Na construção do futuro, dentro do equilíbrio racional.
Uma tese – de Rodrigo Adão da
Fonseca - que devíamos ter sempre presente
Humanismo como resistência
Assusta pensar que ainda exista quem acredite que o
futuro se ganha “desenvolvendo competências”, cada vez mais efémeras, em vez de
se focarem nas literacias, aquelas que resistem à erosão do tempo.
RODRIGO ADÃO DA FONSECA: Colunista
OBSERVADOR, 13
jun. 2023, 00:178
“E
tudo fica igual na noite escura de todos os encantamentos efémeros”, Francisco
d´Eulália, em Cadernos I – Eu Também Sou Tudo Isto
No sábado fui à Feira do Livro, passear,
comprar, reencontrar amigos no meio da imensa multidão. O pretexto foi o
lançamento de um pequeno Caderno com o título Eu
Também Sou Tudo Isto, de uma pequena editora, a Âncora,
de um autor talvez menos conhecido, Francisco
d´Eulália, que é como quem diz, do
Professor José de Faria Costa. Grande homem do Direito, mas sobretudo
homem de várias letras e artes, o Professor
Faria Costa mostra-nos nos seus “Cadernos”, em poucas páginas, que
a melhor forma de resistir ao devir do tempo continua a ser, hoje como no
passado, não prescindir de pensar.
Desde pequeno que vivo rodeado de livros,
já que os esforços educativos do meu pai foram maioritariamente mediados por
livros. Tudo começou quando tinha uns seis anos, no final dos anos 70, dia em
que, a caminho da livraria Platero, em Pamplona, o meu pai inaugurou uma
tradição semanal que durou – e cumpriu escrupulosamente – até à minha idade
adulta: a compra ou a escolha de um livro. Nunca percebi se o fazia por mim,
por ele, pelos dois, mas não vou negar que todos aqueles momentos são os que de
uma forma mais marcante fizeram de mim o que sou hoje, sonhador e resistente.
Numa época em que o tempo passava mais devagar e os estímulos exteriores não
captavam a nossa atenção a cada segundo, para nos distrair, devorei tudo o que
me foi oferecido e ainda o que apanhei das bibliotecas ou gabinetes onde fui
parcialmente sendo abandonado até chegar a hora de ir embora ou ter de
interagir com o mundo exterior. Carroll,
Tolkien, Agatha Christie, Chesterton, Doyle, Camões, Cervantes, Veríssimo,
Amado, Dante, Eça, Eco, Camilo, Herculano, Padre António Vieira, Pessoa,
Garret, Oliveira Martins, Fernão Mendes Pinto, Capelo, Ivens, O’Neill, Cesário,
Gil Vicente, Borges, Garcia Márquez, Yourcenar, Beauvoir, Austen, Twain,
Andersen, Agustina, Kundera, Machado de Assis, Shakespeare, Rilke, Dumas,
Balzac, Steinbeck, Hemingway, Kafka, Maugham, Huxley, Faulkner, Santo
Agostinho, São Tomás de Aquino, Orwell, Isabel Allende, Sepúlveda, Kapuscinski,
Molina, Malraux, Mann, Elliot, Camus, Victor Hugo, Maquiavel, Dickens,
Pepetela, Luandino, Mia Couto, Capote, Poe, Kipling, Proust, Tolstói,
Dostoiévski, Goethe, Homero, Virgílio, Tennessee Williams, e tantos outros, por
influência paternal; e Nemésio, Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço, Sartre,
Descartes, Aristóteles, Platão, Kant, Nietzsche, Kierkegaard, Heidegger,
Jaspers, Merleau-Ponty, por influência maternal. Tive também a sorte de ler Saramago,
Breton, Cesariny, Cruzeiro, Herberto Hélder, Miller, Sade, Beckett, Nabokov,
Roth, autores que me foram oferecidos em jeito de provocação por alguns dos
amigos do meu pai, do professor Luís de Albuquerque ao Vasco Graça Moura, que
tinham, também eles, esse mau hábito de desencaminhar consciências através
dessa coisa chamada “livros”. Todos estes nomes sonantes de escritores
de sempre fazem parte das minhas memórias de infância e juventude, e de uma formação
humanista que tanto se tem vindo a perder nos nossos dias. É pena, porque
ao longo dos séculos os livros mediaram melhor do que qualquer outra tecnologia
a relação das pessoas com o conhecimento e funcionaram, até prova em contrário,
como o melhor veículo para fomentar a capacidade crítica, a reflexão, a
autonomia individual, e o sentido de liberdade. Nada prepara melhor uma pessoa
para os desafios do futuro do que ler.
