segunda-feira, 2 de maio de 2022

As voltas que o mundo dá


Com o acalentar dos sonhos que comandam a vida, como já o afirmava o nosso Gedeão. Mas também redundam em pesadelo, verso e reverso da mesma moeda, e assim andamos nós constantemente construindo e desfazendo, tanto no capítulo das ideologias como no das construções físicas, estas mais facilmente arrasáveis do que aquelas, como se comprova hoje, lá pela Ucrânia, que não tem pruridos de desenraizamentos, ao que parecia, mas de enraizamento nacionalista bem forte, e perdeu. E “o mundo pula e avança” sempre, nestes desconchavos. Um bom trabalho de Patrícia Fernandes não sobre destruidores e destruídos, mais na ordem do dia, mas sobre desenraizados e enraizados, afinal até em parte justificativos dos primeiros, os enraizados do calibre de Putin, absolutamente repudiando decisões aparentemente justas de outros que também querem ser enraizados, mas que acabam destruídos. E talvez nem sejam os únicos, o Putin do enraizamento máximo, cada vez mais o expandindo para cá dos Urais, sem querer saber desse globalismo amoroso dos desenraizados segundo o último modelo político, que tanto tem perturbado as sociedades ocidentais, segundo descreve PF, o globalismo putinesco sendo de calibre diverso, mais de raiz nacionalista, é bom de ver. Pelo menos para alguns, os mais despeitados – ou aprumados no enraizamento descrito pela jornalista, apoiada na sua fonte inspiradora  - David Goodhart.

A revolta dos enraizados

OBSERVADOR, 02 mai 2022

Correspondendo a somente 25% da sociedade inglesa, os desenraizados têm imposto hegemonicamente a sua ideologia. Desvalorizando a identidade nacional, estão muito próximos da agenda globalista.

PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho                               OBSERVADOR, 02 mai 2022

1Enraizados e desenraizados

Um autor que continua inexplicavelmente por traduzir em Portugal é o jornalista inglês David Goodhart, um dos intelectuais mais influentes no espaço público inglês. Nas últimas duas décadas, Goodhart fez um percurso cada vez mais comum nos países anglo-saxónicos: embora se tivesse considerado sempre de esquerda, as contradições de uma esquerda cada vez mais progressista levaram-no a reposicionar-se no espectro político. Em artigo de 2017, “Why I left my liberal London tribe”, Goodhart diz-nos que essa inflexão se iniciou em 2004, com o ensaio “Too diverse?”, no qual reflectia sobre as políticas demasiado amplas de imigração adoptadas no Reino Unido, que, enquadradas num princípio multiculturalista, colocavam sob forte tensão os valores de diversidade e solidariedade. Acusado de racismo pela sua tribo liberal, Goodhart foi-se tornando cada vez mais crítico de uma esquerda que era incapaz de reflectir sobre os problemas que resultavam das suas propostas políticas e que a afastavam, progressivamente, da vida real das pessoas, em particular da “working class” inglesa, eleitores tradicionais do Partido Trabalhista.

A partir desse momento, Goodhart foi reflectindo sobre os impactos das políticas globalistas, cuja agenda resulta na crença de que a globalização é um fenómeno irremediável das sociedades contemporâneas pelo que inevitavelmente temos de ceder perante a diversidade, o multiculturalismo, a perda de identidade, a imparável mudança. O resultado dessas reflexões foi a publicação, em 2017, do livro The road to somewhere, entendido em Inglaterra como fundamental para a compreensão dos dois acontecimentos políticos que marcaram 2016: o Brexit e a eleição de Donald Trump. Vejamos qual é o seu contributo.

