A exclamação de Cícero serve para todos
os tempos, afinal. Muitos bons comentadores ajudam a decifrar o texto de Paulo Tunhas, com argumentos de filosofia e história -
e psicologia, sempre pendente -que são igualmente lição para todos, os que
gostamos de nos entreter com exclamações de indignação e repúdio - com que
Putin e os seus adeptos, aliás, se regozijam sem rebuço, provando bem a tal
farsa acerca da igualdade de direitos e quejandos, dos seus liberalismos de
pechisbeque.
O equívoco e o inequívoco
Os agressores tornam-se vítimas,
obrigadas a agir, e as vítimas agressores, disfarçando a sua maléfica
causalidade sob as vestes hipócritas. Foi assim no 11 de Setembro. Voltou a
sê-lo agora.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 26 mai
2022, 00:1946
Dia
24 de Fevereiro tudo mudou. Andávamos muito ocupados – eu, pelo menos, andava –
com os delírios da wokeness que se manifestavam a propósito de tudo e mais alguma
coisa, com o seu cortejo de “cancelamentos” e proibições sem fim. Podíamos
chorar, como Heraclito, ou rir, como Demócrito, para recorrer a um topos
clássico, mas era difícil ser verdadeiramente indiferente às torceduras que a
linguagem, por exemplo, sofria às mãos da nova classe de tutores morais que nos
caiu em cima. De repente,
tudo isso passou para um longínquo segundo plano. O espectáculo da brutalidade da invasão russa da
Ucrânia e da estupidez daqueles que, face à guerra, simpatizam – à esquerda e à
direita, convém sempre lembrar – com a autocracia de Putin e desprezam a
heroicidade dos ucranianos, lembrou-nos uma divisão incomparavelmente mais
profunda da sociedade. Se muito
da wokeness nos faz pensar nas piores extravagâncias da “lei seca” nos Estados
Unidos, a invasão russa recorda – por mais prudente que se seja em matéria de
analogias históricas – a violência destruidora do nazismo e a adesão que este a
muitos suscitou. Entre as duas coisas há um abismo sem fundo.
É
o abismo entre o equívoco e o inequívoco. Não
é suficientemente notado que o grosso do delírio do chamado “politicamente
correcto” assenta em intuições que são essencialmente justas e que se podem em
geral resumir no respeito
pelos outros. É claro que,
a partir dessas intuições, e apelando a alguns dos piores instintos humanos,
muito evoluiu para a loucura sistemática, graças
à propensão autoritária dos iluminados do costume, que nunca falham este género
de coisas. Mas não é
talvez errado ver nesta evolução mais uma manifestação – particularmente
perversa, admito – daquilo que, em
meados do século XIX, Tocqueville chamou “despotismo democrático”: uma igualdade minuciosamente regulamentada por um
Estado tutelar. Há,
portanto, algo de equívoco na wokeness com que temos de conviver: ela
simultaneamente assenta em intuições morais justas e condu-las à insânia
possível em democracia.
Em contrapartida, nada há de equívoco
na brutalidade de Putin. Aqui não é
possível rir como Demócrito. As imagens que as televisões nos transmitem – e
devemos sem dúvida agradecer-lhes toda a cobertura da guerra – são a prova viva
do sofrimento sem nome de milhões, vítimas do sem-sentido da pura vontade de
dominação e extermínio. Repito: nada de equívoco aqui. Tudo é claro e nítido
aos olhos de todos.
De
todos? Nem de todos. A
capacidade de não ver, possível pelos costumeiros artifícios das teorias
conspiratórias e pelo fascínio pelo poder bruto, opera milagres. Há quem, de facto, consiga não ver. Não ver para
não crer. Ou, melhor: não crer para não ver. Porque há uma fina teia de ideias
que se constrói, destinada a tornar opaco o brilho da evidência, adaptando à
brutalidade da guerra a brutalidade do pensamento.
E
os casos mais interessantes e assustadores deste fenómeno patológico não são os
dos habituais opinadores que fazem a tradicional viagem para Sirius, onde o mau
cheiro dos cadáveres não os incomoda, e elaboram elevadas considerações
geo-estratégicas que lhes permitem inverter a posição das vítimas e dos
agressores. Os agressores tornam-se vítimas, obrigadas a agir por
necessidade, e as vítimas agressores, disfarçando a sua maléfica causalidade
sob as vestes hipócritas de um sofrimento encenado. Foi assim – lembram-se? – no 11 de Setembro.