Sei desde cedo que não vale a pena perder
tempo com literatura menor ou iniciativas de conteúdo efémero. Como aprendi de
quem sabe, as boas obras, as que têm a dignidade para serem consideradas no
campo da literatura, “obras de arte”, são aquelas que tendo um conteúdo
intemporal resistiram à erosão do tempo, passando a fazer parte da memória da
humanidade; são essas as que devem merecer a nossa atenção.
Ler
não é uma atividade fácil ou intuitiva. Implica aprender a ler, a mergulhar em
cada palavra, em cada ideia, dando tempo ao tempo para viajar até outros
espaços e cenários e voltar de alma cheia à realidade, fechando o nosso espaço
de concentração de um mundo que cada vez menos aceita que isolemos a nossa
atenção, centrados apenas em nós próprios e na relação com aquilo que aquelas
páginas nos possam inspirar (e não falo apenas das redes sociais, do cinema
em streaming ou jogos digitais, os donos de dachshunds sabem bem ao
que me refiro).
Mas
se ler – extraindo valor da leitura – implica aprendizagem e persistência –,
ler – e pensar – continuam a ser o melhor antídoto contra a incerteza e o medo.
Até prova em contrário, ler e pensar sempre foram a melhor forma de acompanhar
e compreender a mudança.
Por
estes dias, o mesmo mundo que paralisou de medo por causa da pandemia,
sacrificando-se às mãos de políticos e líderes que exibiram, nas suas ações,
significativas lacunas de leitura na infância e na juventude, está de novo em
suspenso perante a emergência de tecnologias que, seguramente, têm um profundo
potencial disruptivo, tornando o futuro da humanidade, mais incerto. Não serei
eu, seguramente, quem vai vaticinar – muito menos nos limites desta crónica –, o que nos reserva o Futuro face à
emergência da inteligência artificial, pese embora essa seja uma das minhas
áreas actuais de dedicação profissional.
Também vos digo que há muito tempo que o
meu tempo tem pouco tempo para o mundo dos livros, absorvido que fui pelo
sistema financeiro e depois pelo mundo da tecnologia, tentando sobreviver nessa
arte esotérica a que alguns chamam, “gestão do risco”. A vida tem-me
reservado significativas surpresas, mudanças abruptas e disrupções, pelo que
até por experiência pessoal desisti de fazer grandes vaticínios sobre o que
“vai ser o futuro” para não ser trucidado pelos caprichos de uma realidade que
se transfigura a cada passo. Talvez por isso não pude deixar de sorrir com
tristeza quando li o optimismo com que os patrocinadores da TUMO encaram a sua
missão salvífica de resgatar o futuro das novas gerações através de programas
de imersão criativa de 4 horas semanais. A
TUMO é, para quem não vive na bolha “entrepreneur”, a mais recente iniciativa
do Pedro Santa Clara, que convenceu – e muito bem – vários sponsors que,
usando um método já validado e desenvolvido na Arménia, há 12 anos, é possível
incrementar competências em várias áreas, como a tecnologia, a animação e a
música, importantes para o desenvolvimento pessoal de crianças e adolescentes.
