Com o acalentar dos sonhos que comandam a
vida, como já o afirmava o nosso Gedeão.
Mas também redundam em pesadelo, verso e reverso da mesma moeda, e assim
andamos nós constantemente construindo e desfazendo, tanto no capítulo das
ideologias como no das construções físicas, estas mais facilmente arrasáveis do
que aquelas, como se comprova hoje, lá pela Ucrânia, que não tem pruridos de
desenraizamentos, ao que parecia, mas de enraizamento nacionalista bem forte, e
perdeu. E “o mundo pula e avança” sempre, nestes desconchavos. Um bom trabalho
de Patrícia Fernandes não sobre destruidores e destruídos,
mais na ordem do dia, mas sobre desenraizados e enraizados, afinal até em
parte justificativos dos primeiros, os enraizados do calibre de Putin,
absolutamente repudiando decisões aparentemente justas de outros que também
querem ser enraizados, mas que acabam destruídos. E talvez nem sejam os únicos,
o Putin do enraizamento máximo, cada vez mais o expandindo para cá dos Urais,
sem querer saber desse globalismo amoroso dos desenraizados segundo o último
modelo político, que tanto tem perturbado as sociedades ocidentais, segundo
descreve PF, o globalismo putinesco sendo de calibre
diverso, mais de raiz nacionalista, é bom de ver. Pelo menos para alguns, os
mais despeitados – ou aprumados no enraizamento descrito pela jornalista,
apoiada na sua fonte inspiradora - David Goodhart.
A revolta dos enraizados
OBSERVADOR, 02 mai
2022
Correspondendo a somente 25% da
sociedade inglesa, os desenraizados têm imposto hegemonicamente a sua
ideologia. Desvalorizando a identidade nacional, estão muito próximos da agenda
globalista.
PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho OBSERVADOR, 02
mai 2022
1Enraizados e desenraizados
Um
autor que continua inexplicavelmente por traduzir em Portugal é o jornalista
inglês David
Goodhart, um dos
intelectuais mais influentes no espaço público inglês. Nas últimas duas
décadas, Goodhart fez um percurso cada vez mais comum
nos países anglo-saxónicos: embora se tivesse considerado sempre de
esquerda, as
contradições de uma esquerda cada vez mais progressista levaram-no a reposicionar-se
no espectro político. Em artigo de
2017, “Why I left my liberal London tribe”,
Goodhart diz-nos que essa inflexão se iniciou em 2004, com o ensaio “Too diverse?”, no qual reflectia sobre as políticas
demasiado amplas de imigração adoptadas no Reino Unido, que, enquadradas num
princípio multiculturalista, colocavam sob forte tensão os valores de
diversidade e solidariedade. Acusado de racismo pela sua tribo liberal, Goodhart
foi-se tornando cada vez mais crítico de uma esquerda que era incapaz de reflectir
sobre os problemas que resultavam das suas propostas políticas e que a
afastavam, progressivamente, da vida real das pessoas, em particular da “working
class” inglesa, eleitores tradicionais do Partido Trabalhista.
A
partir desse momento, Goodhart foi reflectindo sobre os impactos das
políticas globalistas, cuja agenda resulta na crença de que a globalização é um fenómeno irremediável das
sociedades contemporâneas pelo que inevitavelmente temos de ceder perante a
diversidade, o multiculturalismo, a perda de identidade, a imparável mudança. O resultado dessas reflexões foi a publicação, em
2017, do livro The road to somewhere, entendido
em Inglaterra como fundamental para a compreensão dos dois acontecimentos
políticos que marcaram 2016: o Brexit
e a eleição de Donald Trump. Vejamos qual é o seu contributo.
De
acordo com Goodhart, a sociedade inglesa tem vindo a assistir, nas últimas
duas décadas, a uma nova e crescente divisão que está a substituir a
tradicional dicotomia entre esquerda e direita. Essa nova divisão seria entre aqueles que o autor
designa como somewheres
e aqueles que designa como anywheres –
em português, algo como “de
algures” e “de nenhures”,
embora prefiramos falar em “enraizados” e “desenraizados”.