Voltou a sê-lo agora. O esquema é sempre o mesmo, cumprindo a mesmíssima
função: por detrás do visível enganador, há um invisível que, apenas ele,
garante a plena inteligibilidade do que acontece. E eles vêem o invisível.
Todos os conhecem e daí não vem qualquer surpresa, a não ser aquela que o
patético sempre sugere um pouco.
A
verdadeira surpresa – pelo menos para mim – vem de outros lugares. Vem daqueles
que, na solidão do seu espírito, apreciam a brutalidade, onde alucinam um
antídoto contra a corrupção generalizada dos costumes que a wokenes teria
trazido a este mundo. Há muita
gente assim. O que para eles é equívoco não é a tal wokeness. Essa é inequívoca, já que todos os sinais da decadência
moral se encontram nela inscritos. O
que é equívoco é a própria guerra, que não pode, por definição, ser como nos
aparece. O mecanismo de pensamento é muito semelhante ao dos primeiros,
incluindo a dimensão conspiratória, só que menos elaborado: Putin, finalmente, combate a podridão moral que por cá
grassa. E, no mínimo, merece o benefício da dúvida.
Uns
e outros lançam alguma luz sobre o passado. Falei há pouco da analogia com a
barbárie nazi e com a adesão que, mesmo fora da Alemanha, ela em muitos
suscitou. Nestes três últimos meses, vejo algo de semelhante a esta última
atitude. Não faltaram
intelectuais para admirar e compreender a barbárie – como não faltam agora. E não
faltaram pessoas comuns que, feridas pela solidão e o anonimato, a viram como
uma vingança justa e redentora – como agora também não faltam. Assim, observando o caso presente, há uma luz, por
mais ténue que seja, projectada sobre o passado. Uma luz que nos mostra como,
por motivos diferentes, embora afins, o pior da natureza humana – a incapacidade de muita gente proceder, em momentos
decisivos, à mais simples distinção entre o bem e o mal (é mesmo disso que se
trata) – pode vir à tona.
Por
mim, não tenho a mínima intenção de me converter ao grotesco da wokeness. Mas
não a confundo, na equivocidade da sua génese, com o inequívoco horror da
barbárie. E muito menos vejo na segunda um miraculoso antídoto para a primeira.
Há vezes em que o espectáculo do
sofrimento humano traz consigo uma evidência irrecusável que só a estupidez
sabe não ver. E, mesmo sem ser particularmente dado a moralismos, consigo ainda
espantar-me com a recusa de vária gente em aceitar a distinção entre o bem e o
mal, mesmo quando ela é inequívoca e se oferece ao mais desprevenido olhar
humano.
GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA
EUROPA MUNDO POLITICAMENTE
CORRETO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
João Floriano: Dois
dos grandes argumentos para justificar a bárbara invasão da Rússia na Ucrânia e
o ataque injustificável a civis, tem sido por um lado a «ameaçadora» presença
da NATO. Coitados dos russos que já estavam com dificuldades em respirar! É
caso para perguntar quantos metros de terra russa foram invadidos por tanques
estrangeiros. Que se saiba a operação especial de pacificação e limpeza de
nazis tem funcionado apenas num sentido e são inúmeros os nazis que temos visto
com gorro de pompons e ursinhos de peluche. O outro grande argumento para
desculpar os crimes russos é lembrar o que aconteceu ou acontece noutros locais
do mundo, onde a NATO e os americanos têm parte activa. Só não percebo o que
andam aqui a fazer tantos defensores da escumalha de Putin. Deviam já estar a
caminho do Donbass para combaterem ao lado dos russos e quiçá terem o mesmo
final de várias altas patentes russas. Mas
como tal não vai acontecer, resta dizer que estes argumentos estão mais que gastos e já perderam prazo de validade. André Silva: A única minoria que existe
hoje, e que é vergonhosamente perseguida, malvista, ostracizada e
desvalorizada, é precisamente quem construiu e mantém a funcionar tudo o que
existe hoje no mundo e quem deu e dá tudo (inclusive quantas vezes a própria
vida) pelos outros: os homens, na sua esmagadora maioria brancos e hetero. Mas um dia os homens (sim, homens) vão-se fartar desta palhaçada,
de andarem com o mundo às costas, de se sacrificarem inclusive com a própria
vida, tudo isto pelo nosso mundo, pelas mulheres e pelos filhos, só para
receberem críticas, desprezo, vergonha e culpa. E quando se fartarem - e já
esteve bem mais longe - é que vai ser o bonito. Mas que vai voltar ao seu
devido lugar, isso de certeza, e tão cedo as palhaças e os palhaços da esquerda
não levantam a voz. Isto se sequer depois disso sobrar algum ou alguma, que
esperemos que não………..
