Afinal, também estávamos preocupados com
um evento que segundo se disse fora inicialmente negligenciado, o que
aparentemente se traduziria em descalabro, num evento de tanta importância, em
que, aparentemente, tudo fora protelado, bem ao nosso modo desleixado. Maria João
Avillez prova que não será assim, e agradecemos a elucidação
pormenorizada, bem ao seu modo eficiente e entusiástico.
As jornadas: crónica-reportagem dos seus bastidores
Cristãos ou não cristãos, católicos
mais ou menos zangados, agnósticos, homens de muita ou pouca fé, gente
recalcitrante ou distraída, poucos serão indiferentes. Deus fala de muitos
modos, para todos.
MARIA JOÃO AVILLEZ
Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 14
jun. 2023, 00:20Subscrever
1Às vezes – embora não seja para fazer
caso – parece que é como se
houvesse duas jornadas mundiais da juventude (JMJ) em paralelo: a dos
pescadores de pérolas falsas e as verdadeiras. Nunca se
cruzarão, a luz não gosta da sombra, a pescaria é ilusória: mesmo que pareça
farta na mediatização da desconfiança sobre prazos e custos ou na ampliação de
dificuldades, os jovens sabem que os caminhos paralelos nunca se encontram. O
empenho varre qualquer má pescaria.
2Testemunhei esse empenho ao vivo e em
directo, a várias vozes. Empenho, esforço, entusiasmo, energia. O
“terreno” das Jornadas é disto que é adubado, é disso que apetece falar, é só
isso que a ocasião – esta, única e irrepetível – naturalmente merece e nos
merece. No epicentro de Lisboa,
nos arredores, no país, há incontáveis formigas laboriosas que longe das
superestruturas do poder e incólumes à sua desgraçada fragmentação, há
longos meses se afadigam, cruzam, comunicam e se comprometem; há centenas de
organizadores, equipas, trabalhadores, voluntários; há criatividade no ar,
artífices, músicos, artistas, cantores, coros, encenações, ensaios. Há uma real mobilização que se palpa e
percebe: são também incontáveis os que querem colaborar de moto próprio, pro
bono, de qualquer maneira: a pronta
generosidade corre a jorros a par com uma imediata disponibilidade que
sacrifica fins de semana e férias. Responsável e comovedor. Cada um sabe o que
faz, ninguém me pareceu atontado ou submerso pela dimensão da empreitada.
Claro que há desmazelos e sobressaltos,
em Portugal haverá sempre, cada povo é como é, temos novecentos anos de treino.
Mas que interessa isso ao pé “deste” tudo: abrir os braços de Lisboa a
centenas de milhares de jovens que vêm por bem, trazendo na mochila a alegria,
a convicção da sua fé e o desejo de a partilhar; o sermos o país hospedeiro de
um dos maiores acontecimentos mundiais – entre nós nunca houve outro com
estas proporções e exigências; ter Francisco como visita de honra e voltá-lo
a ouvir pedir à Igreja que “saia” e aos jovens que “abram uma janela” como já
lhes pediu em Agosto do ano passado através da entrevista que lhe fiz (e que o
Santo Padre concedeu justamente “em nome das Jornadas Lisboa 2023”).
Cristãos ou não cristãos, católicos
mais ou menos zangados, agnósticos, homens com muita ou pouca fé, gente
recalcitrante ou distraída, poucos serão porém os indiferentes. Deus fala de muitos modos, sempre para
todos. Apesar de íntima e muitas vezes escondida, a necessidade de uma relação
ou ponte ou porta com o transcendente, é intrínseca ao ser humano. Sobrarão
apenas os queixosos profissionais, os desdenhadores oficiais, e claro as
“encomendas” anticlericais contrastando – em forçado despropósito – com a
alegria festiva desta manifestação de fé numa Igreja que dura. É por entre a
graça e o pecado que ela caminha há dois mil anos. E chegou até hoje.
3Interessa porém infinitamente menos o meu
olhar do olhar de quem, na liderança ou no terreno, está “lá” desde há longos
meses de trabalho.
