domingo, 18 de junho de 2023

Homem caricato

 

Silvio Berlusconi, que morreu. Parece que Giorgia Meloni dá boa conta de si. Jaime Nogueira Pinto, justifica a História da Itália com a clareza e simplicidade precisas, referindo os dados e os seus actores, e enquadrando-os numa História expressiva de um país expressivo. God save the “queen” GIORGIA MELONI.

De Silvio Berlusconi a Giorgia Meloni

Foi uma personalidade originalíssima, cujo sucesso nos pode ajudar a entender, pelas melhores e pelas piores razões, o mundo em que vivemos. Foi o artífice da direita unida em Itália.

JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observador

OBSERVADOR, 17 jun. 2023, 00:1816

A Itália, nação antiga, mas Estado recente, é uma terra de grande criatividade e originalidade política. Não falando da História de Roma, da República ao Principado, nem do papel chave de Maquiavel como pioneiro da “ciência de Estado” e pensando apenas na modernidade, no século XX, é impressionante o contributo italiano, de um extremo ao outro do leque ideológico, na inovação teórica e institucional.

É um italiano, Benito Mussolini, que cria o fascismo, uma tentativa de síntese entre as duas ideologias fortes do século XIX – o nacionalismo e o socialismo; como é um italiano, Antonio Gramsci, que faz uma revisão do marxismo-leninismo, em termos de hegemonia cultural, como estratégia para a conquista do poder nas sociedades modernas; são também italianos Benedetto Croce, um fino teorizador do historicismo e do liberalismo, e Giovani Gentile, que aprofundou a construção do Estado fascista na linha do idealismo hegeliano; e, mais recentemente, é ainda um italiano, Antonio Negri, a teorizar uma contestação da globalização capitalista de uma perspectiva marxista.

No pós-guerra, depois do vinténio fascista, dominado pelo anti-fascismo, a primazia do espírito criativo e crítico dos italianos manteve-se, não só na política – onde permaneceu um leque do pensamento e alternativa –, como noutras artes. Tal como os grandes mestres do Renascimento, de Miguel Ângelo a Leonardo, tinham dominado a pintura e a escultura, Visconti, Fellini, De Sica, Rossellini dominariam a sétima arte – o cinema.

O artífice da direita unida

A originalidade política italiana voltou a ser falada esta semana com a morte de Silvio Berlusconi. Talvez a única característica que o aproxime de Miguel Ângelo, Leonardo, Visconti, Fellini, De Sica ou Rosselini, seja a de ter sido também, ao seu modo e ao seu estilo, um pioneiro. Foi, pelo menos, uma personalidade originalíssima, cujo sucesso nos pode ajudar a entender, pelas melhores e pelas piores razões, o mundo em que vivemos.

Berlusconi é um fenómeno da pós-modernidade: um self-made-man que fez fortuna no imobiliário e comprou uma posição forte nos media, com a Mediaset e o Canale 5, e no desporto-rei, com a Associazione Calcio Milan. Depois, quase aos 60 anos, em 1994, iniciou uma carreira política que ocupou a última etapa da sua vida.

Berlusconi, il Cavaliere, como também era conhecido, marcou decisivamente a história da Segunda República italiana, a que começou no interregno de 1992-1994, quando os escândalos do Tangentopoli destruíram a credibilidade dos grandes partidos sistémicos italianos – da Democracia Cristã ao Partido Comunista. Só essa terra queimada pode explicar o sucesso das novas forças emergentes, que iriam compor, à direita, o trio ou o terceto que hoje governa a Itália.

Na “extrema-direita”, os neo-fascistas ou pós-fascistas do antigo MSI (Movimento Sociale Italiano), excluídos da respeitabilidade democrática e relegados para uma votação relativamente marginal, mas fiel, de cerca de dois milhões de eleitores, não tinham sido atingidos pelo descrédito que caíra sobre os partidos de um sistema a que não pertenciam. Giorgio Almirante, que, a partir de 1972, fora por muitos anos o Secretário-Geral do MSI-DN (Destra Nazionale) tivera como sucessor Gianfranco Fini, que passaria o Destra Nazionale a Alleanza Nazionale e procederia a uma renovação da linguagem e da estratégia do partido, tornando-o mais integrável no novo ciclo político do país. Ao lado da Alleanza Nazionale, apareceu um novo partido, a Legha Nord, uma força política nascida da velha oposição Norte-Sul.

