quinta-feira, 26 de maio de 2022

Três em um

 

Excelentes estudos de MANUEL VILLAVERDE CABRAL, simples, directos, de um pensamento que é o nosso, sem sobrecarga de dados, dando-nos a confortável convicção de que “já sabíamos desses dados” e assim pensávamos dos artifícios dos povos de uma banda e da outra. Por isso me sinto grata ao professor Manuel Villaverde Cabral, por assim expor o seu pensamento criterioso e desmascarador das reais intenções de Putin, das reais cobardias e astúcias ocidentais, e repondo os dados históricos reveladores da história mais antiga. Não cheguei a ler os Comentários. Suponho que são todos favoráveis, tão acessível e decente é, o discurso do professor.

I -A guerra dói mas continua

Aquilo que Putin tem feito é pura propaganda destinada a captar o apoio da massa da população russa, a qual parece não ter saído até hoje do vazio ideológico deixado pela queda do regime soviético.

MANUEL VILLAVERDE CABRAL

OBSERVADOR, 25 mai 2022, 00:1510

A guerra prossegue há três meses sem mais objectivos aparentes do que os do primeiro dia: a «invasão» da Rússia e a «defesa» da Ucrânia. Esta última foi rapidamente apoiada à distância com armas e dinheiro fornecidos pela NATO em nome da solidariedade mas sem esta ir, contudo, ao ponto de levar a Ucrânia para a dita NATO, possivelmente com receio que a Rússia cumprisse a ameaça da bomba nuclear, conforme anunciou desde o primeiro minuto!

Pensasse ele o que pensasse após a usurpação da Crimeia em 2014, Putin nunca chegou a formular quaisquer objectivos precisos quando invadiu a Ucrânia em Fevereiro de 2022 nem declarou os seus motivos e objectivos concretos. O ataque da Rússia tão pouco se revestiu até agora de quaisquer valores ideológicos: nem direita nem esquerda; nem democracia nem ditadura. A única bandeira agitada é, de ambos os lados, o sentimento patriótico, seja lá o que isso for concretamente. Na prática, trata-se de a Rússia continuar a apropriar-se de territórios ucranianos a fim de Putin mobilizar o ego russo enquanto a Ucrânia tenta impedir que isso aconteça!

Com efeito, não só a movimentação do exército russo se mostrou errática desde o início, durante o qual Putin ainda teve o auxílio armado da Bielorússia, como não foi além da destruição sistemática das cidades de Kiev e Cracóvia das quais não logrou contudo apoderar-se assim como da grande maioria das inúmeras localidades ucranianas alvejadas. Com excepção das zonas que a Rússia já controlava, como a Crimeia e a costa marítima, bem como duas cidades importantes, as tropas russas limitaram-se a bombardear até ao último prédio dos centros urbanos da Ucrânia oriental no seguimento da intervenção política russa de 2014 e da ocupação da Crimeia.

Em suma, aquilo que Putin tem feito sustentado pelos «siloviki» é pura propaganda destinada a captar o apoio da massa da população russa, a qual parece não ter saído até hoje do vazio ideológico deixado pela queda do regime soviético e pela emergência de um patriotismo tanto mais exacerbado quanto isolado e insatisfeito, para não dizer derrotista… Desde então, a sociedade russo não foi capaz de criar efectivas representações partidárias!

O gigantesco desfile militar de Maio em Moscovo, entremeado de bandeiras vermelhas com a foice e o martelo, ilustra bem o carácter artificial da propaganda nacionalista do regime, assim como a frustração patriótica dos cidadãos russos perante a riqueza comparativa do «mundo ocidental», ao qual a Ucrânia e outros países do antigo império soviético têm vindo a aderir, cerceando assim as aspirações imperiais de uma efectiva elite… se é que existe.