Comecemos pelos segundos. Os desenraizados corresponderiam a um grupo mais jovem e geralmente com
formação universitária, que se apresentam como cosmopolitas e abertos à
diferença e à mudança. No
contexto inglês, são aqueles que saíram de casa para estudar na universidade e
não regressaram, passando a considerar-se cidadãos do mundo, sem grandes raízes
comunitárias. Em sentido
oposto, os enraizados
preservam essas raízes, pelo que o
fator de identidade, em especial a nacional, é fundamental para a sua
mundividência. São
também mais velhos e geralmente sem formação universitária, sentindo-se
menos confortáveis com uma sociedade crescentemente cosmopolita e na qual a
diferença se sobrepõe ao que é comum. São
socialmente mais conservadores, pelo que temem o ritmo de mudança imparável que
marca a ideologia dos desenraizados.
Correspondendo a somente 25% da
sociedade inglesa, os desenraizados têm imposto hegemonicamente a sua ideologia. Desvalorizando a identidade nacional, estão muito
próximos da agenda globalista, considerando que, por regra, os interesses
globais devem prevalecer sobre os interesses nacionais. Votaram maioritariamente Remain. Já os enraizados representam a maioria da sociedade (pouco acima dos 50%) e tendem a sentir que as suas
ideias e preocupações não foram reflectidas pelas políticas das últimas
décadas. Sabendo constituir a maioria da população, sentem-se
subrepresentados ou mesmo silenciados no espaço público, pelo facto de as suas
preocupações serem desvalorizadas pelas elites políticas, que preferem destacar
a barbaridade das suas ideias a ouvir as suas reivindicações. O referendo permitiu-lhes
um grito de revolta: o Brexit foi o resultado.
2As eleições francesas
A
análise de Goodhart centra-se no contexto britânico, mas pode ser
facilmente extrapolada para os Estados
Unidos, se
considerarmos como Donald
Trump venceu as
eleições de 2016 com os votos dos chamados perdedores da globalização. Isto significa que não podemos desprezar a dimensão
económica deste novo antagonismo: apesar
de a divisão entre enraizados e desenraizados superar a tradicional dicotomia
esquerda e direita, isso não significa uma desvalorização das condições
económicas. O que acontece é que elas são
reinterpretadas a uma nova luz,
filtradas pela identidade nacional e pela crítica à política globalista que
está para lá do controlo democrático das populações. As recentes eleições
francesas são
representativas desta alteração, mostrando a pertinência da dicotomia
interpretativa de Goodhart.
A
existência de uma França dividida tem sido notada por vários autores,
nomeadamente em Portugal. A verdade é que, à
medida que as tensões do projecto globalista se tornam mais evidentes, a nova dicotomia espalha-se pelo ocidente, tornando
obsoleta a velha dicotomia. Ainda assim,
o vocabulário que usamos continua agarrado às velhas ideias, impedindo-nos
de compreender o que está a acontecer. Pensemos na utilização da expressão
“extrema-direita” para referirmos o projeto político de Marine Le Pen: se há duas
décadas ainda faria sentido recorrer ao termo para representar as ideias da
Frente Nacional, os últimos anos trouxeram uma mudança de tal ordem que
mantermos esse uso nos impede de compreender adequadamente a realidade francesa. Clarifiquemos esta posição: não é que as ideias do
Rassemblement National não sejam de extrema-direita se usarmos o modo de
pensar do final do século XX, em que havia um forte consenso ao centro e as
ideias que saíam desse centro eram consideradas como estando nos extremos
(fosse à direita ou à esquerda). Mas as
sociedades ocidentais mudaram de tal forma que esses termos carecem agora de
rigor terminológico.
Em
que consistiu essa mudança? O
final da segunda guerra mundial originou um forte consenso político em torno de
um conjunto de valores: globalização económica e social, diluição das
fronteiras, enfraquecimento da soberania, maior entrosamento entre os estados e
crença na diversidade, progresso e mudança – tudo
isto significaria uma espécie de paz perpétua, pelo menos no ocidente. Este
consenso pós-1945 moldou o cenário político da segunda metade do século XX,
determinando a adopção de políticas amplamente consensuais que permitiram
várias décadas de crescimento económico e desenvolvimento no ocidente.
