José Saramago criou um estilo fluido e fluente em que personagens e acções se
entrechocam por vezes em sequência narrativa progressiva, de operacionalidade
gramatical subversiva, em termos do discurso, o discurso directo enfiado no
discurso do narrador, participante ou não – não segundo os critérios
gramaticais tradicionais, mas em sequência discursiva uniforme, prolongador da
narrativa exposta, numa simbolização de temporalidade cronológica real
ininterrupta, em que o início de cada fala apenas se distingue pela vírgula e a
letra maiúscula, integrada no narrado, em processo iconoclástico, por vezes
usado, contudo, para efeitos jocosos, não isentos de intenção caricatural. Uma
faceta curiosa dos seus livros riquíssimos do ponto de vista de análise social
e psicológica, mas pesados de intencionalidade crítica, o pessimismo sobre a
condição humana prevalecendo, em meio da nossa admiração pela profundidade
criativa do escritor.
Lembrei-me de
Saramago a propósito de um livro que li, de Paul Auster, “Diário de Inverno”, que desconhecia, e que me chegou pelas mãos da minha filha Paula, mais a
par das leituras contemporâneas, que vai trocando, com as suas amigas.
De facto, de
repente vejo-me enfrentando longuíssimos períodos discursivos, não ao modo por
vezes agramatical de Saramago, e em todo o caso, paralelo em termos de
extensão, sem a sensação, contudo, de se estar embrulhado em caótica sequência
narrativa, de dispersa reflexão e malícia crítica, como no caso de Saramago -
as ideias, em Paul Auster resultantes de um discurso directo de memória, em que o que é subvertido é
o tempo, a temática toda circunscrita ao eu/tu, sujeito e objecto da narração
de um percurso vivido sobre o qual os “eles” da dispersa experiência etária vão
surgindo, por vezes, em sentido crítico, mas em que o próprio narrador/narratário
se não isenta de se assumir como responsável, tantas vezes, das situações
criadas, não raro dolorosas, que um destino generoso por vezes preservou da
fatalidade. Um discurso em que o “então” e o “agora” se correspondem, no
ziguezaguear constante da memória, que ora se debruça sobre o passado mais
distante, e muitas vezes repegado, ora se aproxima da contemporaneidade, ou
voltando ao passado, quer focando o presente mais ou menos próximo, com que,
aliás, termina o seu memorial “Diário de Inverno”, que me lembrou, na beleza e mutabilidade
“paisagística” do seu entrecho narrativo, um caleidoscópio de coloridas e
mutantes imagens, criadas ao sabor de levos toques – de uma beleza e ternura,
não isenta de sabor crítico condenatório, de si próprio como do “outro”, sem
rebuços ou evasivas de linguagem, por vezes crítica e mesmo autocrítica, em que
a Mulher, os Filhos e a própria Mãe sobressaem na ternura límpida do seu amor,
neste caleidoscópio ziguezagueante e colorido, como um sopro leve de vida – que
podemos sempre referenciar, na justeza dos seus dados, como a nossa própria, a
vida de cada um, feita de acertos e erros, de sentimentos, de casos.
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