Sobre a viagem das obras de arte que só os
muito endinheirados deste mundo poderão adquirir. Um museu, que algumas vezes
visitei, quando funções docentes me levavam a Lisboa - nos seus quadros, nos
seus laliques, nos seus jardins… onde isso vai! Também lá almocei, uma ou duas
vezes. Fantástico poder do dinheiro! Como o Museu veio transformar a panorâmica
cultural deste país pobre, que um homem rico e generoso connosco, ajudou – e ajuda
ainda, através dos representantes – a desenvolver culturalmente. Uma viagem pela história da
Rússia também, empobrecido o seu Hermitage, segundo referências
de Rui Ramos, sob
informação de João Carvalho
Dias, actual director do museu da Fundação Gulbenkian. Um prazer
de leitura, a deste texto que nos tornam gratos e saudosos…
Calouste Gulbean e o país dos sovietes
Os objetos adquiridos pelo
filantropo arménio ao museu Hermitage são o ponto de partida de uma viagem que
mistura revolucionários bolchevistas com uma das maiores vendas de arte de
todos os tempos.
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OBSERVADOR, 09 mai 2022, 10:17
Entre o final da década de 1920 e primeira
metade da seguinte, Calouste
Sarkis Gulbenkian voltou a surpreender o mundo com a sua extrema
habilidade e sensibilidade para aumentar o espólio da sua extraordinária colecção,
e estar, primeiro do que todos, no “sítio” certo e na companhia das pessoas
mais influentes, tendo assim acesso ao espólio de um dos maiores museus do mundo.
Falamos do Hermitage, em pleno coração do país dos sovietes, mais
concretamente em São
Petersburgo, na Rússia.
É
numa espécie de regresso ao raiar do século XX que somos conduzidos neste que é
o terceiro episódio do podcast Only the Best, uma parceria entre o
Museu Calouste Gulbenkian e a Rádio Observador que vai para o ar a cada quinze
dias, como sempre, conduzido pelo historiador Rui Ramos, anfitrião
deste programa, e à boleia das histórias fascinantes partilhadas por João
Carvalho Dias, diretor-adjunto do referido museu.
Oportunidade de uma vida
Conhecido
por ser um dos museus com uma das colecções de arte mais imponentes de todo o
mundo, algo que ainda hoje se verifica, o Hermitage, viu, como conta Rui
Ramos, “o seu espólio crescer graças à
intervenção dos czares da Rússia”, mas, em março de 1917, o país enfrentou uma
das maiores crises políticas da sua história, “já que o império dos czares
caiu, dando lugar a uma república, que, em novembro desse ano, seria derrubada
pelos bolcheviques que instalariam uma ditadura que, poucos anos depois, seria
a génese da União Soviética”.
Com
o país mergulhado numa crise profunda, era urgente a entrada de dinheiro, “e a
venda parcial da colecção de arte dos czares pareceu um bom meio de o
conseguir, nomeadamente a partir do estrangeiro”, explica Rui Ramos. Dessa forma, “o
governo soviético pediu ao museu Hermitage que elaborasse uma lista de obras de
arte que podiam ser exportadas de modo a chegarem a um valor de dois milhões de
rublos”.
No
artigo As grandes
oportunidades. As compras à Rússia, Nuno Vassallo e Silva contextualiza o que se passava nessa época, referindo
que, “em 1925, foi
criado o Antikvariat – Central Office for State Trading of the USSR for the
Purchase and Sale of Antique Objects, organismo que coordenou todas as
vendas de obras de arte russas no estrangeiro, com delegações em Berlim, Paris,
Londres e Nova Iorque”.
Foi
assim que, entre 1929 e 1934, o governo soviético vendeu mais de duas mil obras
de arte da coleção do Hermitage, incluindo 250 pinturas, entre as quais obras
de mestres como Rafael, Ticiano, Botticelli e Rembrandt. A venda, como refere Rui Ramos,
“foi secreta entre 1929 e 1933, até a
imprensa ocidental ter descoberto que algumas das mais famosas obras de arte do
referido museu estavam a aparecer em coleções e museus ocidentais, como a Crucifixão de
van Eyck no Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque”.
Mas como entra Calouste
Gulbenkian nessa corrida, onde estava nesse período e como soube
da venda antes dos outros, já que o arménio foi um dos primeiros compradores?