Paulo Silva > V L: Hã? O quê?…. Porque não disse logo que os americanos são os
culpados do 11 de Setembro, em vez de vir com perguntinhas de retórica acerca
da relação do Iraque com a data fatídica?... Está a dizer que os americanos
tinham uma bola de cristal? Quantas traições e traidores não estão na História?
Os americanos combatiam o comunismo e o expansionismo soviético, e no processo
tiveram vários aliados. Do lado dos soviéticos também aconteceu o mesmo. Ou
acha que não?... O camarada Estaline até sabia que o nazi-fascista Hitler era
uma tarântula que abominava os bolchevistas. Mas o que é que ele fez? Instruiu
o Partido Comunista Alemão, por via do Komintern, para não fazer acordos com os
sociais-democratas deixando assim caminho livre para os nazis ascenderem ao
poder na Alemanha. Não satisfeito, uns anos depois assina o pacto germano-soviético com
Hitler, com o fornecimento do esforço de guerra nazi. Também vai agora dizer
que a culpa da invasão da URSS pela Alemanha nazi, é do camarada, e que ele
tinha mais era que se deixar invadir?!... V L > Paulo Silva: E depois foi a minha pessoa que encheu de perguntas retóricas,
você até consegue responder às suas próprias questões. Paulo Silva > V L :Pois foi. Consegui responder às minhas e às suas perguntas da
forma que não esperava. A sua pessoa é que estava convencida que já sabia as
respostas às suas perguntas. Mas estava equivocada, e não conseguiu refutar
nada. O Iraque tem, (aquelas e outras), ligações ao 11 de Setembro, sim senhor,
e traidores há muitos...
Paulo Silva: Caro
articulista Paulo Tunhas, a decadência moral que Putin aponta do Ocidente
infelizmente é uma realidade, mas isso não deve colocar ninguém em defesa do
seu modus operandi anti-democrático e despótico. Mas falando de equívocos, que
não haja equívocos. Se não fossem o anti-wokismo e a homofobia, (seja lá o que
isso for), do sr. Putin, BE’s e quejandos amigos da wokeness dificilmente o
colocariam na primeira linha dos culpados pela agressão à Ucrânia. Num primeiro
momento de hesitação, entre a lealdade que devem ao seu anti-americanismo
primário e a defesa do gayzismo, (as paixões tolhem), os apóstolos de Louçã
estiveram a pender para a primeira, mas depois lá passaram à segunda opção.
Zelensky e os ucranianos ganharam uns bons aliados da onça... Um exemplo
sintomático do equivoco e inequívoco que resultam de ‘escolhas’ tácticas que
advêm de um contexto, e de uma cultura, ou da falta dela, (ética). advoga diabo: Estranho que um filósofo desconheça, ou, pior, finja desconhecer,
o conceito da banalização do mal de Hannah Arendt. É exactamente isso que PT
faz ao comparar terroristas com um país que em nome de boas razões, impedir a
inapelável instalação de mísseis inimigos à porta contra o assinado em Minsk,
age, mesmo se num beco sem saída, da pior das maneiras. Oxalá quem manda seja
mais responsável.
