sexta-feira, 27 de maio de 2022

Tempos, costumes


A exclamação de Cícero serve para todos os tempos, afinal. Muitos bons comentadores ajudam a decifrar o texto de Paulo Tunhas, com argumentos de filosofia e história - e psicologia, sempre pendente -que são igualmente lição para todos, os que gostamos de nos entreter com exclamações de indignação e repúdio - com que Putin e os seus adeptos, aliás, se regozijam sem rebuço, provando bem a tal farsa acerca da igualdade de direitos e quejandos, dos seus liberalismos de pechisbeque.

O equívoco e o inequívoco

Os agressores tornam-se vítimas, obrigadas a agir, e as vítimas agressores, disfarçando a sua maléfica causalidade sob as vestes hipócritas. Foi assim no 11 de Setembro. Voltou a sê-lo agora.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 26 mai 2022, 00:1946

Dia 24 de Fevereiro tudo mudou. Andávamos muito ocupados – eu, pelo menos, andava – com os delírios da wokeness que se manifestavam a propósito de tudo e mais alguma coisa, com o seu cortejo de “cancelamentos” e proibições sem fim. Podíamos chorar, como Heraclito, ou rir, como Demócrito, para recorrer a um topos clássico, mas era difícil ser verdadeiramente indiferente às torceduras que a linguagem, por exemplo, sofria às mãos da nova classe de tutores morais que nos caiu em cima. De repente, tudo isso passou para um longínquo segundo plano. O espectáculo da brutalidade da invasão russa da Ucrânia e da estupidez daqueles que, face à guerra, simpatizam – à esquerda e à direita, convém sempre lembrar – com a autocracia de Putin e desprezam a heroicidade dos ucranianos, lembrou-nos uma divisão incomparavelmente mais profunda da sociedade. Se muito da wokeness nos faz pensar nas piores extravagâncias da “lei seca” nos Estados Unidos, a invasão russa recorda – por mais prudente que se seja em matéria de analogias históricas – a violência destruidora do nazismo e a adesão que este a muitos suscitou. Entre as duas coisas há um abismo sem fundo.

É o abismo entre o equívoco e o inequívoco. Não é suficientemente notado que o grosso do delírio do chamado “politicamente correcto” assenta em intuições que são essencialmente justas e que se podem em geral resumir no respeito pelos outros. É claro que, a partir dessas intuições, e apelando a alguns dos piores instintos humanos, muito evoluiu para a loucura sistemática, graças à propensão autoritária dos iluminados do costume, que nunca falham este género de coisas. Mas não é talvez errado ver nesta evolução mais uma manifestação – particularmente perversa, admito – daquilo que, em meados do século XIX, Tocqueville chamou “despotismo democrático”: uma igualdade minuciosamente regulamentada por um Estado tutelar. Há, portanto, algo de equívoco na wokeness com que temos de conviver: ela simultaneamente assenta em intuições morais justas e condu-las à insânia possível em democracia.

Em contrapartida, nada há de equívoco na brutalidade de Putin. Aqui não é possível rir como Demócrito. As imagens que as televisões nos transmitem – e devemos sem dúvida agradecer-lhes toda a cobertura da guerra – são a prova viva do sofrimento sem nome de milhões, vítimas do sem-sentido da pura vontade de dominação e extermínio. Repito: nada de equívoco aqui. Tudo é claro e nítido aos olhos de todos.

De todos? Nem de todos. A capacidade de não ver, possível pelos costumeiros artifícios das teorias conspiratórias e pelo fascínio pelo poder bruto, opera milagres. Há quem, de facto, consiga não ver. Não ver para não crer. Ou, melhor: não crer para não ver. Porque há uma fina teia de ideias que se constrói, destinada a tornar opaco o brilho da evidência, adaptando à brutalidade da guerra a brutalidade do pensamento.

