O “não
se muda já como soía” - da versão renascentista, mais precisamente
camoniana, aplicado ao radicalismo português da questão, nestes tempos depurados
pelo alastramento da simpatia humanitária com o respectivo alargamento fraternal
à restante irmandade zoológica, decididamente sustentada pelos saberes e
sabores poderosos provindos do exterior, (juntamente com os respectivos euros proteccionistas
do nosso hábil embora sinistro “carpe
diem”) - vigora em força civilizacional, como se pretende e está feito.
As tergiversações presidenciais a esse respeito, anteriores à sua decisão final
fatal, de aprovação da lei, bem demonstram o cinismo presente no presidente,
como constante actuante, nos seus saracoteios salerosos por esses mundanos sítios de
encontros e encantos vários. Enquanto duram… Grande
cidadão, Ribeiro e Castro.
Eutanásia: morte e mudança de civilização
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO Advogado
e cidadão
OBSERVADOR,18
jun. 2023, 00:126
1Há um mês, logo após a aprovação da lei
da eutanásia na Assembleia da República, escrevi um artigo criticando a má
sorte do artigo 24.º, n.º 1 da Constituição (“A vida humana é inviolável.”), que jaz
morto e enterrado. Intitulei-o de Requiem pelo
artigo 24.º. É um facto
que poderá ter terríveis consequências.
Rever a Constituição para remover esse
obstáculo e, a seguir, fazer a lei que aprovaram não é a mesma coisa que
aprovarem esta lei, fazendo de conta que o obstáculo não estava lá. Se se
revisse a Constituição para acomodar o propósito legislativo, alguma coisa nova
teria ficado na Constituição com valor de garantia. Assim, deixando-se a
Constituição como está, mas ignorando-se o que lá está, ficámos sem a mais leve
garantia em matéria de vida humana.
Quanto ao direito à vida e à Constituição, entrámos em regime
fora-da-lei. No futuro,
pode imperar o arbítrio, segundo as concepções que, a cada momento, o poder
estabelecido subscrever e impuser. A porta ficou aberta. Deixou de haver limite
constitucional – o que lá está deixou de ter préstimo. O processo legislativo
mostrou falta de respeito pelo comando “a vida humana é inviolável” e
não houve sequer o cuidado de o ponderar. Esse respeito não voltará, a menos
que seja expressamente resgatado. Triunfou a jurisprudência da
indiferença.
2O meu artigo suscitou, em publicações
electrónicas, alguns comentários reveladores, que tomo como representativos de
uma visão diferente da minha.
O leitor Gil Teixeira comentou-me:
“Estimado, vou começar a rezar para que um dia não seja confrontado com um
estado de saúde pessoal terminal, sofrendo lancinantemente, e queira antecipar
a partida com recurso a um método não doloroso.”
Bento Guerra (que creio
não ser nome verdadeiro) escreveu: “Manipulam e deturpam o sentido da lei,
que é o de descriminalizar os profissionais que intervêm no abreviar da morte,
a dar-se antes que o Deus deles “decida”. Com gente desta, uma sociedade não
progride.”
E Jorge Lopes argumentou: “100%
favorável à Eutanásia e/ou ao suicídio assistido em determinadas situações…
Ninguém com esta lei vai contra o direito à vida, apenas dá a possibilidade a
quem esteja numa situação de doença incurável e mortal no curto prazo de pôr
termo ao seu sofrimento de forma confortável ao morrer sem sofrimento e num momento
pelo próprio decidido.”
Todos os três acreditam que a lei vai ao encontro do pedido de
alguém que, em sofrimento tremendo, com doença fatal e a morte à vista, quer a
antecipação da morte. O primeiro: “estado
de saúde pessoal terminal, sofrendo lancinantemente, e queira antecipar a
partida”. O segundo: “descriminalizar
os profissionais que intervêm no abreviar da morte”. E o terceiro: “situação de doença incurável e mortal no
curto prazo de pôr termo ao seu sofrimento”.