José Tomás: Se
concordo que a brutalidade imperialista de Putin não é antídoto para a
“wokeness”, surpreende-me a ingenuidade do autor, quando assume que a génese
“bem intencionada” da “wokeness” garante que esta não é igualmente brutal e
perigosa (ainda que seja administrada de forma gradual e insidiosa, como o
veneno). É que também o comunismo “assenta em intuições que são essencialmente
justas” e o facto é que matou mais gente que a brutalidade imperialista de
Hitler - sendo que, enquanto o nazismo se consumiu em 12 anos, 105 anos depois
de Outubro, os regimes do "comunismo real" continuam a matar,
torturar, prender, oprimir e censurar. bento guerra: Com a pandemia e agora a guerra da Ucrânia e o isolamento da
Rússia, estamos a viver a História,bem tempo real. Pode ser difícil ,mas é um
privilégio
José Paulo C Castro: A capacidade de distinguir o Bem do Mal é inata quando não se
introduz a subjetividade. A
capacidade de distinguir o bem pessoal do Bem (e o mal dos outros do Mal) é que
falha. Vai cruzar-se com uma noção básica de empatia, que costuma ser
inversamente proporcional ao poder adquirido e ao nível de dependência do
sujeito. Subjetividades de que só os mais felizes se libertam para ver o
inequívoco. Já dizia o outro para incluir a circunstância no Eu... João
Floriano > José Paulo C Castro: Excelente comentário. Como é praticamente impossível fugir à
subjectividade (somos sujeitos moldados pelas nossas experiências e
preferências), a distinção inequívoca entre Bem e Mal nunca será completamente
isenta e objectiva . Não me lembro ao longo da minha vida de um momento em que
a distinção entre Bem e Mal tenha sido tão complexa. Esta guerra/operação
especial na Ucrânia é o maior exemplo. João Floriano: No segundo parágrafo Paulo Tunhas diz-nos que na sua génese o
wokeness assenta em princípios justos e humanitários. Assim é de facto: a
defesa das minorias, da diferença, a luta pela igualdade de género, a definição
sexual, a interpretação da História, a correcção de erros do passado, a
autocrítica, são inicialmente ideias justas e humanistas. Deixam de o ser
quando os extremismos se impõem, calam toda a sensatez e os defensores das
bandeiras inicialmente justas se tornam ditadores, cancelando qualquer opinião
diferente da sua, considerando perigosos inimigos quem se atreva a contestar,
exorbitando os seus direitos e menorizando os direitos dos contestatários,
tratando-os como mentecaptos, pobres de espírito e fonte de perfídia e maldade.
É a ditadura do politicamente correcto mesmo quando se veja que se trata de um «totalmente incorrecto».
Os extremismos são um dos grandes problemas dos nossos dias. Ama-se ou odeia-se
apenas por percepção. O Outro é um ser idolatrado, a personificação da virtude
e do Bem, um ícone da salvação da Humanidade (lembram-se da Greta que
entretanto parece ter desaparecido e regressado ao seu planeta algures na Via
Láctea?), ou ainda, e sempre por percepção, um velhaco repelente porque
manifestou uma opinião que causou desagrado. A sensatez dos que querem fugir
aos extremos é cada vez mais um bem raro. Por este caminho os sensatos vão
resistir e acabar sós.
Francisco Assis: Aqueles
que conciliam o apoio a Putin com a aversão ao “politicamente correcto” são os
cultores de um pensamento reaccionário. Já no caso dos marxistas-leninistas
estamos perante a auto-anulação da dimensão do juízo moral como é próprio de
uma seita onde o indivíduo é apenas um meio através do qual se expressa uma
Verdade invisível e totalizante. Os comunistas são simples bonecos do Grande
Ventríloquo que determina o discurso que papagueiam com a desenvoltura das
criaturas autómatas. O Grande Ventríloquo não passa de uma versão infantil e
dogmática do velho marxismo………….. Tito Alverca: Curioso que esta é capaz de ser a primeira
vez em que não encontro qualquer aderência naquilo que o Paulo Tunhas escreve
com a realidade, ampla e abertamente anti-woke e simultâneamente anti-Putin,
que conheço e com que lido. Terá em mente algo muito diverso daquela que é a
minha própria experiência.
Paulo Silva > Tito Alverca: Caro comentador, também me parece óbvio
que a rejeição dupla, (de Putin e do wokismo), é maioritária entre as pessoas.
Mas o autor não estabelece relações quantitativas. Apenas constata a existência
de certas posições, tanto de um lado como do outro do espectro político, e
critica-as. Por exemplo. Tunhas já era crítico dos delírios da wokeness antes da invasão, mas não
decidiu apoiar a invasão só porque o sr. Putin também é anti-woke. Há quem o
faça passando por cima da evidência da brutalidade de uma guerra.
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