E os casos mais interessantes e assustadores deste fenómeno patológico não são os dos habituais opinadores que fazem a tradicional viagem para Sirius, onde o mau cheiro dos cadáveres não os incomoda, e elaboram elevadas considerações geo-estratégicas que lhes permitem inverter a posição das vítimas e dos agressores. Os agressores tornam-se vítimas, obrigadas a agir por necessidade, e as vítimas agressores, disfarçando a sua maléfica causalidade sob as vestes hipócritas de um sofrimento encenado. Foi assim – lembram-se?no 11 de Setembro. Voltou a sê-lo agora. O esquema é sempre o mesmo, cumprindo a mesmíssima função: por detrás do visível enganador, há um invisível que, apenas ele, garante a plena inteligibilidade do que acontece. E eles vêem o invisível. Todos os conhecem e daí não vem qualquer surpresa, a não ser aquela que o patético sempre sugere um pouco.

A verdadeira surpresa – pelo menos para mim – vem de outros lugares. Vem daqueles que, na solidão do seu espírito, apreciam a brutalidade, onde alucinam um antídoto contra a corrupção generalizada dos costumes que a wokenes teria trazido a este mundo. Há muita gente assim. O que para eles é equívoco não é a tal wokeness. Essa é inequívoca, já que todos os sinais da decadência moral se encontram nela inscritos. O que é equívoco é a própria guerra, que não pode, por definição, ser como nos aparece. O mecanismo de pensamento é muito semelhante ao dos primeiros, incluindo a dimensão conspiratória, só que menos elaborado: Putin, finalmente, combate a podridão moral que por cá grassa. E, no mínimo, merece o benefício da dúvida.

Uns e outros lançam alguma luz sobre o passado. Falei há pouco da analogia com a barbárie nazi e com a adesão que, mesmo fora da Alemanha, ela em muitos suscitou. Nestes três últimos meses, vejo algo de semelhante a esta última atitude. Não faltaram intelectuais para admirar e compreender a barbárie – como não faltam agora. E não faltaram pessoas comuns que, feridas pela solidão e o anonimato, a viram como uma vingança justa e redentora – como agora também não faltam. Assim, observando o caso presente, há uma luz, por mais ténue que seja, projectada sobre o passado. Uma luz que nos mostra como, por motivos diferentes, embora afins, o pior da natureza humana – a incapacidade de muita gente proceder, em momentos decisivos, à mais simples distinção entre o bem e o mal (é mesmo disso que se trata) – pode vir à tona.

Por mim, não tenho a mínima intenção de me converter ao grotesco da wokeness. Mas não a confundo, na equivocidade da sua génese, com o inequívoco horror da barbárie. E muito menos vejo na segunda um miraculoso antídoto para a primeira. Há vezes em que o espectáculo do sofrimento humano traz consigo uma evidência irrecusável que só a estupidez sabe não ver. E, mesmo sem ser particularmente dado a moralismos, consigo ainda espantar-me com a recusa de vária gente em aceitar a distinção entre o bem e o mal, mesmo quando ela é inequívoca e se oferece ao mais desprevenido olhar humano.