Há dias perguntei a alguns deles, se
“tudo a postos”:
“Tudo dentro dos prazos previstos”
disse-me a porta voz das JMJ, a jornalista Rosa
Pedroso Lima: “Depois de meses de trabalho de bastidores, são já
visíveis os frutos de milhares de horas de dedicação de milhares de
trabalhadores: o Parque Tejo é um
gigantesco espaço verde que ficará à disposição das populações de Lisboa e
Loures no final desta JMJ. As obras necessárias no Parque Eduardo VII começam
em breve. Uma só amostra do muito que já se fez e do que se irá fazer…”
Rosa, “a voz que dá a voz da JMJ para
fora”, prevê que, “de acordo com o histórico de anteriores Jornadas, mais de 4
mil jornalistas de todo o mundo se acreditem para acompanhar a de ‘Lisboa
2023’: “Mas ser porta-voz é, também,
passar a palavra (ou o microfone) aos vários protagonistas que estão a
construir este evento”.
A cada nível operacional de realização ou
de intervenção, as definições de “desafio” vão variando conforme a natureza das
respectivas responsabilidades. Para Rosa
Pedroso Lima “o mais desafiante é conseguir responder com rigor e rapidez a
todas as perguntas que chegam. O interesse pela JMJ é gigante, o que é muito
bom… Corresponder a esse interesse e ao ritmo avassalador a que funcionam hoje
as redações é a maior dificuldade”. Menor sempre porém que este “sinal de
esperança num mundo de incerteza, guerra, indiferença e injustiça”: “O facto do
Papa juntar jovens vindos de todas as partes do planeta, é um farol de união.
‘Só’ isso é uma imensidão”.
O
padre Hugo Gonçalves (pároco da Igreja do Campo Grande) trabalha
nesta JMJ desde 2019. Escolhido pelo Bispo D. Joaquim Mendes, é o director do Festival
Mundial da Juventude (FMJ)
cujos números quase arrepiam: cerca de duzentos eventos espalhados por oitenta
locais distintos. Sabendo que Lisboa acolheria as Jornadas de 2023
e que lhe caberia a “pasta” do FMJ, o Padre Hugo esteve no Panamá em 2019 com
um “duplo olhar”: participar na Jornada e observar ‘in loco’ a sua organização”.
“Tudo está a ser pensado essencialmente
do ponto de vista espiritual, mas também cultural e esteticamente. Vamos por
isso ter algo de inédito na história das Jornadas: Matilde Trocado directora artística do Festival da
Juventude, convidou
jovens artistas de todo o mundo – dança, música, teatro, etc. — para uma
residência artística aqui em Lisboa onde já há alguns meses trabalham juntos no
que de melhor têm para apresentar culturalmente. Serão
eventos artísticos, desportivos, religiosos. Música, teatro, dança, canto,
cinema; um torneio de futebol, outro de vólei de praia. E, como é natural,
acontecimentos marcadamente religiosos com congregações, movimentos, etc., que
vindos do mundo inteiro se juntarão em várias igrejas de Lisboa com propostas
espirituais de palestras, momentos de oração e muito mais”
Dizer “desafio” talvez seja pouco para a
dimensão do Festival, mas o meu interlocutor não se impressiona: tem uma
grande equipa, trabalha há quase dois anos com ela, está “confiante”: “a
produção do Festival está a correr muito bem, e a articulação com as câmaras de
Lisboa, Loures e Cascais e as suas respectivas entidades e infraestruturas, é
também excelente.”
Para além de festivais, encontros e
acontecimentos, o que muito particularmente interpela e guia o sacerdote é lema-condutor
que o Papa Francisco sugeriu para a Lisboa 2023: “Maria levantou-se e
partiu apressadamente”.
“Nesta Jornada todos vamos ao encontro
uns dos outros, levando Jesus na nossa vida e privilegiando o que são as
atitudes próprias de quem é íntimo de Jesus. Mas há Nossa Senhora e a sua
atitude de disponibilidade, de serviço, o partir, o sair de si. Espiritualmente esta Jornada também é a
universalidade, a fraternidade. A mensagem de que o cristianismo é para
todos. Em todas as latitudes. Por mais diferentes que nós sejamos, há pontos de
contacto entre as nossas vidas. A mim o que me entusiasma sempre muito na
Jornada é que eu posso estar sentado no chão e ao meu lado estarem jovens por
com t-shirts da Síria, como aconteceu por exemplo em Cracóvia, ou estarem
jovens com uma bandeira do Vietname, como no Panamá. Ou como aqui em Portugal
onde iremos ter por exemplo entre múltiplos outros, um grupo de vietnamitas…”
4Entre Deus e a festa; o Papa e os jovens;
a espiritualidade e a mensagem; a cultura e o desporto; ou melhor, para além de
tudo isso, há todo um mundo de organização meticulosa, detalhada, complexa
que cabe ao município de Lisboa e se organiza e produz sob a sua
responsabilidade. Deixo por isso aqui algumas perguntas e algumas respostas
tal como as fiz e que resumem a conversa que mantive com David Lopes, o (sobredotado?) operacional número um da
autarquia de Lisboa para esta Jornada.