Vêem-se as consequências de esta lei não ser uma lei democrática. O PS, tendo a lei em apreciação desde 2015 a 2023,
cometeu a proeza de nunca a levar à apreciação democrática, fosse nas eleições
legislativas (em que sempre a esconderam), fosse em referendo (que sempre
rejeitaram). Não surpreende, por isso, que os cidadãos – mesmo entre os mais
atentos e informados – não conheçam o que foi realmente aprovado e se prepara
para entrar em vigor.
Agora, com o texto da lei já publicado (Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio), podemos falar da letra de lei e não de projectos,
conjecturas, intenções, narrativas. O
essencial da previsão legal é a “morte (…) por decisão da própria pessoa, (…)
em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de
gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por
profissionais de saúde.” A lei deixou de ter qualquer foco na
doença fatal, afastou a necessidade de proximidade da morte e enxotou em absoluto
as menções à “antecipação da morte”.
Aqueles cidadãos que me interpelaram
têm ainda no espírito a previsão do projecto de lei do PS em 2018:“a
antecipação da morte por decisão da própria pessoa, (…) em situação de
sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, quando
praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” Nada a ver com a lei de hoje.
Era
ainda a previsão que, no início de 2021, constava do primeiro texto aprovado
pela Assembleia da República: “antecipação da morte (…) por decisão da própria
pessoa, (…) em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de
gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e
fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” Todo o
procedimento era ainda designado de “antecipação da morte”,
ocorrendo em quadro de “sofrimento intolerável” e, em caso de doença, devia ser “incurável
e fatal”.
Mas já não era exactamente a previsão no
segundo texto aprovado, no final de 2021: “morte (…) por decisão da própria
pessoa, (…) em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de
gravidade extrema ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por
profissionais de saúde.” Mantinha-se,
nos casos de doença, a previsão de ser “incurável e fatal”, mas haviam sumido a
ideia e as palavras de “antecipação
da morte”.
Em 2023, na lei publicada,
desapareceu o resto: além de
não estarmos num quadro de morte à vista (e, muito menos, iminente), a doença
passou a ser “grave e incurável”, sem necessidade de ser “fatal”. Por seu
turno, o sofrimento foi também sucessivamente atenuado: em 2018,
“extremo”; em 2021, “intolerável”; na lei de 2023, “de grande intensidade”.
As pessoas que pensam como Gil Teixeira, Bento Guerra e Jorge Lopes,
estão enganadas, porque foram enganadas por quem fez esta lei. Esta não se
destina só a doentes terminais, em sofrimento lancinante, que peçam a
antecipação da morte. A lei já nem foca sequer estas situações, abrindo a administração da morte a uma gama
de casos muito mais vasta.
3As
perguntas que se mantêm são estas: Alguém ouviu uma explicação de porquê e para
quê se abandonou a ideia central de “antecipação da morte”? Alguém ouviu por
que razão se afastou a previsão de “doença fatal”? Alguém ouviu os fundamentos
para, consecutivamente, se atenuar o grau do sofrimento? A resposta é simples: ninguém
ouviu, porque ninguém explicou. Nunca esqueçamos o essencial: esta lei não é uma
lei democrática. Tudo pôde ser feito sem discutir com os eleitores e, portanto,
sem necessidade de explicar o essencial.
O emblema parlamentar deste processo é a
Assembleia da República, em plenário, ter dedicado meia hora para aprovar uma
das últimas versões da lei, como contou o Expresso: “a quarta versão da legalização da eutanásia só foi distribuída no
Parlamento na quarta-feira e a agenda desta sexta tem 30 minutos para o debate.” Estamos longe da Assembleia da República dos
“bons velhos tempos”. Hoje, reina o império das grelhas, que
comprime o debate democrático e não autoriza debates alargados, em dois ou três
dias, para discussão exaustiva de questões mais profundas, sensível e complexas.
A problemática mais sensível das leis
da eutanásia é, como se sabe, a “rampa deslizante”: a
primeira lei, mais restrita, abre uma alameda por onde novas leis vão alargando
consecutivamente o seu objecto e ampliando o campo de aplicação.
