O Programa da Sic “Pretérito Imperfeito” que acabo
de escutar, na continuação do de ontem, e que focou o tema da “política de reparação do nosso passado
esclavagista” me deu o mote para reparar o esquecimento de um texto passado,
de um colega gentil, que valorizou um livro especificamente reparador de tantas
tristes consequências de se ter largado um passado de heróis que hoje são
desvalorizados em favor dos actuais invasores, provindos desses lugares que
desocupámos – (nós, e tantos outros povos europeus, difusores das suas várias
culturas provenientes das línguas clássicas) – dando azo aos seus naturais a virem
ocupar-nos hoje em resposta, para poderem retirar para os seus novos países de distúrbios
vários, as peças que de lá nos vieram, da sua mão-de-obra cultural, que os seus
museus não deixarão de acolher, como prova das suas capacidades civilizacionais
anteriores às que os modernizaram com a colonização feita por heróis passados,
hoje ignorados ou vilipendiados, segundo os modelares sentimentos reparadores
das injustiças, pelas unilaterais generosidades da nossa actualidade. Como sou
pessoa justa, tal como o nosso presidente Marcelo, direi que eu própria sou
possuidora de um elefantezinho de marfim que me foi oferecido, ao qual já falta
o pedestal, em madeira preta, para além de uns cortes, por acidente, na vasilha
que tem sobre o dorso e a cabeça – elefantezinho que não se me dará devolver, mesmo assim, estropiado, a quem o reclamar por direito próprio.
Foi pois, por escrúpulo de reposição,
tal como vi no programa da Sic, que me dispus a repor um texto antigo, que nas
minhas arrumações encontrei, de que já não me lembrava, e que me fez dirigir ao
Victor, in mente, uma saudosa lembrança dos tempos de orientação empenhada, em
estágio de português. Um texto, pois, que vou reescrever na minha gaveta ou
museu habitual – este meu blog colonizador, feito de comentários a textos do
meu prazer diário, ou de revivescências passadistas do meu memorial sedentário.
Como foi este texto de apresentação de “Anuário - Memórias Soltas”, já do século passado, o qual foi mais um livro
condenado ao fracasso, apesar do belo texto de apresentação do Victor, nos seus
sugestivos dizeres, com os quais, naturalmente me identifico, pese embora a
lembrança das afirmações com que a minha mãe por vezes punha travão nas nossas –essencialmente
as minhas, a minha irmã sendo impecavelmente aprumada - alegres fantasias de
gabarolice adolescente: “Gaba-te, cesta rota”. Hoje, que publiquei um livro
– CAFÉ DA MANHÃ se chama, já aqui escrevi sobre ele - que considero igualmente
de excelência, na graça, no saber e no traço estilístico, mas que sei condenado
como os mais das minhas condenáveis fantasias de publicação – vou passar para o
meu “poramaisb”, como de direito, antes
que se perca, este trecho de apresentação do Victor, que
volto a agradecer, 24 anos passados.
APRESENTAÇÂO
DO LIVRO “MEMÓRIAS SOLTAS” DE BERTA
HENRIQUES BRÁS
Por Victor
Vares
(“Padrão dos
Descobrimentos”, 30 de Janeiro de 1999)
«O memorialismo é um género
literário com grande história, quer na literatura nacional quer na literatura
europeia. Desde o memorialismo de tipo ocasional, que revelava aos olhos dos
outros o que os escritores observavam (Garcia de Resende na sua Miscelânea, por
exemplo), até às recordações de experiências de interesses pessoais ou
colectivos dos séculos XIX e XX (Camilo Castelo Branco nas suas Memórias do
Cárcere, Miguel Torga nos seus Diários e José Saramago nos seus Cadernos de
Lanzarote) passando pelo memorialismo de tipo histórico-roteirista (Fernão
Mendes Pinto e a sua Peregrinação, onde se propunha dar conta do “discurso da
vida”) este género é perpetuado ao longo da nossa história literária por
pessoas que, com os seus olhos de observação, perscrutadores de uma sociedade,
vão dando a conhecer partes que, se não fora a sua análise reactora, cairiam
para sempre no esquecimento porque não seriam lembradas.
Disse um dia Berta Brás que “o
Homem é uma estranha criatura, de variadas facetas, que merece sem dúvida, a
análise e o interesse, a estranheza e a admiração, o repúdio e a aceitação”. É
mais do que verdade. Por isto, o género memorialista, a par com o ensaístico, é
o único que, por nascer de uma subjectividade, e ser pleno de uma cultura
urbanística, contribui para uma construção da própria história, de um certo
espírito universal.
No seio desta pequena matéria
histórica insere-se a obra de Berta Brás. Pequena na sua quantidade, esta obra
“Memórias Soltas”, ganha em qualidade ao desenvolver-se ao longo destes tempos,
ao acompanhar alguns dos acontecimentos dos últimos anos do nosso país.
É uma obra onde florescem
constantemente reproduzidas ideias múltiplas como as veleidades da política, as
mutações da educação nacional, as matérias livrescas, os momentos da vida
pessoal e outros da sociedade. E fá-lo com rara habilidade, movimentando alguns
tipos sociais característicos desta nossa estranha e mutativa sociedade, sem extremismos,
com lucidez. Com realismo. Trata-se de uma obra realista. Berta Brás relata-nos
com olhos ora faiscantes, ora maliciosos, ora profundos, uma série de tipos e
de situações nunca verosímeis porque existem ou existiram de verdade: a
arrogância de certas pessoas, a saudade regenerativa de um povo, a participação
em concursos populares, o carinho pelos animais, as entrevistas dos media, os
casos da vida, o feminismo assumido, o patriotismo, a luta pelo respeito no
trabalho. Tudo isto observado sem especulações analíticas, mas com subtilezas
reformistas.
Considero, pois, “Memórias
Soltas” uma obra despretensiosa como o próprio nome indica, mau grado a
ambiguidade irónica da expressão. Essa soltura onde sempre se baseou para
transmitir com humildade e modéstia os seus pensamentos, desarreigados de
qualquer arrogância literária. Soltura esta, que nos surge através de uma
linguagem serena, justa e verdadeiramente inteligente. Como? Pelos caminhos da
ironia, da ausência de ilusões – mesmo quando essas parecem surgir, - da visão,
do comportamento dos outros em face da sua própria consciência (Cf. Cesário
Verde), de uma técnica picaresca (Cf. Aquilino Ribeiro e F. Mendes Pinto),
temperada por vezes com uma pitada de ternura por aqueles que a rodeiam… Tudo
isto, depois de saboreado, atinge visões analíticas ora acres, ora doces, mas
todas elas com um excelente travo na voz.
“Memórias Soltas” é, pois, uma
súmula de apontamentos de um espírito intensamente reflexivo, dirigido a uma
reformulação constante - apontamentos estes nunca monótonos, porque atingem de
forma sábia e certeira aquilo que não se deve deixar de acertar em literatura:
as nossas vidas. Por isso, esta obra possui, quanto a mim, também dentro de um
cosmos que é a nossa sociedade, um carácter universal. Como toda e qualquer
obra memorialista. Ou como nos é dito algures no livro a propósito de uma outra
obra: é de uma dimensão “risonhamente desmistificadora”.
Ou ainda, como disse uma vez a
propósito da sua escrita:
“Ela possui a necessária clareza
e elegância de pensamento que vai direita ao coração dos homens”.
Acho que merece o realce.
Realçar é a sua virtude
fundamental.»
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