Silvio Berlusconi, que morreu.
Parece que Giorgia Meloni dá boa conta de si. Jaime Nogueira Pinto, justifica a
História da Itália com a clareza e simplicidade precisas, referindo os dados e
os seus actores, e enquadrando-os numa História expressiva de um país
expressivo. God save the “queen” GIORGIA MELONI.
De Silvio Berlusconi a Giorgia Meloni
Foi uma personalidade originalíssima,
cujo sucesso nos pode ajudar a entender, pelas melhores e pelas piores razões,
o mundo em que vivemos. Foi o artífice da direita unida em Itália.
JAIME NOGUEIRA
PINTO, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 17
jun. 2023, 00:1816
A Itália, nação antiga, mas Estado
recente, é uma terra de grande criatividade e originalidade política. Não
falando da História de Roma, da República ao Principado, nem do papel chave de
Maquiavel como pioneiro da “ciência de Estado” e pensando apenas na
modernidade, no século XX, é impressionante o contributo italiano, de um
extremo ao outro do leque ideológico, na inovação teórica e institucional.
É
um italiano, Benito Mussolini, que cria o fascismo, uma
tentativa de síntese entre as duas ideologias fortes do século XIX – o
nacionalismo e o socialismo; como
é um italiano, Antonio
Gramsci, que faz
uma revisão do marxismo-leninismo, em termos de hegemonia cultural, como
estratégia para a conquista do poder nas sociedades modernas; são também
italianos Benedetto
Croce, um fino
teorizador do historicismo e do liberalismo, e Giovani
Gentile, que
aprofundou a construção do Estado fascista na linha do idealismo hegeliano;
e, mais recentemente, é ainda um italiano, Antonio
Negri, a teorizar
uma contestação da
globalização capitalista de uma perspectiva marxista.
No pós-guerra, depois do vinténio fascista, dominado
pelo anti-fascismo, a primazia do espírito criativo e crítico dos italianos
manteve-se, não só na política – onde permaneceu um leque do pensamento e
alternativa –, como noutras artes. Tal
como os grandes mestres do Renascimento, de Miguel Ângelo a Leonardo, tinham
dominado a pintura e a escultura, Visconti,
Fellini, De Sica, Rossellini dominariam a sétima arte – o cinema.
O artífice da
direita unida
A
originalidade política italiana voltou a ser falada esta semana com a morte de Silvio
Berlusconi. Talvez a única característica que o aproxime de
Miguel Ângelo, Leonardo, Visconti, Fellini, De Sica ou Rosselini, seja a de ter sido também, ao seu modo e ao seu
estilo, um pioneiro. Foi, pelo menos, uma personalidade originalíssima, cujo
sucesso nos pode ajudar a entender, pelas melhores e pelas piores razões, o
mundo em que vivemos.
Berlusconi é um fenómeno
da pós-modernidade: um self-made-man que fez fortuna no imobiliário e comprou
uma posição forte nos media, com a Mediaset e o Canale 5, e no desporto-rei,
com a Associazione Calcio Milan. Depois, quase aos 60 anos, em 1994,
iniciou uma carreira política que ocupou a última etapa da sua vida.
Berlusconi,
il Cavaliere, como também era conhecido, marcou decisivamente a história da Segunda República italiana, a que
começou no interregno de 1992-1994, quando os escândalos do Tangentopoli
destruíram a credibilidade dos grandes partidos sistémicos italianos – da Democracia
Cristã ao Partido Comunista. Só essa terra queimada pode explicar o sucesso das
novas forças
emergentes, que iriam compor, à direita, o trio ou o terceto que hoje governa a
Itália.
Na “extrema-direita”, os neo-fascistas ou
pós-fascistas do antigo MSI (Movimento Sociale Italiano), excluídos da respeitabilidade democrática
e relegados para uma votação relativamente marginal, mas fiel, de cerca de dois
milhões de eleitores, não tinham sido atingidos pelo descrédito que caíra sobre
os partidos de um sistema a que não pertenciam. Giorgio Almirante, que, a
partir de 1972, fora por
muitos anos o Secretário-Geral do MSI-DN (Destra Nazionale) tivera como
sucessor Gianfranco Fini, que passaria o Destra Nazionale a Alleanza Nazionale
e procederia a uma renovação da linguagem e da estratégia do partido,
tornando-o mais integrável no novo ciclo político do país. Ao lado da Alleanza
Nazionale, apareceu um novo partido, a Legha Nord, uma força política nascida
da velha oposição Norte-Sul.