De acordo com Goodhart, a sociedade inglesa tem vindo a assistir, nas últimas duas décadas, a uma nova e crescente divisão que está a substituir a tradicional dicotomia entre esquerda e direita. Essa nova divisão seria entre aqueles que o autor designa como somewheres e aqueles que designa como anywheres – em português, algo como “de algures” e “de nenhures”, embora prefiramos falar em “enraizados” e “desenraizados”.  Comecemos pelos segundos. Os desenraizados corresponderiam a um grupo mais jovem e geralmente com formação universitária, que se apresentam como cosmopolitas e abertos à diferença e à mudança. No contexto inglês, são aqueles que saíram de casa para estudar na universidade e não regressaram, passando a considerar-se cidadãos do mundo, sem grandes raízes comunitárias. Em sentido oposto, os enraizados preservam essas raízes, pelo que o fator de identidade, em especial a nacional, é fundamental para a sua mundividência. São também mais velhos e geralmente sem formação universitária, sentindo-se menos confortáveis com uma sociedade crescentemente cosmopolita e na qual a diferença se sobrepõe ao que é comum. São socialmente mais conservadores, pelo que temem o ritmo de mudança imparável que marca a ideologia dos desenraizados.

Correspondendo a somente 25% da sociedade inglesa, os desenraizados têm imposto hegemonicamente a sua ideologia. Desvalorizando a identidade nacional, estão muito próximos da agenda globalista, considerando que, por regra, os interesses globais devem prevalecer sobre os interesses nacionais. Votaram maioritariamente Remain. Já os enraizados representam a maioria da sociedade (pouco acima dos 50%) e tendem a sentir que as suas ideias e preocupações não foram reflectidas pelas políticas das últimas décadas. Sabendo constituir a maioria da população, sentem-se subrepresentados ou mesmo silenciados no espaço público, pelo facto de as suas preocupações serem desvalorizadas pelas elites políticas, que preferem destacar a barbaridade das suas ideias a ouvir as suas reivindicações. O referendo permitiu-lhes um grito de revolta: o Brexit foi o resultado.

2As eleições francesas

A análise de Goodhart centra-se no contexto britânico, mas pode ser facilmente extrapolada para os Estados Unidos, se considerarmos como Donald Trump venceu as eleições de 2016 com os votos dos chamados perdedores da globalização. Isto significa que não podemos desprezar a dimensão económica deste novo antagonismo: apesar de a divisão entre enraizados e desenraizados superar a tradicional dicotomia esquerda e direita, isso não significa uma desvalorização das condições económicas. O que acontece é que elas são reinterpretadas a uma nova luz, filtradas pela identidade nacional e pela crítica à política globalista que está para lá do controlo democrático das populações. As recentes eleições francesas são representativas desta alteração, mostrando a pertinência da dicotomia interpretativa de Goodhart.

A existência de uma França dividida tem sido notada por vários autores, nomeadamente em Portugal. A verdade é que, à medida que as tensões do projecto globalista se tornam mais evidentes, a nova dicotomia espalha-se pelo ocidente, tornando obsoleta a velha dicotomia. Ainda assim, o vocabulário que usamos continua agarrado às velhas ideias, impedindo-nos de compreender o que está a acontecer. Pensemos na utilização da expressão “extrema-direitapara referirmos o projeto político de Marine Le Pen: se há duas décadas ainda faria sentido recorrer ao termo para representar as ideias da Frente Nacional, os últimos anos trouxeram uma mudança de tal ordem que mantermos esse uso nos impede de compreender adequadamente a realidade francesa. Clarifiquemos esta posição: não é que as ideias do Rassemblement National não sejam de extrema-direita se usarmos o modo de pensar do final do século XX, em que havia um forte consenso ao centro e as ideias que saíam desse centro eram consideradas como estando nos extremos (fosse à direita ou à esquerda). Mas as sociedades ocidentais mudaram de tal forma que esses termos carecem agora de rigor terminológico.

Em que consistiu essa mudança? O final da segunda guerra mundial originou um forte consenso político em torno de um conjunto de valores: globalização económica e social, diluição das fronteiras, enfraquecimento da soberania, maior entrosamento entre os estados e crença na diversidade, progresso e mudançatudo isto significaria uma espécie de paz perpétua, pelo menos no ocidente. Este consenso pós-1945 moldou o cenário político da segunda metade do século XX, determinando a adopção de políticas amplamente consensuais que permitiram várias décadas de crescimento económico e desenvolvimento no ocidente.