Repito: não há aqui, como de resto também não há na Ucrânia, por motivos sócio-culturais idênticos, qualquer ideologia propriamente dita que vá além da língua e da religião nataisQuanto às classificações ideológicas que actualmente florescem, como em Portugal, onde os comentadores se deixam aprisionar pelos «slogans» de «direita» e «esquerda», é sabido há muito tempo que a grande maioria dos portugueses, quando revela a sua «ideologia», o que já de si não é fácil, se classifica nos lugares centrais entre as tais «esquerda» e «direita»… Pretender, pois, como uma comentadora do «Público», que tanto a Rússia como a Ucrânia são de «direita», não acrescenta rigorosamente nada à guerra entre os dois países, pelo contrário.

O único factor em jogo nesta guerra é a desigual dimensão entre o atacante e a vítima. Muito mais importante do que as convicções ideológicas dos envolvidos é, obviamente, a ressurreição da NATO (a OTAN da qual Portugal é membro desde a sua criação em 1949), a qual conferiu ao conflito uma dimensão internacional que só não se consumou até agora com a derrota da Rússia devido à ameaça nuclear. Assim se politizou à escala internacional mais uma dessas terríveis guerrilhas que têm tido lugar fora da Europa!

Entre o improvável resultado militar e o pouco entusiasmo do recente encontro diplomático entre o presidente da Ucrânia, efectivo herói da resistência ao «urso branco», e o primeiro-ministro português, confirmou-se na semana passada que qualquer dos dois políticos presentes pouco ou nada tinham a dizer e muito menos a dar um ao outro. Visivelmente, António Costa estava mais preocupado com as baixas perspectivas dos próximos anos do que com a guerra mundial!

Enquanto durar, a guerra é má para todos e, quando acabar, isso pouco ou nada acrescentará à política de cada um, seja ela de «direita» ou de «esquerda», como se isso tivesse muito conteúdo e eficácia. Por que razão? Porque as «ideologias» do começo do XXI estão completamente desgastadas e não passam de «slogans» atirados à cabeça dos concorrentes a qualquer forma de poder cada vez mais fugidio e cada vez mais parecido com os seus competidores. A guerra em curso continuará a ser muito penosa mas não creio que mude o futuro: não tem, pois, razão de ser.

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II - Está a Ucrânia entregue a si própria?

O confronto de países mais ou menos demo-liberais, como aqueles que constituem a NATO, com ditaduras como a Rússia, não se resolverá tão cedo nem provavelmente a bem.

MANUEL VILLAVERDE CABRAL

OBSERVADOR,22 mar 2022, 00:1613

Por esta altura, poder-se-ia pensar que a resistência oposta pela Ucrânia à invasão militar russa já teria terminado: ou com uma rápida vitória de Putin e os seus «homens fortes», os chamados «sloviki», ou com uma pronta e eficaz intervenção da NATO à qual esta fugiu lamentavelmente até agora. Afinal, nem uma coisa nem outra: a primeira por manifesta impreparação bélica da Rússia e a segunda devido ao receio da NATO perante a ameaça nuclear vociferada por Putin desde o primeiro minuto. Ora, se é certo que os incompetentes costumam ser perigosos, os receosos costumam ser egoístas e, neste caso, não quiseram manifestamente arriscar-se a sofrer a ameaça algo duvidosa dos atrevidos…

Até aqui, ninguém está a ganhar: a Ucrânia por que foi atacada sem mais nem menos, embora possa adivinhar os motivos ditatoriais da Rússia, e esta última por que não estava à espera da reacção da Ucrânia e da sua liderança. Em contrapartida, a manifesta escassez de informação militar por parte das televisões, a começar pelas portuguesas, não permite fazer um balanço rigoroso acerca da efectiva evolução da guerra. Contudo, nesta era em que a televisão – não só a portuguesa – é incapaz de acompanhar a evolução militar e se limita a notícias e comentários relativamente marginais, como a estratégia ucraniana do êxodo das crianças, das jovens mães e dos idosos inaptos para o combate, há outras fontes de informação que utilizam material proveniente de ambas as partes envolvidas na guerra, o que permite ter uma ideia mais precisa acerca daquilo que se tem estado a passar efectivamente: …