João
Carvalho Dias lembra que
os números envolvidos nessa venda eram “alucinantes, chegando mesmo a
avançar-se que teriam saído dezenas de milhares de obras, das quais milhares de
pinturas, ainda que seja impossível saber ao certo”.
Mas,
mais uma vez, “há que identificar a centralidade de Calouste
Gulbenkian no mundo dos negócios para encontrar as pistas que conduziram ao
«negócio» com o Hermitage. Neste caso, fazer com
que a Rússia Soviética pudesse sentar-se à mesa com os grandes produtores de
petróleo, podendo assim aceder a uma fatia dos mercados, como negociador, e não
apenas como produtor. Este «esquema» interessava aos soviéticos e aos outros
produtores, que assim tinham poder de negociação para obterem acesso às imensas
jazidas russas”, indica o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.
Na
época, Gulbenkian tinha vários aliados, em particular, “o norte-americano Alfred Chester Beatty,
milionário da mineração e colecionador, e o soviético Georges Piatakoff,
governador do Banco Estatal Soviético, seu representante em Paris. Mas havia
uma contrapartida, o Consórcio liderado por Gulbenkian ficaria com o monopólio
das exportações de petróleo russo durante quatro a cinco anos, contra o
investimento de dez milhões de libras em infraestruturas petrolíferas. Os
russos estavam interessados em negociar com Gulbenkian e como tal deram-lhe
primazia, quando surgiu a ideia de vender obras de arte do Hermitage. E estando
Gulbenkian em Paris, trata-se de uma oportunidade única para o arménio”, refere
João Carvalho Dias.
Critérios de mestre
Hoje
ainda um dos
maiores museus do planeta, o Hermitage abriu
as portas ao público em 1852, e “ocupa grande parte dos antigos
palácios da família real em S. Petersburgo. A sua coleção foi iniciada pela
imperatriz Catarina, a Grande, em 1764, quando esta começou a comprar obras de
arte a colecionadores europeus, incluindo quadros de Holbein, Rafael, Ticiano, Paolo Veronese, Rembrandt ou Rubens”, lembra Rui Ramos.
Estima-se
que a coleção reunia “um total de quatro
mil quadros, dez mil desenhos, 16 mil moedas, assim como esculturas e joias”, refere o historiador, que acrescenta que “a
imperatriz desejava competir com os outros monarcas europeus enquanto patrono
das artes. Os outros czares continuaram as aquisições na Europa ocidental, ao
ponto de juntarem a maior coleção de Rembrandt do mundo”. A isso, “junta-se os
resultados das escavações arqueológicas no império russo”, sublinha o historiador.
Sabemos
que “Gulbenkian comprou quadros de artistas
como Rembrandt, Rubens ou Huber Robert”,
mas a grande dúvida, pergunta o anfitrião do podcast Only the Best, era saber “em que critérios se baseou para seleccionar o que lhe
interessava?”.
Segundo
João Carvalho Dias, Calouste
estava “interessado em tudo”, em especial, “ourivesaria, pintura de grandes
mestres, livros manuscritos, encadernações persas e francesas do século XVIII,
escultura, mobiliário e até antiguidades egípcias”. O facto de “conhecer os catálogos, nomeadamente
os inventários do Barão Foelkersam para a ourivesaria e de Pierre Weiner para a
pintura, e de ter tido ajuda por parte de Wildenstein, que possuía fotografias
das galerias – e para quem adquiriu obras como Retrato de Tito, de Rembrandt; Le
Mezzetin, de Antoine Watteau; La leçon de musique, de Ter Borch; e Les
baigneuses, de Lancret –, foi uma preciosa e fundamental ajuda para o
filantropo arménio.
Graças
a isso, “Gulbenkian
comprou pinturas de Rembrandt (Figura
de Velho e Pallas Atena), Rubens
(Retrato de Helena Fourment), Hubert Robert (duas
pinturas do Jardim de Versalhes), assim como peças de ourivesaria de
François-Thomas Germain, Roettiers, Lehendrick, provenientes de
importantes serviços imperiais; uma mesa-secretária de Riesener, e claro está,
a obra-prima da escultura francesa do século XVIII – Diana – comprada
por Catarina, a Grande, directamente a Houdon”, enumera João Carvalho Dias, que recorda que constavam entre “as primeiras e
impressionantes listas, nomes de artistas como Fra Angelico, Giorgione, Botticelli, Rafael, Miguel
Ângelo, Ticiano, Velasquez, Chardin e Falconet”.