GUERRA NA UCRÂNIA  UCRÂNIA  EUROPA  MUNDO  POLITICAMENTE CORRETO   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

João Floriano: Dois dos grandes argumentos para justificar a bárbara invasão da Rússia na Ucrânia e o ataque injustificável a civis, tem sido por um lado a «ameaçadora» presença da NATO. Coitados dos russos que já estavam com dificuldades em respirar! É caso para perguntar quantos metros de terra russa foram invadidos por tanques estrangeiros. Que se saiba a operação especial de pacificação e limpeza de nazis tem funcionado apenas num sentido e são inúmeros os nazis que temos visto com gorro de pompons e ursinhos de peluche. O outro grande argumento para desculpar os crimes russos é lembrar o que aconteceu ou acontece noutros locais do mundo, onde a NATO e os americanos têm parte activa. Só não percebo o que andam aqui a fazer tantos defensores da escumalha de Putin. Deviam já estar a caminho do Donbass para combaterem ao lado dos russos e quiçá terem o mesmo final de várias altas patentes russas.  Mas como tal não vai acontecer, resta dizer que estes argumentos estão mais que gastos e já perderam prazo de validade.            André Silva: A única minoria que existe hoje, e que é vergonhosamente perseguida, malvista, ostracizada e desvalorizada, é precisamente quem construiu e mantém a funcionar tudo o que existe hoje no mundo e quem deu e dá tudo (inclusive quantas vezes a própria vida) pelos outros: os homens, na sua esmagadora maioria brancos e hetero. Mas um dia os homens (sim, homens) vão-se fartar desta palhaçada, de andarem com o mundo às costas, de se sacrificarem inclusive com a própria vida, tudo isto pelo nosso mundo, pelas mulheres e pelos filhos, só para receberem críticas, desprezo, vergonha e culpa. E quando se fartarem - e já esteve bem mais longe - é que vai ser o bonito. Mas que vai voltar ao seu devido lugar, isso de certeza, e tão cedo as palhaças e os palhaços da esquerda não levantam a voz. Isto se sequer depois disso sobrar algum ou alguma, que esperemos que não………..              Paulo Silva > V L: Hã? O quê?…. Porque não disse logo que os americanos são os culpados do 11 de Setembro, em vez de vir com perguntinhas de retórica acerca da relação do Iraque com a data fatídica?... Está a dizer que os americanos tinham uma bola de cristal? Quantas traições e traidores não estão na História? Os americanos combatiam o comunismo e o expansionismo soviético, e no processo tiveram vários aliados. Do lado dos soviéticos também aconteceu o mesmo. Ou acha que não?... O camarada Estaline até sabia que o nazi-fascista Hitler era uma tarântula que abominava os bolchevistas. Mas o que é que ele fez? Instruiu o Partido Comunista Alemão, por via do Komintern, para não fazer acordos com os sociais-democratas deixando assim caminho livre para os nazis ascenderem ao poder na Alemanha. Não satisfeito, uns anos depois assina o pacto germano-soviético com Hitler, com o fornecimento do esforço de guerra nazi. Também vai agora dizer que a culpa da invasão da URSS pela Alemanha nazi, é do camarada, e que ele tinha mais era que se deixar invadir?!...            V L > Paulo Silva: E depois foi a minha pessoa que encheu de perguntas retóricas, você até consegue responder às suas próprias questões.          Paulo Silva > V L :Pois foi. Consegui responder às minhas e às suas perguntas da forma que não esperava. A sua pessoa é que estava convencida que já sabia as respostas às suas perguntas. Mas estava equivocada, e não conseguiu refutar nada. O Iraque tem, (aquelas e outras), ligações ao 11 de Setembro, sim senhor, e traidores há muitos...          Paulo Silva: Caro articulista Paulo Tunhas, a decadência moral que Putin aponta do Ocidente infelizmente é uma realidade, mas isso não deve colocar ninguém em defesa do seu modus operandi anti-democrático e despótico. Mas falando de equívocos, que não haja equívocos. Se não fossem o anti-wokismo e a homofobia, (seja lá o que isso for), do sr. Putin, BE’s e quejandos amigos da wokeness dificilmente o colocariam na primeira linha dos culpados pela agressão à Ucrânia. Num primeiro momento de hesitação, entre a lealdade que devem ao seu anti-americanismo primário e a defesa do gayzismo, (as paixões tolhem), os apóstolos de Louçã estiveram a pender para a primeira, mas depois lá passaram à segunda opção. Zelensky e os ucranianos ganharam uns bons aliados da onça... Um exemplo sintomático do equivoco e inequívoco que resultam de ‘escolhas’ tácticas que advêm de um contexto, e de uma cultura, ou da falta dela, (ética).          advoga diabo: Estranho que um filósofo desconheça, ou, pior, finja desconhecer, o conceito da banalização do mal de Hannah Arendt. É exactamente isso que PT faz ao comparar terroristas com um país que em nome de boas razões, impedir a inapelável instalação de mísseis inimigos à porta contra o assinado em Minsk, age, mesmo se num beco sem saída, da pior das maneiras. Oxalá quem manda seja mais responsável.          