Entretanto,
esse consenso político terminou. E terminou
em resultado não só das contradições internas que todos os projectos políticos
contêm, mas sobretudo pelo facto de as elites políticas, inebriadas pelas promessas
desse consenso, se terem afastado progressivamente das pessoas reais e da
compreensão dos impactos daquelas políticas na vida real. E tendo terminado, deixou de fazer sentido falar em extremos.
Ora, continuar a pensar o mundo a partir
daquele consenso não nos permite compreender adequadamente o que está a
acontecer. É essa incapacidade que se nota nos comentadores que,
também em Portugal, continuam a usar os velhos termos e os velhos consensos
para interpretar a nova realidade. Basta pensar na expectativa que muitos geraram de que
a proximidade a Putin enfraquecesse as posições de Viktor Orban e Marine Le Pen. Na verdade, um mundo marcado pelo signo da mudança,
constante e imparável, aparece à maioria da população como um produto de
permanente desordem e instabilidade – o que gera a necessidade psicológica de
um símbolo de autoridade e segurança que possa recuperar ordem e estabilidade. E isto torna-nos susceptíveis a reforçar a posição
daqueles que estão mais próximos dos novos homens fortes. A proximidade a Putin funciona, assim, como uma
vantagem e não como uma desvantagem.
A
incapacidade ou a falta de vontade de nos reposicionarmos perante a
nova realidade, que tornou
obsoleto o antigo vocabulário
político,
condenar-nos-á à mesma obsolescência.
3O que devem fazer as elites
políticas?
Com
o título The road to
somewehere, Goodhart pretende convocar uma missão política: aproximar enraizados e desenraizados na determinação
de um projecto comum por forma a diminuir a tribalização e antagonismo das
sociedades actuais. E
considerando a hegemonia política dos desenraizados, essa aproximação
terá de ser feita com a consideração das preocupações e reivindicações dos
enraizados na agenda política: estes devem ser ouvidos e não tratados
como bárbaros. É o facto
de as elites políticas não o fazerem que tem empurrado os enraizados para projectos
populistas, que prometem à maioria recuperar a sua voz, garantindo-lhes
controlo democrático e o regresso a um estado de estabilidade e ordem.
No entanto, as elites políticas têm
sido pouco perspicazes nesta avaliação: no Reino Unido, a opção Leave
foi permanentemente apontada como irracional e
resultado de ignorância; nos Estados Unidos,
os que elegeram Trump foram
acusados de racismo e xenofobia; em França, os apoiantes de Marine Le
Pen foram desclassificados como sendo de
extrema-direita. Ora, esta
reacção não só é profundamente antidemocrática, como se limita a reforçar o
sentimento de silenciamento no espaço público e de afastamento do poder
político. Limita-se
a aprofundar a já profunda crise democrática que marca os países ocidentais.
Infelizmente, em Portugal, as elites
políticas repetem estes maus exemplos.
Temos, por um lado, os discursos e intervenções do Presidente da Assembleia da República, que
promovem uma desconsideração permanente de um projeto político que foi a
terceira força política mais votada nas últimas eleições legislativas. Apesar de prometer ouvir democraticamente
todos os portugueses, o que Augusto
Santos Silva tem feito é
delimitar aquilo que, do seu ponto de vista, é admissível dizer-se e sentir-se no espaço público. Mas notemos igualmente as declarações do Presidente da República após a vitória de Emmanuel Macron: em
absoluto desrespeito pelos cidadãos franceses que votaram em Le Pen, Marcelo Rebelo de Sousa
acusou-os de xenofobia. Podemos
reflectir sobre o sentido de um Presidente fazer acusações deste tipo a
cidadãos de outro estado, mas o mais
importante talvez seja perguntar: para que caminho democrático nos querem levar
as elites políticas que recusam ouvir uma parte cada vez maior da população? Professora
da Universidade da Beira Interior
POLÍTICA FRANÇA
EUROPA
MUNDO FILOSOFIA POLÍTICA
COMENTÁRIOS:
Francisco Tavares de Almeida: A profª Patrícia Fernandes continua a
consolidar-se como uma cronista de referência. Será interessante observar onde
se refugiarão ou onde se entrincheirarão os anywheres agora
que a agressão russa feriu gravemente o globalismo. E não me canso de repetir que,
sendo ambos flores que não se cheiram, entre um Viktor Orbán quq proíbe a
ideologia multigénero nas escolas e a restringe nos "media" e um
António Costa que escolhe para ministro da Educação um secretário de Estado
activamente empenhado nessa ideologia, eu não hesitaria um segundo a preferir o
primeiro. Ricardo
Horta: Excelente artigo! bento guerra: Os meios tecnológicos de
comunicação actuais convidam ao "desenraizamento", sendo a
globalização inevitável. Depois, há factores definitivos, grupos próximos, condições
e conforto de vida. Por isto, contesto aqueles que se batem pelo afastamento e
com complexos de superioridade João Floriano: O texto é excelente e muito
elucidativo. Achei muito interessante a informação sobre somewheres e anywheres
, enraizados e desenraizados, ainda que me pareçam conceitos um tanto vagos.