Entretanto, esse consenso político terminou. E terminou em resultado não só das contradições internas que todos os projectos políticos contêm, mas sobretudo pelo facto de as elites políticas, inebriadas pelas promessas desse consenso, se terem afastado progressivamente das pessoas reais e da compreensão dos impactos daquelas políticas na vida real. E tendo terminado, deixou de fazer sentido falar em extremos.

Ora, continuar a pensar o mundo a partir daquele consenso não nos permite compreender adequadamente o que está a acontecer. É essa incapacidade que se nota nos comentadores que, também em Portugal, continuam a usar os velhos termos e os velhos consensos para interpretar a nova realidade. Basta pensar na expectativa que muitos geraram de que a proximidade a Putin enfraquecesse as posições de Viktor Orban e Marine Le Pen. Na verdade, um mundo marcado pelo signo da mudança, constante e imparável, aparece à maioria da população como um produto de permanente desordem e instabilidade – o que gera a necessidade psicológica de um símbolo de autoridade e segurança que possa recuperar ordem e estabilidade. E isto torna-nos susceptíveis a reforçar a posição daqueles que estão mais próximos dos novos homens fortes. A proximidade a Putin funciona, assim, como uma vantagem e não como uma desvantagem.

A incapacidade ou a falta de vontade de nos reposicionarmos perante a nova realidade, que tornou obsoleto o antigo vocabulário político, condenar-nos-á à mesma obsolescência.

3O que devem fazer as elites políticas?

Com o título The road to somewehere, Goodhart pretende convocar uma missão política: aproximar enraizados e desenraizados na determinação de um projecto comum por forma a diminuir a tribalização e antagonismo das sociedades actuais. E considerando a hegemonia política dos desenraizados, essa aproximação terá de ser feita com a consideração das preocupações e reivindicações dos enraizados na agenda política: estes devem ser ouvidos e não tratados como bárbaros. É o facto de as elites políticas não o fazerem que tem empurrado os enraizados para projectos populistas, que prometem à maioria recuperar a sua voz, garantindo-lhes controlo democrático e o regresso a um estado de estabilidade e ordem.

No entanto, as elites políticas têm sido pouco perspicazes nesta avaliação: no Reino Unido, a opção Leave foi permanentemente apontada como irracional e resultado de ignorância; nos Estados Unidos, os que elegeram Trump foram acusados de racismo e xenofobia; em França, os apoiantes de Marine Le Pen foram desclassificados como sendo de extrema-direita. Ora, esta reacção não só é profundamente antidemocrática, como se limita a reforçar o sentimento de silenciamento no espaço público e de afastamento do poder político. Limita-se a aprofundar a já profunda crise democrática que marca os países ocidentais.

Infelizmente, em Portugal, as elites políticas repetem estes maus exemplos. Temos, por um lado, os discursos e intervenções do Presidente da Assembleia da República, que promovem uma desconsideração permanente de um projeto político que foi a terceira força política mais votada nas últimas eleições legislativas. Apesar de prometer ouvir democraticamente todos os portugueses, o que Augusto Santos Silva tem feito é delimitar aquilo que, do seu ponto de vista, é admissível dizer-se e sentir-se no espaço público. Mas notemos igualmente as declarações do Presidente da República após a vitória de Emmanuel Macron: em absoluto desrespeito pelos cidadãos franceses que votaram em Le Pen, Marcelo Rebelo de Sousa acusou-os de xenofobia. Podemos reflectir sobre o sentido de um Presidente fazer acusações deste tipo a cidadãos de outro estado, mas o mais importante talvez seja perguntar: para que caminho democrático nos querem levar as elites políticas que recusam ouvir uma parte cada vez maior da população?                         Professora da Universidade da Beira Interior

POLÍTICA   FRANÇA    EUROPA    MUNDO    FILOSOFIA POLÍTICA

COMENTÁRIOS:

Francisco Tavares de Almeida: A profª Patrícia Fernandes continua a consolidar-se como uma cronista de referência. Será interessante observar onde se refugiarão ou onde se entrincheirarão os anywheres agora que a agressão russa feriu gravemente o globalismo. E não me canso de repetir que, sendo ambos flores que não se cheiram, entre um Viktor Orbán quq proíbe a ideologia multigénero nas escolas e a restringe nos "media" e um António Costa que escolhe para ministro da Educação um secretário de Estado activamente empenhado nessa ideologia, eu não hesitaria um segundo a preferir o primeiro.           Ricardo Horta: Excelente artigo!          bento guerra: Os meios tecnológicos de comunicação actuais convidam ao "desenraizamento", sendo a globalização inevitável. Depois, há factores definitivos, grupos próximos, condições e conforto de vida. Por isto, contesto aqueles que se batem pelo afastamento e com complexos de superioridade           João Floriano: O texto é excelente e muito elucidativo. Achei muito interessante a informação sobre somewheres e anywheres , enraizados e desenraizados, ainda que me pareçam conceitos um tanto vagos. Apreciei especialmente a aplicação destes termos ao caso francês e sobretudo português. Poderão ser tema de futuros desenvolvimentos.            José Dias: Subscrevo na íntegra e envergonha-me que as 2 figuras de proa do Regime optem por dividir no lugar de unir e não hesitem em tomar posições - no exercício do cargo e logo em representação do Estado - em relação a questões internas de Estados soberanos!           afonso moreira: Desde há muito que as ditas elites se autoreproduzem nos mesmos locais e pelos mesmos métodos (universidades, etc.) e não frequentam os mesmos sítios das diversas "classes" dos povos. Obrigado pelo artigo.  Américo Silva: As maiorias votam nas ideologias, liberal, social, autoritária, comunista, nacionalista e outras, as minorias, globalismo, multiculturalismo, feminismo, islamismo, e outras, votam por conveniência, daí a maior flexibilidade no tempo, consequência, e uniformidade no momento, e as elites, alta finança, Bushes, Clintons, Soros e outros, compram os políticos feitos, ou, na falta destes, fazem-nos. Todos são mais ou menos globalistas, só que as elites chegaram primeiro, e querem um globalismo que lhes permita dominar o mundo. Daí fomentarem a uniformidade regional, a invasão da europa e estados unidos por ilegais, abolição das fronteiras, combate ao nacionalismo na Hungria e outros, e a uniformidade mundial, domínio da Rússia, China, Irão e outros. Mas as elites já não querem um banco mundial emissor, independente de governos, porque as ferramentas de poder são principalmente o dólar, os exércitos USA/Nato, os acordos enviesados de comércio, o domínio das fontes de energia, as grandes multinacionais, as instituições como o TPI, as ONG, o FMI, e mesmo a infiltrada ONU, e outros.            José Boto: Parabéns Patrícia Fernandes, pelo excelente tema, coloca o dedo na ferida, e abordagem muito lúcida. A tradicional divisão da sociedade em esquerda e direita está totalmente ultrapassada, o contexto e as necessidades da sociedade evoluíram, apenas alguns políticos e governantes é que não, estigmatizando uma parte da sociedade por não se sentir representada por estes.          Duarte Correia: Os cronistas Patrícia Fernandes e Nogueira Pinto são actualmente, no Observador, os que, com mais independência e rigor (e honestidade) intelectual e conceptual, problematizam os temas de que se ocupam. Amando Marques: Faltou aqui a parte dos globalistas estarem reféns de uma agenda da extrema-esquerda que se confundirem com progressistas, que e a agenda identitária. Os desenraizados estão enraizados no seu culto Woke na interacção social que mais lhes apraz, sejam BLM, LGBT ou mesmo ecologia radical.            Carlos Silva: É complicado cara Patrícia. E é deveras complicado, quando alguns "enraizados", ainda andam a suspirar pela "Raiz de Cabinda". Não é nada fácil!            Dr. Feelgood: O melhor ficou para o fim dispensando-se assim o longo intróito justificativo. De facto, essas personagens são absolutamente lamentáveis e exemplos claríssimos de antidemocratas e peso as minhas palavras. Só aceitam o jogo se forem os deles a ganhar, os outros são descartáveis. Hão-de morrer de remorsos, se a isso conseguirem alçar.

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