José Tomás: Se concordo que a brutalidade imperialista de Putin não é antídoto para a “wokeness”, surpreende-me a ingenuidade do autor, quando assume que a génese “bem intencionada” da “wokeness” garante que esta não é igualmente brutal e perigosa (ainda que seja administrada de forma gradual e insidiosa, como o veneno). É que também o comunismo “assenta em intuições que são essencialmente justas” e o facto é que matou mais gente que a brutalidade imperialista de Hitler - sendo que, enquanto o nazismo se consumiu em 12 anos, 105 anos depois de Outubro, os regimes do "comunismo real" continuam a matar, torturar, prender, oprimir e censurar.           bento guerra: Com a pandemia e agora a guerra da Ucrânia e o isolamento da Rússia, estamos a viver a História,bem tempo real. Pode ser difícil ,mas é um privilégio           José Paulo C Castro: A capacidade de distinguir o Bem do Mal é inata quando não se introduz a subjetividade. A capacidade de distinguir o bem pessoal do Bem (e o mal dos outros do Mal) é que falha. Vai cruzar-se com uma noção básica de empatia, que costuma ser inversamente proporcional ao poder adquirido e ao nível de dependência do sujeito. Subjetividades de que só os mais felizes se libertam para ver o inequívoco. Já dizia o outro para incluir a circunstância no Eu... João Floriano > José Paulo C Castro: Excelente comentário. Como é praticamente impossível fugir à subjectividade (somos sujeitos moldados pelas nossas experiências e preferências), a distinção inequívoca entre Bem e Mal nunca será completamente isenta e objectiva . Não me lembro ao longo da minha vida de um momento em que a distinção entre Bem e Mal tenha sido tão complexa. Esta guerra/operação especial na Ucrânia é o maior exemplo.          João Floriano: No segundo parágrafo Paulo Tunhas diz-nos que na sua génese o wokeness assenta em princípios justos e humanitários. Assim é de facto: a defesa das minorias, da diferença, a luta pela igualdade de género, a definição sexual, a interpretação da História, a correcção de erros do passado, a autocrítica, são inicialmente ideias justas e humanistas. Deixam de o ser quando os extremismos se impõem, calam toda a sensatez e os defensores das bandeiras inicialmente justas se tornam ditadores, cancelando qualquer opinião diferente da sua, considerando perigosos inimigos quem se atreva a contestar, exorbitando os seus direitos e menorizando os direitos dos contestatários, tratando-os como mentecaptos, pobres de espírito e fonte de perfídia e maldade. É a ditadura do politicamente correcto mesmo quando se veja que se trata de um «totalmente incorrecto». Os extremismos são um dos grandes problemas dos nossos dias. Ama-se ou odeia-se apenas por percepção. O Outro é um ser idolatrado, a personificação da virtude e do Bem, um ícone da salvação da Humanidade (lembram-se da Greta que entretanto parece ter desaparecido e regressado ao seu planeta algures na Via Láctea?), ou ainda, e sempre por percepção, um velhaco repelente porque manifestou uma opinião que causou desagrado. A sensatez dos que querem fugir aos extremos é cada vez mais um bem raro. Por este caminho os sensatos vão resistir e acabar sós.             Francisco Assis: Aqueles que conciliam o apoio a Putin com a aversão ao “politicamente correcto” são os cultores de um pensamento reaccionário. Já no caso dos marxistas-leninistas estamos perante a auto-anulação da dimensão do juízo moral como é próprio de uma seita onde o indivíduo é apenas um meio através do qual se expressa uma Verdade invisível e totalizante. Os comunistas são simples bonecos do Grande Ventríloquo que determina o discurso que papagueiam com a desenvoltura das criaturas autómatas. O Grande Ventríloquo não passa de uma versão infantil e dogmática do velho marxismo…………..           Tito Alverca: Curioso que esta é capaz de ser a primeira vez em que não encontro qualquer aderência naquilo que o Paulo Tunhas escreve com a realidade, ampla e abertamente anti-woke e simultâneamente anti-Putin, que conheço e com que lido. Terá em mente algo muito diverso daquela que é a minha própria experiência.           Paulo Silva > Tito Alverca: Caro comentador, também me parece óbvio que a rejeição dupla, (de Putin e do wokismo), é maioritária entre as pessoas. Mas o autor não estabelece relações quantitativas. Apenas constata a existência de certas posições, tanto de um lado como do outro do espectro político, e critica-as. Por exemplo. Tunhas já era crítico dos delírios da wokeness antes da invasão, mas não decidiu apoiar a invasão só porque o sr. Putin também é anti-woke. Há quem o faça passando por cima da evidência da brutalidade de uma guerra.

 

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