Apreciei especialmente a aplicação destes termos ao caso francês e sobretudo
português. Poderão ser tema de futuros desenvolvimentos. José Dias: Subscrevo na íntegra e
envergonha-me que as 2 figuras de proa do Regime optem por dividir no lugar de
unir e não hesitem em tomar posições - no exercício do cargo e logo em
representação do Estado - em relação a questões internas de Estados soberanos! afonso moreira:
Desde há muito
que as ditas elites se autoreproduzem nos mesmos locais e pelos mesmos métodos
(universidades, etc.) e não frequentam os mesmos sítios das diversas
"classes" dos povos. Obrigado pelo artigo. Américo
Silva: As maiorias
votam nas ideologias, liberal, social, autoritária, comunista, nacionalista e
outras, as minorias, globalismo, multiculturalismo, feminismo, islamismo, e
outras, votam por conveniência, daí a maior flexibilidade no tempo,
consequência, e uniformidade no momento, e as elites, alta finança, Bushes,
Clintons, Soros e outros, compram os políticos feitos, ou, na falta destes,
fazem-nos. Todos são mais ou menos globalistas, só que as elites chegaram primeiro, e
querem um globalismo que lhes permita dominar o mundo. Daí fomentarem a
uniformidade regional, a invasão da europa e estados unidos por ilegais,
abolição das fronteiras, combate ao nacionalismo na Hungria e outros, e a
uniformidade mundial, domínio da Rússia, China, Irão e outros.
Mas as elites
já não querem um banco mundial emissor, independente de governos, porque as
ferramentas de poder são principalmente o dólar, os exércitos USA/Nato, os
acordos enviesados de comércio, o domínio das fontes de energia, as grandes
multinacionais, as instituições como o TPI, as ONG, o FMI, e mesmo a infiltrada
ONU, e outros. José Boto: Parabéns Patrícia Fernandes,
pelo excelente tema, coloca o dedo na ferida, e abordagem muito lúcida. A
tradicional divisão da sociedade em esquerda e direita está totalmente
ultrapassada, o contexto e as necessidades da sociedade evoluíram, apenas
alguns políticos e governantes é que não, estigmatizando uma parte da sociedade
por não se sentir representada por estes. Duarte Correia:
Os cronistas
Patrícia Fernandes e Nogueira Pinto são actualmente, no Observador, os que, com
mais independência e rigor (e honestidade) intelectual e conceptual,
problematizam os temas de que se ocupam. Amando Marques: Faltou aqui a parte dos
globalistas estarem reféns de uma agenda da extrema-esquerda que se confundirem
com progressistas, que e a agenda identitária. Os desenraizados estão enraizados
no seu culto Woke na interacção social que mais lhes apraz, sejam BLM, LGBT ou
mesmo ecologia radical.
Carlos Silva: É complicado cara Patrícia. E é deveras complicado, quando
alguns "enraizados", ainda andam a suspirar pela "Raiz de
Cabinda". Não é nada fácil!
Dr. Feelgood: O melhor ficou para o fim dispensando-se assim o longo
intróito justificativo. De facto, essas personagens são absolutamente
lamentáveis e exemplos claríssimos de antidemocratas e peso as minhas palavras.
Só aceitam o jogo se forem os deles a ganhar, os outros são descartáveis.
Hão-de morrer de remorsos, se a isso conseguirem alçar.
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