Os centros TUMO funcionam, segundo os promotores, como um complemento às aulas.
Pelo que percebi pela pesquisa que fiz, o programa é interessante e tem
resultados validados. Nada contra, tudo a favor.
A forma, porém, como em 2023 esta
iniciativa é apresentada, pela voz dos seus promotores, é que dá arrepios na
espinha: “As competências que nós queremos
desenvolver no TUMO são aquelas que nós achamos que vão ser as competências do
futuro: modelação, desenvolvimento de jogos, programação, música, design, data”, diz-nos uma
das principais patrocinadoras. Outros exemplos de declarações entusiasmadas
como esta poderiam aqui ser citadas (o que me leva a desejar profundamente a
sustância que o Pedro Santa Clara e a sua Shaken Not Stirred misturam nos cocktails
que servem aos sponsors). É que no momento em que a inteligência artificial está
a mudar aceleradamente as regras do jogo, pondo precisamente em causa a viabilidade de várias tarefas
e profissões, como a modelação, o desenvolvimento de jogos, a programação, a música, e o design (mas também profissões em
áreas legais, financeiras, e de contabilidade, e do próprio ensino),
assusta pensar que ainda exista quem, em posições de liderança, acredite que o
futuro se ganha, “desenvolvendo competências”, cada vez mais efémeras, em vez
de se focarem nas literacias, que são aquelas que resistem à erosão do tempo.
Por isso, aos que têm filhos, crianças e
adolescentes, se os querem preparar para o mundo que está para vir e para a
incerteza das inúmeras disrupções que eles, mais que todas as gerações futuras,
vão ter de enfrentar na sua vida, só tenho uma recomendação: inscrevam-nos na
TUMO, sem dúvida, mas preocupem-se em formá-los não apenas para as
competências mas sobretudo para o conhecimento fundamental, aquele que resistiu
à erosão do tempo permanecendo válido ao longo de décadas e séculos, pois só
assim estarão preparados para assimilar, com autonomia e capacidade crítica, as
literacias emergentes, sejam elas quais forem. A todos os que querem patrocinar o futuro e reduzir as
desigualdades, convido-os a acarinhar, também, aquela que tem sido a chave da
resiliência da humanidade face às mudanças: a recuperação do livro e das
literacias que só ele oferece. A todos dedico, no fecho desta crónica,
o poema de Camões com que o Professor José de Faria Costa abriu o lançamento do
seu próprio livro,“Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades”, aqui apresentado numa versão pop, mais
fácil de digerir, interpretada por outro grande poeta, este da pós-modernidade:
Rui Reininho.
LEITURA LIVROS LITERATURA CULTURA
COMENTÁRIOS:
João Amorim: Normalmente, leio com agrado as crónicas do Rodrigo Adão da Fonseca, pessoa
bem formada e bem informada. Mas tropeçou, desta vez: confesso o meu espanto
com o elogio que faz ao poeta de pacotilha, “filósofo” de terceira categoria,
indivíduo oco, maçónico de modesto grau (consta sempre das listas que volta e
meia são publicitadas na internet), e que adoptou o pretensiosíssimo pseudónimo
de “Francisco d’Eulália”. Este homem não existe: é uma personagem
verdadeiramente queirosiana, A sorte dele é não se ter exibido há 100 anos:
levava com outro “Manifesto Anti-Dantas”… Diogo Araújo Dantas: Hahaha Esta é o melhor cronista
de humor do Observador, logo depois do senhor do Gato Fedorento de quem não me
lembro o nome. Lourenço de Almeida: Muito bem! bento guerra: Já o Pessoa dizia que "o Outro nem tinha em casa
biblioteca" Carlos Almeida: Esqueceu a Enid Blyton do Noddy, 5, 7, Aventura…. António Rocha > Carlos Almeida: Pois, isto gente que aprende a ler com kant ou
kirkegard é outra coisa Maria Paula
Silva: Muito bom! e pertinente.
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