segunda-feira, 23 de maio de 2022

Caleidoscópio


José Saramago criou um estilo fluido e fluente em que personagens e acções se entrechocam por vezes em sequência narrativa progressiva, de operacionalidade gramatical subversiva, em termos do discurso, o discurso directo enfiado no discurso do narrador, participante ou não – não segundo os critérios gramaticais tradicionais, mas em sequência discursiva uniforme, prolongador da narrativa exposta, numa simbolização de temporalidade cronológica real ininterrupta, em que o início de cada fala apenas se distingue pela vírgula e a letra maiúscula, integrada no narrado, em processo iconoclástico, por vezes usado, contudo, para efeitos jocosos, não isentos de intenção caricatural. Uma faceta curiosa dos seus livros riquíssimos do ponto de vista de análise social e psicológica, mas pesados de intencionalidade crítica, o pessimismo sobre a condição humana prevalecendo, em meio da nossa admiração pela profundidade criativa do escritor.

Lembrei-me de Saramago a propósito de um livro que li, de Paul Auster, “Diário de Inverno”, que desconhecia, e que me chegou pelas mãos da minha filha Paula, mais a par das leituras contemporâneas, que vai trocando, com as suas amigas.

De facto, de repente vejo-me enfrentando longuíssimos períodos discursivos, não ao modo por vezes agramatical de Saramago, e em todo o caso, paralelo em termos de extensão, sem a sensação, contudo, de se estar embrulhado em caótica sequência narrativa, de dispersa reflexão e malícia crítica, como no caso de Saramago - as ideias, em Paul Auster resultantes de um discurso directo de memória, em que o que é subvertido é o tempo, a temática toda circunscrita ao eu/tu, sujeito e objecto da narração de um percurso vivido sobre o qual os “eles” da dispersa experiência etária vão surgindo, por vezes, em sentido crítico, mas em que o próprio narrador/narratário se não isenta de se assumir como responsável, tantas vezes, das situações criadas, não raro dolorosas, que um destino generoso por vezes preservou da fatalidade. Um discurso em que o “então” e o “agora” se correspondem, no ziguezaguear constante da memória, que ora se debruça sobre o passado mais distante, e muitas vezes repegado, ora se aproxima da contemporaneidade, ou voltando ao passado, quer focando o presente mais ou menos próximo, com que, aliás, termina o seu memorial “Diário de Inverno”, que me lembrou, na beleza e mutabilidade “paisagística” do seu entrecho narrativo, um caleidoscópio de coloridas e mutantes imagens, criadas ao sabor de levos toques – de uma beleza e ternura, não isenta de sabor crítico condenatório, de si próprio como do “outro”, sem rebuços ou evasivas de linguagem, por vezes crítica e mesmo autocrítica, em que a Mulher, os Filhos e a própria Mãe sobressaem na ternura límpida do seu amor, neste caleidoscópio ziguezagueante e colorido, como um sopro leve de vida – que podemos sempre referenciar, na justeza dos seus dados, como a nossa própria, a vida de cada um, feita de acertos e erros, de sentimentos, de casos.

 


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