucranianos
ocupados, sem falar dos custos da reconstrução da Ucrânia! Mesmo que
isso seja exacto, o que não sou competente para avaliar, podemos ter a triste
certeza que as reuniões ao mais alto nível da UE e da NATO, a realizar por
estes dias, só podem confirmar a sua neutralidade militar perante o bárbaro
ataque da Rússia. Agora é
tarde, infelizmente, mas há quem tenha elaborado um conjunto de propostas que fazem todo o sentido: trata-se do recente plano de intervenção na guerra apresentado
pelo Professor Abel Mateus… Não será a primeira vez que não o escutarão,
infelizmente. Com panos quentes é que não vai de certeza!
A
forma como a NATO se tem recusado a intervir militarmente – se necessário, como
tudo leva a crer que continuará a ser – é tanto mais indigna quanto a União
Soviética, da qual descendem em linha recta
Putin e os seus «duros», já havia assinado em Agosto de 1939 um
«pacto de neutralidade» com Hitler quando rebentou a 2.ª Guerra Mundial. Esse
acordo durou até quase ao fim do mês de Junho 1941 e a URSS só entrou em guerra
quando foi atacada… Fica assim demonstrado que a ideologia, como acontece
tantas vezes, muito pouco ou nada é determinada pela guerra. A brutal invasão da Ucrânia pela Rússia também não tem
nada que ver com as ideologias de «direitas» ou «esquerdas» mas apenas com as
aspirações imperialistas da segunda e com o heróico patriotismo da primeira.
Com efeito, a longa dominação que os
governantes russos exerceram sobre a Ucrânia, desde o tempo dos czares até ao
actual ditador, passando por Lenine, Trotsky e Estaline, é bem conhecida. Concretamente,
o regime soviético esmagou em 1918 as aspirações independentistas da Ucrânia
protagonizadas pelo movimento camponês encabeçado pelo anarquista Nestor Makhno,
e reduziu a Ucrânia à «morte pela fome» nos anos ’30…
Finalmente,
já perto de nós, a actual Ucrânia – designação que significa «fronteira»
– está neste momento a sofrer as
consequências da ambição ditatorial, assumida pela actual clique dirigente
russa, de resistir à passagem histórica dos impérios czarista e soviético à independência dos novos estados-nações. O confronto de
países mais ou menos demo-liberais, como aqueles que constituem a NATO, com
ditaduras como a Rússia, não se resolverá tão cedo nem provavelmente a bem.
GUERRA NA UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO
III - Desculpas de mau pagador
É erróneo, para não dizer pior, que as
democracias liberais – como se houvesse outras – «nunca ganharam nada». Nem
sempre terão vencido, mas venceram as duas guerras mundiais.
MANUEL VILLAVERDE
CABRAL
OBSERVADOR, 05 abr 2022
No passado domingo, o «Público»
continha dois artigos diametralmente opostos sobre a invasão da Ucrânia e as
reacções dos Estados Unidos e das democracias europeias, basicamente a NATO,
incluindo a pouco democrática Turquia… Entretanto, esta assumiu nas últimas semanas a organização
de um processo de paz que não avançou um milímetro enquanto a Rússia persiste
na sistemática destruição de habitações e de edifícios de utilidade social,
como hospitais, escolas e museus. Quanto à Ucrânia, não só resiste como procura
responder aos ataques do exército russo e começa a descobrir os crimes de
guerra deles!
No
seu artigo, Teresa de
Sousa critica os países da NATO por
não defenderem a Ucrânia de modo a que a guerra termine ou, pelo menos, seja
imediatamente interrompida a fim de os dois países envolvidos negociarem a paz.
Segundo a autora, apenas os Estados Unidos e a Inglaterra mostram empenho em
cessar a guerra o mais rapidamente possível e países vizinhos como a Polónia se
mobilizam activamente, enquanto a grande maioria dos membros originais da NATO,
como a Alemanha (de Portugal não se fala), se limitam a esperar que a Rússia
pare de atacar a Ucrânia e a compensar os enormes danos sofridos… sem falar dos territórios de que a Rússia se apoderou
recentemente como a Crimeia e o Donbass! Quanto
a receber os milhões de fugitivos, sobretudo crianças, mães e idosos sem
possibilidade de combater, é o mínimo que podíamos fazer.
O risco da guerra nuclear com que
Putin começou por ameaçar o mundo inteiro no momento em que decidiu invadir e
arrasar a Ucrânia teve, até agora, o efeito mágico de paralisar os países da
NATO, limitando-se os mais ousados destes a fornecer armas para as vítimas da
invasão resistirem sozinhas à destruição sistemática do seu país, como tem
feito heroicamente a Ucrânia sem outros apoios. Se nada mais for feito pela NATO, o que impedirá a
Rússia de atacar depois a Polónia, porventura a Roménia e por aí fora? Como
qualquer um, temos medo da sinistra ameaça, mas vamos ceder à chantagem de
Putin? Não será que a própria Rússia terá receio de recorrer ao nuclear? O caso do Japão foi único e assim deve continuar,
mas não pode ser motivo de paralisia numa situação como a actual.
Não é o que pensa o
outro comentador do «Público»,
J. P. Teixeira Fernandes, o qual
apregoa sem hesitação que «sozinhas, as democracias liberais nunca ganharam
nada» nas guerras mundiais do século passado e, portanto, também desta vez
essas democracias liberais – mas há outras?! – seriam incapazes de enfrentar a
ameaça da Rússia e da China!
É
falso, com efeito, que as duas democracias mais antigas e mais interiorizadas –
os Estados Unidos e a Grã-Bretanha – tenham necessitado de mais alguém para ganhar a 1.ª
Guerra Mundial, já que mal Lénin tomou o poder em Outubro de 1917, inaugurando
o «comunismo» para as próximas décadas, fez a paz com a Alemanha e a Áustria no
famoso acordo de Brest-Litovsk
a fim de se dedicar à revolução que duraria até finais do séc. XX.
Quanto
à 2.ª Guerra Mundial, ganha de novo pelas democracias norte-americana e
britânica, estas
desprezaram durante anos o pacto feito pela Alemanha nazi
e a ditadura stalinista em Agosto de 1939, isto é, antes de a guerra
começar até ao dia em que a Alemanha acabou por atacar a Rússia pois a
Inglaterra e os Estados Unidos davam-lhe cada vez menos espaço. Entretanto, os Estados Unidos tiveram de lidar com o
ataque surpresa do Japão contra Pearl Harbour por essa altura sem que a URSS
piasse… Quanto a
Stalingrado e Leningrado, a Rússia levou tempo a tomar consciência do ataque
alemão e não deixou de beneficiar, indirectamente que fosse, do apoio que as
democracias lhe deram.
O
desgaste humano e material da 2.ª Guerra Mundial explica em boa parte a forma
oportunista como a URSS se apoderou da Europa central e oriental. Quanto à «guerra fria», perdurou até à desintegração
do «universo comunista». É este,
contudo, a figura da Rússia que perdura na cabeça dos antigos membros da
polícia secreta russa de que fizeram parte Putin e a sua «clique» de agentes do
KGB, hoje transformados nos actuais «siloviki», bem mais políticos do que os
«oligarcas», conforme se podia ler há mais de 10 anos no Journal of
Democracy (2009). É pois erróneo, para não dizer pior, que as democracias
liberais – como se houvesse outras, aliás! – «nunca ganharam nada». Nem sempre
terão vencido mas venceram as duas guerras mundiais e só elas têm capacidade
para pôr termo ao fantasma do comunismo.
GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA
EUROPA MUNDO
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