Desde a unificação, feita pelo reino de Piemonte-Sardenha e pelos
Sabóia, que a dicotomia Norte-Sul, a chamada “questão meridional”, dominara,
dividira e acicatara os ânimos em Itália. A ideia era que o Norte, sobretudo
Milão e as cidades da Padânia, o Norte industrial, empreendedor, activo,
sustentava e alimentava um Sul ocioso, contemplativo, que vivia dos subsídios
fiscais distribuídos por Roma. A Liga, inicialmente, era separatista, e o
seu fundador, Umberto
Bossi, tinha um discurso identitário, que apelava à
secessão. O partido andava então pelos 8,5% em termos de percentagem eleitoral
nacional.
Foi neste quadro que, em 1994,
Berlusconi fundou a Forza Italia, um partido que aparece inicialmente como
conservador em valores políticos – nacionais e familiares – e liberal em economia.
Nas eleições parlamentares de 1994, a grande surpresa seria precisamente o
resultado da Forza Italia de Berlusconi, que ficaria em primeiro lugar com 21%
dos votos. A Alleanza Nazionale de
Fini, com 13,5%, ficara em terceiro lugar e a Legha tivera 8,5%. A soma dos três partidos dava 340 deputados,
isto é, maioria absoluta num colégio parlamentar de 630. Na oposição ficava a coligação progressista de Achille
Occhetto, reunindo comunistas, socialistas e a esquerda da antiga Democracia
Cristã.
Foi assim que, em 1994, Berlusconi entrou em força na política
italiana. Tinha-se dado, entretanto, uma reforma eleitoral
importante que introduzira um sistema misto – em que a maioria dos deputados (75%, o equivalente a 475 lugares no
Parlamento) passava a ser eleita pelo sistema maioritário unipessoal, e os
restantes 155 pelo sistema proporcional. Era a chamada “Lei
Mattarella”, aprovada por referendo em Abril de 1993. Mas o
mérito de juntar os nacionalistas da NA, os separatistas da Legha e a Forza
Italia numa coligação inédita foi do líder do partido mais votado, Silvio Berlusconi, que chefiaria o governo em 1994
e 1995, de 2001 a 2006 e, finalmente, de 2008 a 2011. A seguir
a Mussolini, Berlusconi seria o político a estar durante mais tempo à frente do
Executivo de Roma.
Pai do
neo-populismo?
O que é que explica o sucesso deste
italiano de língua e costumes soltos com uma fortuna colossal e um grande
império mediático? Como se explica que tenha sido ele o porta-voz, o
protagonista, ou mesmo o inventor de uma nova “política ao gosto popular”, num
país, entretanto, altamente sofisticado?
Talvez
o explique o facto de o novo líder ser pouco “ideológico”, de ter feito uma carreira nos negócios e
na comunicação, conseguindo identificar-se com “o homem da rua” e com o “país
real”, até pela forma franca e quase ostentatória com que exibia excessos,
defeitos e pecados, longe das dissimulações e hipocrisias da “política” e dos
“políticos”. Terá Berlusconi inaugurado um novo tipo de liderança? Terá sido
ele o precursor dos populistas à Trump ou à Bolsonaro?
O facto de estes líderes improváveis
do “povo da Direita” não serem fruto de uma conspiração contra a democracia, de
não serem uma causa, mas, antes, uma consequência, explica também o seu
sucesso. Assumindo-se sem rodeios, souberam opor-se frontalmente ao que os
eleitores achavam então os males maiores: “políticos do sistema”, como Hillary Clinton, encarnação doliberal
chic, numa América onde as classes trabalhadoras e as classes médias
empobreciam com a globalização; ou como Lula da Silva, num Brasil de hipocrisia, retórica de esquerda e
corrupção; ou como numa Itália que, sob
uma oratória “anti-fascista” e respeitável, se achava afogada na corrupção das
negociatas eleitorais.
Os eleitores de direita – patriotas e
religiosos –, confrontados com o globalismo e com o multiculturalismo
desordenados, com os excessos culturais e experimentais da Nova Esquerda e com
a cedência resignada ou rendida das elites tradicionais, mais respeitáveis ou
mais sofisticadas, aos novos delírios anti-Vida, anti-Nação, anti-Religião e até anti-Liberdade das
esquerdas, foram optando por líderes que achavam mais
eficazes na defesa das suas causas. Líderes a quem desculpavam tudo ou quase
tudo: a libertinagem, o exibicionismo, o aventureirismo empresarial e até a
agressividade brutal e por vezes boçal – tudo era melhor que a palavrosa e
danosa hipocrisia reinante.