A
aquisição destas obras, de acordo com o artigo As grandes oportunidades. As compras à Rússia, de Nuno Vassallo e Silva, representa a “mais espectacular” das quatro
remessas de obras de arte que Gulbenkian adquiriu aos soviéticos, tendo sido o
reflexo da habilidade negocial do arménio que conseguiu ultrapassar e antecipar
a feroz concorrência, pois estava, mais uma vez, rodeado de gente influente, e
possuir informação sobre as peças, “embora nunca tenha tido contacto directo”
com as mesmas. Além disso, este
negócio permitiu também satisfazer um dos sonhos de Calouste, pois “com a
aquisição dos dois Rembrandts, concretizou o desejo de possuir na sua coleção
telas do mestre holandês”,
assinala Nuno Vassallo
e Silva.
Fundação Calouste Gulbenkian – Ricardo
Oliveira Alves
Negócios delicados e (mais ou menos) secretos
Todos
esses negócios foram, como sublinha Rui
Ramos, “uma das transacções mais delicadas e
complexas da vida de coleccionador de Calouste Gulbenkian, pois tratava-se de
comprar peças de um museu, vendidas secretamente por um regime que então ainda
não era reconhecido por muitos Estados da Europa ocidental”. Para complicar,
continua o anfitrião do podcast Only the Best, “o governo bolchevista
tinha incluído no Hermitage muitas das coleções expropriadas a colecionadores
soviéticos privados”.
Mas
o filantropo arménio não foi o único a ter interesse nas obras do Hermitage, e,
lembra Rui Ramos, “o milionário norte-americano Andrew Mellon também fez
grandes compras, logo a partir de 1930, que depois doou para fundar a National
Gallery of Art, em Washington”. Mas ficam no ar várias perguntas: como é que
Calouste agiu, quem foram os seus intermediários e, sobretudo, que cautelas
teve nessas compras?
A
esse propósito, João Carvalho
Dias, afirma que “as cautelas de
Gulbenkian foram muitas, sendo preciosa a intervenção de Georges Piatakoff,
todo o processo foi rodeado de grande secretismo, e só mais tarde começaram as
fugas para a imprensa. Uma delas, em 1931, até divertiu Gulbenkian quando o
Daily Telegraph atribui a Andrew Mellon a aquisição do Retrato de Helena
Fourment de Rubens, num negócio que envolveu “mais 15 peças em prata” e
que no total representou um investimento de 8,8 milhões de libras”, confessa
Jonathan Conlin na obra O Homem Mais Rico do Mundo.
Apesar
disso, nem todas as compras aos soviéticos “foram tão sigilosas como Gulbenkian
porventura desejara”, refere Nuno Vassallo e Silva no livro As grandes
oportunidades. As compras à Rússia, pois “os arquivos da Casa Duveen, no Getty
Research Institute, em Los Angeles, testemunharam o seu acompanhamento pelos
maiores comerciantes de arte da época”.
Esse conhecimento levou, em 1931, a que Gulbenkian
recebesse na sua casa de Paris, Edward Fowles, braço direito de Duveen, que dirigia a
sucursal da sua galeria”, com o
objetivo de ver e avaliar as peças adquiridas por Calouste, tendo concluído que
Gulbenkian estaria resistente à venda das obras, pois, estava convencido de
que “possuía o melhor” e queria-as para si.
Apesar
disso, e voltando ao livro de Conlin, relata-se a contribuição de Piatakoff nas
compras de Gulbenkian ao Hermitage, entre 1928 e 1930, ainda que “não se
assumisse como um perito”, e na obsessão de Calouste “em adquirir peças de
qualidade”, ao contrário de outros coleccionadores que “optavam pela
quantidade”. Conlin, refere ainda que Gulbenkian
entregou a Piatakoff uma primeira lista com obras pretendidas, com este a
reduzi-la “a nove pinturas e catorze peças de prata”.
Ainda em relação à contribuição de
Piatakoff nas negociações, Jonathan Conlin, partilha no seu livro que estavam
também em causa interesses paralelos como “o interesse nas discussões relativas
ao petróleo” por parte de Gulbenkian, que, perante um momento “de impasse nas
negociações”, teve ainda a habilidade de incluir “algumas obras para aguçar o
acordo”.