Desde a unificação, feita pelo reino de Piemonte-Sardenha e pelos Sabóia, que a dicotomia Norte-Sul, a chamada “questão meridional”, dominara, dividira e acicatara os ânimos em Itália. A ideia era que o Norte, sobretudo Milão e as cidades da Padânia, o Norte industrial, empreendedor, activo, sustentava e alimentava um Sul ocioso, contemplativo, que vivia dos subsídios fiscais distribuídos por Roma. A Liga, inicialmente, era separatista, e o seu fundador, Umberto Bossi, tinha um discurso identitário, que apelava à secessão. O partido andava então pelos 8,5% em termos de percentagem eleitoral nacional.

Foi neste quadro que, em 1994, Berlusconi fundou a Forza Italia, um partido que aparece inicialmente como conservador em valores políticos – nacionais e familiares – e liberal em economia. Nas eleições parlamentares de 1994, a grande surpresa seria precisamente o resultado da Forza Italia de Berlusconi, que ficaria em primeiro lugar com 21% dos votos. A Alleanza Nazionale de Fini, com 13,5%, ficara em terceiro lugar e a Legha tivera 8,5%. A soma dos três partidos dava 340 deputados, isto é, maioria absoluta num colégio parlamentar de 630. Na oposição ficava a coligação progressista de Achille Occhetto, reunindo comunistas, socialistas e a esquerda da antiga Democracia Cristã.

Foi assim que, em 1994, Berlusconi entrou em força na política italiana. Tinha-se dado, entretanto, uma reforma eleitoral importante que introduzira um sistema misto – em que a maioria dos deputados (75%, o equivalente a 475 lugares no Parlamento) passava a ser eleita pelo sistema maioritário unipessoal, e os restantes 155 pelo sistema proporcional. Era a chamada “Lei Mattarella”, aprovada por referendo em Abril de 1993. Mas o mérito de juntar os nacionalistas da NA, os separatistas da Legha e a Forza Italia numa coligação inédita foi do líder do partido mais votado, Silvio Berlusconi, que chefiaria o governo em 1994 e 1995, de 2001 a 2006 e, finalmente, de 2008 a 2011. A seguir a Mussolini, Berlusconi seria o político a estar durante mais tempo à frente do Executivo de Roma.

Pai do neo-populismo?

O que é que explica o sucesso deste italiano de língua e costumes soltos com uma fortuna colossal e um grande império mediático? Como se explica que tenha sido ele o porta-voz, o protagonista, ou mesmo o inventor de uma nova “política ao gosto popular”, num país, entretanto, altamente sofisticado?

Talvez o explique o facto de o novo líder ser pouco “ideológico”, de ter feito uma carreira nos negócios e na comunicação, conseguindo identificar-se com “o homem da rua” e com o “país real”, até pela forma franca e quase ostentatória com que exibia excessos, defeitos e pecados, longe das dissimulações e hipocrisias da “política” e dos “políticos”. Terá Berlusconi inaugurado um novo tipo de liderança? Terá sido ele o precursor dos populistas à Trump ou à Bolsonaro?

O facto de estes líderes improváveis do “povo da Direita” não serem fruto de uma conspiração contra a democracia, de não serem uma causa, mas, antes, uma consequência, explica também o seu sucesso. Assumindo-se sem rodeios, souberam opor-se frontalmente ao que os eleitores achavam então os males maiores: “políticos do sistema”, como Hillary Clinton, encarnação doliberal chic, numa América onde as classes trabalhadoras e as classes médias empobreciam com a globalização; ou como Lula da Silva, num Brasil de hipocrisia, retórica de esquerda e corrupção; ou como numa Itália que, sob uma oratória “anti-fascista” e respeitável, se achava afogada na corrupção das negociatas eleitorais.

Os eleitores de direita – patriotas e religiosos –, confrontados com o globalismo e com o multiculturalismo desordenados, com os excessos culturais e experimentais da Nova Esquerda e com a cedência resignada ou rendida das elites tradicionais, mais respeitáveis ou mais sofisticadas, aos novos delírios anti-Vida, anti-Nação, anti-Religião e até anti-Liberdade das esquerdas, foram optando por líderes que achavam mais eficazes na defesa das suas causas. Líderes a quem desculpavam tudo ou quase tudo: a libertinagem, o exibicionismo, o aventureirismo empresarial e até a agressividade brutal e por vezes boçal – tudo era melhor que a palavrosa e danosa hipocrisia reinante.