Como chefe da Unidade de Missão da Câmara
Municipal de Lisboa, qual o ponto de situação hoje, a poucas semanas, do dia 1
Agosto? Que diz o maestro da equipa da câmara da capital?
Cada
dia é mais intenso que o anterior: saber quantos peregrinos virão e onde
ficarão alojados é um dado tão importante para quem tem a responsabilidade de
os transportar como para quem tem que calcular o peso do lixo que vão produzir
de modo a conseguir desenhar um plano de resíduos que permita que a cidade
continue a funcionar com o dobro ou o triplo da sua população. Os
grandes palcos são dois, mas a Jornada de Lisboa acolhe o Festival Mundial da
Juventude que se espalha em 80 locais da cidade de Lisboa. Na
comunicação massificada só se fala da parte de cima do icebergue. Invisível aos
olhos estão outros desafios. Há quem lhe chame problemas ou caos. Na unidade de
missão da CML preferimos dizer que estamos obsessivamente preocupados com o
planeamento. Queremos conseguir entrar no mês de Julho a atacar os detalhes
sempre em equipas multidisciplinares: Obras
e Manutenção, Mobilidade, Cultura e produção de eventos , Higiene Urbana, Protecção
Civil, Sapadores Bombeiros, Polícia Municipal, Empresas Municipais. Queremos
conseguir que uma cidade pequena fisicamente, para tantos jovens, possa passar
a ter algumas centenas de milhares de novos embaixadores da nossa capital e do
nosso país.
Qual a sua expectativa» O país está mobilizado? Os vários
“parceiros”, autoridades, instituições, voluntários, trabalhadores, estão
mobilizados?
Em boa verdade ninguém sabe o que é olhar
uma massa de um milhão de pessoas a movimentar-se ao mesmo tempo em direcção a
um local específico. Esse momento vai acompanhar-nos, espero que por boas
razões, para o resto da nossa vida. Todas as polémicas, e casos, que fomos
vendo serem discutidas na praça pública, para além da virtude de nos mostrarem
que o escrutínio funciona, remeteu para um segundo plano que o país está
muito mais mobilizado do que se imagina. A Jornada, do ponto de vista dos jovens e das suas comunidades, há
muito começou. Do Mogadouro a uma pequena cidade nas Filipinas.
Falta agora o encontro final e também ecuménico que vai acontecer em breve.
Tenho conhecido grandes profissionais na área pública e privada que se estão a
preparar o melhor possível para estas jornadas. Se tivesse que mencionar duas áreas das
quais espero o melhor, são as nossas
forças de segurança e a preparação da operação televisiva que pode fazer destas
Jornadas um dos maiores eventos em termos de espectadores em todo o mundo.
Num mundo tão incerto e desamparado
como este, hoje, qual o maior ou mais relevante significado das Jornadas Lisboa
23? No fundo, o que é “O” essencial aqui?
Vivemos
um período pandémico a que chamo o ano dos 24 meses. Ainda me lembro da forma
como as pessoas se olhavam nas duas primeiras semanas de confinamento enquanto
esperavam na rua o momento de entrar no supermercado. O mundo ainda não se
curou mental e espiritualmente de tudo isto, num momento em que tragédias como
a da Ucrânia até fazem esquecer o terror que se está a viver na Etiópia, no
Iémen, em Mianmar, no Haiti, na Síria, no Afeganistão. Se a isto juntarmos
a guerra que o mundo teima em manter contra a biodiversidade e os Oceanos,
então estas Jornadas podem ser uma janela para a paz e para a humanidade de que
somos feitos.
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