Outro
homem importante foi o francês Marcel
Aucoc, que, segundo o director-adjunto do
Museu Calouste Gulbenkian, “era o olheiro do arménio, tendo feito o
levantamento das peças e entregado relatórios a Calouste, com o seu olhar de
perito incidido sobretudo sobre as peças de ourivesaria. Já em relação a
uma peça como Diana, de
Houdon, limitou-se a
referi-la como um mármore soberbo, um pouco frio, realista», ainda que tal não
condicionou Gulbenkian na sua aquisição que pois já conhecia a referida
escultura através das publicações, pelo menos desde 1907”.
Outra
tarefa complicada foi “a exportação das peças, via Berlim e depois Paris, e,
no caso da escultura de Houdon, por mar, até Londres. Posteriormente, as
obras compradas em “quatro remessas”, seriam todas reunidas na casa da
Avenue d’Iéna, em Paris”. Importante é também o facto, como é revelado no
livro O Homem Mais
Rico do Mundo, de
Gulbenkian, perante as compras ao Hermitage, “começar a conceber a organização
da sua colecção como se fosse director de uma galeria pública, procurando que
cada mestre estivesse representado por uma obra-prima característica
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN – PEDRO PINA
A casa (museu) de Paris
Ainda
que Gulbenkian tenha sido o primeiro comprador das obras do Hermitage, “o
governo soviético achou que o arménio não estava a pagar-lhes muito”, diz Rui Ramos,
recordando que “algumas das obras vendidas pelos soviéticos foram depois
novamente transaccionadas pelos maiores valores até então atingidos numa venda
de arte. Exemplo disso foi o que aconteceu com A Maddona Alba, de Rafael,
que atingiu o valor de um milhão de dólares”.
Surgem
então outras dúvidas: Quanto é que Gulbenkian estava disposto a gastar em arte
e qual o seu orçamento, ou, se aquando da compra dessas peças estaria a pensar
em colocá-las em sua casa, ou, como Andrew Mellon, já pensava num futuro museu?
João
Dias Carvalho confessa ser difícil perceber qual a real estratégia. No entanto,
“haveria certamente um número na
cabeça de Calouste, mas não foi revelado. Isto é, pagaria o justo valor, mas
muito raramente acima disso.” Quanto à razão para a aquisição das referidas
peças, “certamente estaria a pensar na sua colecção”. Aliás, “a partir das
aquisições ao Hermitage, o patamar subiu a uma escala extraordinária,
equiparando a sua colecção às grandes colecções particulares contemporâneas”,
refere o especialista, que acrescenta que “Gulbenkian terá pensado, como
Mellon, no “seu museu”, pois, como refere no fim da vida a John Walker, a casa
da Avenue d’Iéna foi concebida para ser esse museu, ainda que nunca tenha
sido”. Sabe-se também que para o filantropo arménio a ideia de ter “um lugar
para a coleção só ganha mais força a partir da década de 1930, sobretudo a
partir de 1936, quando núcleos da coleção deixam o ambiente da casa e viajam
para o British Museum e a National Gallery, em Londres”.
De
entre as muitas aquisições feitas por Gulbenkian, algumas assumem-se de visita
imperdível, em especial as que se encontram no Museu Calouste Gulbenkian, em
concreto na sala dedicada à pintura do século XVII. Dessas, João Carvalho Dias destaca “os dois
Rembrandts ou o Retrato de Helena Fourment, de Rubens. Em finais de junho
(agora o espaço está em obras) recomendo o itinerário pela galeria do século
XVIII, onde somos recebidos pelas duas pinturas de Hubert Robert alusivas a
Versalhes, e, mesmo no fundo da galeria, o espaço dedicado à ourivesaria, onde
encontramos muitas das peças provenientes das Coleções Imperiais Russas”.
No
próximo episódio do podcast Only the Best, Rui Ramos promete uma nova
viagem pela coleção de Gulbenkian, “não apenas para falar sobre das obras de
arte, mas da casa de Paris onde muitas estiveram, para assim descobrir como é
que Calouste Gulbenkian vivia com a sua coleção”.
CULTURA FUNDAÇÃO
CALOUSTE GULBENKIAN HISTÓRIA ARTE
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