Não estando ainda em tempo de sínteses, mas de antíteses, estes políticos, ditos populistas, encarnaram o uomo qualunque evocado no pós-guerra pelo jornal e o movimento de Guglielmo Giannini. Berlusconi era o porta-voz desse “homem da rua”, capaz de dizer sem rodeios o que tinha de ser dito e de se opor ao que lhe era apresentado como respeitável, desejável, culto, civilizado. E o que lhe era assim apresentado, a ele e aos italianos, eram os dogmas com que a Esquerda – imbuída de uma pseudo-superioridade intelectual e moral – conseguira intimidar as velhas direitas, presas por preconceitos passadistas ou complexos de inferioridade.

Recep Erdogan, Boris Johnson, Victor Orban, entram, diferentemente, nesta galeria. Mas Donald Trump e Jair Bolsonaro são os mais ostensivos, também pela dimensão dos seus países e pelo carácter inesperado das suas vitórias.

O mais interessante da herança de Berlusconi – que, como Donald Trump, conseguiu reunir o ódio das várias esquerdas e centros sistémicos – foi ter aberto caminho para Giorgia Meloni, uma jovem militante dos pós-fascistas do MSI-DN-AN, que foi ministra da Juventude do seu segundo governo e que, numa dezena de anos, conseguiria fazer dos seus Fratelli o primeiro partido da Itália.

Nos antípodas do estilo e do perfil do velho sátiro Silvio Berlusconi, Meloni, com o seu ar de menina e a sua energia polémica, equilibrando os princípios com as exigências da praxis, aparece à frente do governo de Itália, já não como um modelo de antítese, mas como um modelo de síntese.

A SEXTA COLUNA   ITÁLIA   EUROPA   MUNDO

COMENTÁRIOS:

bento guerra: A Itália está finalmente entregue à decência política                Liberales Semper Erexitque: Faz Jaime Nogueira Pinto a descrição de algo que em português se chama um oportunista. E sim, ele foi o percursor de Trumpusconi, a sobreposição entre ambos é enorme, desconcertante até. Trumpusconi chegou apenas mais tarde. Tal como D. Silvio, foi corrido, e pretende regressar.                 Manuel Cabral: Uma vez falecido o velho e impertinente Berlusconi, que só fez reduzir o lugar europeu da Itália na UE, Meloni é capaz de ficar ao mesmo tempo com os voto dele e sem a presença dele. Em Portugal, estamos cada vez mais longe da Europa mas a Espanha parece ir dar a volta a isso em breve.                 Isabel Amorim: Como sempre excelente! Faço votos para que a Meloni prospere e inspire. Bem precisamos...              Tiago Bana Franco: Excelente análise!                     João Ramos: Sempre muito interessante Jaime, claro como água!!!    Graciete Madeira: Mais um excelente texto.                 Filipe Ramos: Silvio Berlusconi não foi o pai do neo-populismo em Itália. Sugiro o livro de Giuliano da Empoli, “Os Engenheiros do Caos” (gradiva).          Antonio Marques Mendes: Meloni modelo de síntese? Esperemos que seja mais do que isso. Não basta pôr verniz nos labregos populistas que lideraram a revolta anti-estabelecimento.              Ana Silva Antonio > Marques Mendes: Quando não se sabe combater com argumentos, passa-se directamente para a ofensa.       Isabel silva: Muito obrigada por mais um exímio artigo.             A Sameiro: Um bálsamo para a alma este artigo!!!!Ainda se escreve bem em Portugal!!                Giorgia Meloni: uma mulher forte e de convicções seguras, capaz de defrontar todo o sistema cultural montado pela destrutiva esquerda de desconstrução da sociedade, desconstrução esta que ironicamente tão bem serve os interesses globalistas dos super-ricos do outro lado do espectro. Venham mais mulheres e homens desta estirpe. Precisamos urgentemente deles, para salvar a democracia, a liberdade e a sanidade da nossa sociedade. E dos nossos filhos.                  Maria Nunes: Excelente artigo.             Rui Pedro Matos: Muito bem! Francisco S Ferreira: Georgia Meloni é hoje a mais atraente figura na cena política europeia. Ela traz a esperança de uma Europa de povos renascidos. Precisamos, europeus, de pessoas assim, corajosas, motivadoras, portadoras de Futuro .

 

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