A boa surpresa é que Putin está a esgotar recursos humanos e armamento com que contava para demolir o sistema político-militar ucraniano em 3 ou 4 dias… Ora, entretanto, já passaram quase 4 semanas! Dito isto, o regresso à situação anterior é muito improvável, além das perdas humanas e materiais verificadas até aqui. A ideia posta a circular de que haveria um acordo em vista, não se confirmou nem provavelmente se confirmará. A promessa feita pela Ucrânia de renunciar à protecção que chegou a solicitar à NATO mal foi atacada mas que os Estados Unidos e a União Europeia lhe negaram, tem-se mostrado insuficiente para a Rússia pôr fim à guerra e muito menos devolver os territórios ucranianos ocupados, sem falar dos custos da reconstrução da Ucrânia! Mesmo que isso seja exacto, o que não sou competente para avaliar, podemos ter a triste certeza que as reuniões ao mais alto nível da UE e da NATO, a realizar por estes dias, só podem confirmar a sua neutralidade militar perante o bárbaro ataque da Rússia. Agora é tarde, infelizmente, mas há quem tenha elaborado um conjunto de propostas que fazem todo o sentido: trata-se do recente plano de intervenção na guerra apresentado pelo Professor Abel Mateus… Não será a primeira vez que não o escutarão, infelizmente. Com panos quentes é que não vai de certeza!

A forma como a NATO se tem recusado a intervir militarmente – se necessário, como tudo leva a crer que continuará a ser – é tanto mais indigna quanto a União Soviética, da qual descendem em linha recta Putin e os seus «duros», já havia assinado em Agosto de 1939 um «pacto de neutralidade» com Hitler quando rebentou a 2.ª Guerra Mundial. Esse acordo durou até quase ao fim do mês de Junho 1941 e a URSS só entrou em guerra quando foi atacadaFica assim demonstrado que a ideologia, como acontece tantas vezes, muito pouco ou nada é determinada pela guerra. A brutal invasão da Ucrânia pela Rússia também não tem nada que ver com as ideologias de «direitas» ou «esquerdas» mas apenas com as aspirações imperialistas da segunda e com o heróico patriotismo da primeira.

Com efeito, a longa dominação que os governantes russos exerceram sobre a Ucrânia, desde o tempo dos czares até ao actual ditador, passando por Lenine, Trotsky e Estaline, é bem conhecida. Concretamente, o regime soviético esmagou em 1918 as aspirações independentistas da Ucrânia protagonizadas pelo movimento camponês encabeçado pelo anarquista Nestor Makhno, e reduziu a Ucrânia à «morte pela fome» nos anos ’30

Finalmente, já perto de nós, a actual Ucrânia – designação que significa «fronteira» – está neste momento a sofrer as consequências da ambição ditatorial, assumida pela actual clique dirigente russa, de resistir à passagem histórica dos impérios czarista e soviético à independência dos novos estados-nações. O confronto de países mais ou menos demo-liberais, como aqueles que constituem a NATO, com ditaduras como a Rússia, não se resolverá tão cedo nem provavelmente a bem.

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III - Desculpas de mau pagador

É erróneo, para não dizer pior, que as democracias liberais – como se houvesse outras – «nunca ganharam nada». Nem sempre terão vencido, mas venceram as duas guerras mundiais.

MANUEL VILLAVERDE CABRAL

OBSERVADOR, 05 abr 2022

No passado domingo, o «Público» continha dois artigos diametralmente opostos sobre a invasão da Ucrânia e as reacções dos Estados Unidos e das democracias europeias, basicamente a NATO, incluindo a pouco democrática TurquiaEntretanto, esta assumiu nas últimas semanas a organização de um processo de paz que não avançou um milímetro enquanto a Rússia persiste na sistemática destruição de habitações e de edifícios de utilidade social, como hospitais, escolas e museus. Quanto à Ucrânia, não só resiste como procura responder aos ataques do exército russo e começa a descobrir os crimes de guerra deles!