Não
estando ainda em tempo de sínteses, mas de antíteses, estes políticos, ditos
populistas, encarnaram o uomo qualunque evocado no pós-guerra pelo jornal e o
movimento de Guglielmo Giannini. Berlusconi era o porta-voz desse
“homem da rua”, capaz de dizer sem rodeios o que tinha de ser dito e de se opor
ao que lhe era apresentado como respeitável, desejável, culto, civilizado. E o que
lhe era assim apresentado, a ele e aos italianos, eram os dogmas com que a
Esquerda – imbuída de uma pseudo-superioridade intelectual e moral – conseguira
intimidar as velhas direitas, presas por preconceitos passadistas ou complexos
de inferioridade.
Recep
Erdogan, Boris Johnson, Victor Orban, entram, diferentemente, nesta
galeria. Mas Donald Trump e Jair
Bolsonaro são os mais ostensivos, também pela dimensão dos seus países e
pelo carácter inesperado das suas vitórias.
O mais interessante da herança de
Berlusconi – que, como Donald Trump,
conseguiu reunir o ódio das várias esquerdas e centros sistémicos – foi ter aberto caminho para Giorgia Meloni, uma jovem militante dos pós-fascistas do MSI-DN-AN,
que foi ministra da Juventude do seu segundo governo e que, numa dezena de
anos, conseguiria
fazer dos seus Fratelli o primeiro partido da Itália.
Nos
antípodas do estilo e do perfil do velho sátiro Silvio Berlusconi, Meloni, com o seu ar de menina e a sua energia
polémica, equilibrando os princípios com as exigências da praxis, aparece
à frente do governo de Itália, já não como um modelo de antítese, mas como um
modelo de síntese.
A SEXTA COLUNA ITÁLIA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS:
bento guerra: A Itália está finalmente entregue à decência política Liberales Semper Erexitque: Faz Jaime Nogueira Pinto a
descrição de algo que em português se chama um oportunista. E sim, ele foi o
percursor de Trumpusconi, a sobreposição entre ambos é enorme, desconcertante
até. Trumpusconi chegou apenas mais tarde. Tal como D. Silvio, foi corrido, e
pretende regressar.
Manuel Cabral: Uma vez falecido o velho e impertinente Berlusconi,
que só fez reduzir o lugar europeu da Itália na UE, Meloni é capaz de ficar ao
mesmo tempo com os voto dele e sem a presença dele. Em Portugal, estamos cada
vez mais longe da Europa mas a Espanha parece ir dar a volta a isso em breve. Isabel Amorim: Como sempre excelente! Faço votos para que a Meloni prospere e inspire. Bem
precisamos... Tiago
Bana Franco: Excelente
análise! João Ramos: Sempre muito interessante Jaime, claro como água!!! Graciete Madeira: Mais um excelente texto. Filipe Ramos:
Silvio Berlusconi não foi o pai do
neo-populismo em Itália. Sugiro o livro de Giuliano da Empoli, “Os Engenheiros
do Caos” (gradiva). Antonio Marques Mendes: Meloni modelo de síntese? Esperemos que seja mais do
que isso. Não basta pôr verniz nos labregos populistas que lideraram a revolta
anti-estabelecimento.
Ana Silva Antonio > Marques Mendes: Quando não se sabe combater com argumentos, passa-se
directamente para a ofensa.
Isabel silva: Muito
obrigada por mais um exímio artigo. A Sameiro: Um
bálsamo para a alma este artigo!!!!Ainda se escreve bem em Portugal!! Giorgia Meloni:
uma mulher forte e de convicções seguras, capaz de
defrontar todo o sistema cultural montado pela destrutiva esquerda de
desconstrução da sociedade, desconstrução esta que ironicamente tão bem serve
os interesses globalistas dos super-ricos do outro lado do espectro. Venham
mais mulheres e homens desta estirpe. Precisamos urgentemente deles, para
salvar a democracia, a liberdade e a sanidade da nossa sociedade. E dos nossos
filhos.
Maria Nunes:
Excelente artigo. Rui Pedro Matos: Muito
bem! Francisco S Ferreira: Georgia Meloni é hoje a mais atraente figura na cena
política europeia. Ela traz a esperança de uma Europa de povos renascidos.
Precisamos, europeus, de pessoas assim, corajosas, motivadoras, portadoras de
Futuro .
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