No seu artigo, Teresa de Sousa critica os países da NATO por não defenderem a Ucrânia de modo a que a guerra termine ou, pelo menos, seja imediatamente interrompida a fim de os dois países envolvidos negociarem a paz. Segundo a autora, apenas os Estados Unidos e a Inglaterra mostram empenho em cessar a guerra o mais rapidamente possível e países vizinhos como a Polónia se mobilizam activamente, enquanto a grande maioria dos membros originais da NATO, como a Alemanha (de Portugal não se fala), se limitam a esperar que a Rússia pare de atacar a Ucrânia e a compensar os enormes danos sofridossem falar dos territórios de que a Rússia se apoderou recentemente como a Crimeia e o Donbass! Quanto a receber os milhões de fugitivos, sobretudo crianças, mães e idosos sem possibilidade de combater, é o mínimo que podíamos fazer.

O risco da guerra nuclear com que Putin começou por ameaçar o mundo inteiro no momento em que decidiu invadir e arrasar a Ucrânia teve, até agora, o efeito mágico de paralisar os países da NATO, limitando-se os mais ousados destes a fornecer armas para as vítimas da invasão resistirem sozinhas à destruição sistemática do seu país, como tem feito heroicamente a Ucrânia sem outros apoios. Se nada mais for feito pela NATO, o que impedirá a Rússia de atacar depois a Polónia, porventura a Roménia e por aí fora? Como qualquer um, temos medo da sinistra ameaça, mas vamos ceder à chantagem de Putin? Não será que a própria Rússia terá receio de recorrer ao nuclear? O caso do Japão foi único e assim deve continuar, mas não pode ser motivo de paralisia numa situação como a actual.

Não é o que pensa o outro comentador do «Público», J. P. Teixeira Fernandes, o qual apregoa sem hesitação que «sozinhas, as democracias liberais nunca ganharam nada» nas guerras mundiais do século passado e, portanto, também desta vez essas democracias liberais – mas há outras?! – seriam incapazes de enfrentar a ameaça da Rússia e da China!

É falso, com efeito, que as duas democracias mais antigas e mais interiorizadas – os Estados Unidos e a Grã-Bretanha – tenham necessitado de mais alguém para ganhar a 1.ª Guerra Mundial, já que mal Lénin tomou o poder em Outubro de 1917, inaugurando o «comunismo» para as próximas décadas, fez a paz com a Alemanha e a Áustria no famoso acordo de Brest-Litovsk a fim de se dedicar à revolução que duraria até finais do séc. XX.

Quanto à 2.ª Guerra Mundial, ganha de novo pelas democracias norte-americana e britânica, estas desprezaram durante anos o pacto feito pela Alemanha nazi e a ditadura stalinista em Agosto de 1939, isto é, antes de a guerra começar até ao dia em que a Alemanha acabou por atacar a Rússia pois a Inglaterra e os Estados Unidos davam-lhe cada vez menos espaço. Entretanto, os Estados Unidos tiveram de lidar com o ataque surpresa do Japão contra Pearl Harbour por essa altura sem que a URSS piasseQuanto a Stalingrado e Leningrado, a Rússia levou tempo a tomar consciência do ataque alemão e não deixou de beneficiar, indirectamente que fosse, do apoio que as democracias lhe deram.

O desgaste humano e material da 2.ª Guerra Mundial explica em boa parte a forma oportunista como a URSS se apoderou da Europa central e oriental. Quanto à «guerra fria», perdurou até à desintegração do «universo comunista». É este, contudo, a figura da Rússia que perdura na cabeça dos antigos membros da polícia secreta russa de que fizeram parte Putin e a sua «clique» de agentes do KGB, hoje transformados nos actuais «siloviki», bem mais políticos do que os «oligarcas», conforme se podia ler há mais de 10 anos no Journal of Democracy (2009). É pois erróneo, para não dizer pior, que as democracias liberais – como se houvesse outras, aliás! – «nunca ganharam nada». Nem sempre terão vencido mas venceram as duas guerras mundiais e só elas têm capacidade para pôr termo ao fantasma do comunismo.

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