Os promotores desta legislação em Portugal ou negam este risco, ou
procuram fugir-lhe. Mas a rampa
deslizante é uma dinâmica tão inerente a esta legislação que, mesmo antes de
termos lei, os conceitos escorregaram rampa abaixo de 2018 para 2021 e, depois,
de 2021 para 2023, como mostrei acima. Teresa de Melo Ribeiro abordou exaustivamente este facto no artigo A eutanásia já está a deslizar pela rampa abaixo e
ainda nem a lei viu as trevas do dia e eu também o abordei no artigo A
hora da morte. Tratarei da rampa deslizante noutro artigo, amanhã,
para vermos o que nos espera.
Aqui, quero chamar a atenção para
estarmos num ponto de mudança de civilização. Leis como
esta (e outras similares, aprovadas desde o princípio do século no mundo
ocidental) indiciam claramente a mudança. Sabemos como a atitude perante a
morte, que influencia a atitude perante a vida, e vice-versa, integra o núcleo
central dos valores de uma civilização e alimenta os seus tabus. Ora, pela
primeira vez na História, colocamos a provocação da morte na linha do que é
disponível e a organizar a sua administração pela sociedade e pelo Estado num
certo quadro de conveniências. E também pela primeira vez na História, o Estado
prescreve e impõe que este serviço é assegurado, não por profissionais
específicos, separados da classe médica, mas como prestação médica e dentro do
sistema de saúde.
Nunca
aconteceu uma mudança tão profunda e tão radical. Em Portugal, acontece porque
o artigo 24.º da Constituição foi violado – salvo se os pedidos de fiscalização
sucessiva da constitucionalidade da lei surtirem efeito positivo. Noutros
países, tem acontecido por decisões políticas e jurídicas do mesmo tipo e,
depois, pela dinâmica imparável da rampa deslizante. A nova civilização gera uma
nova cultura, que puxa continuamente para diante, cavalgando a disponibilidade
sanitária da morte. É a nova resposta para velhos, doentes, acidentados,
incapacitados, pobres.
Ainda não conseguimos conhecer
tudo da nova civilização. É muito diferente, mesmo radicalmente diferente do
que sempre conhecemos. Nunca encarámos um hospital ou uma clínica como um sítio
para irmos lá morrer. Nunca olhámos um médico como alguém que nos tira a vida.
Nunca encarámos o suicídio como acto que devemos ajudar ou em que devemos ser
ajudados. Nunca (ou só muito raramente) fizemos certa a data da morte. E é também
muito diferente o quadro de valores dessa nova civilização, de que já se vê
alguma coisa. É preciso prestar atenção ao que se passa noutros países, porque
é para aí que estamos a ser empurrados.
COMENTÁRIOS:
Susana Ferreira: agora
Isto! José
Carvalho: Estimados defensores da nova lei: vou
começar a rezar para que um dia, desfrutando duma excelente reforma e de uma
boa esperança de vida, não sejam confrontados com que o Estado queira
antecipar-lhes a partida com recurso a um método não doloroso. Ediberto
Abreu > José Carvalho: Isso é conversa fiada para assustar crianças...leia
primeiro a lei e depois então comente. Liberales Semper Erexitque: Não houve ou há qualquer mudança de civilização, é a
mesma velhinha Civilização Ocidental a que continuam a pertencer a Suíça, os
Países Baixos, a Espanha, Portugal, e todos os que permitirem que se ajude a
morrer em determinados casos - trata-se de um avanço civilizacional, que tem
perigos, mas não deixa de ser um avanço. Falar de eutanásia a propósito da lei
em vigor é demagogia sem mais, pois na quase totalidade dos casos essa lei
apenas permite que se ajude o suicídio. Falar em instituições médicas onde se
mata é mais demagogia, pois a ajuda prestada segundo a lei em vigor é prestada
ao domicílio (à escolha do paciente, segundo me lembro), coisa que considero
extremamente positiva. Tem alguma razão José Ribeiro e Castro no que respeita a
uma menor restrição da lei em vigor em relação aos primeiros projectos,
sabotados pela ICAR e por ele mesmo. Talvez se em vez dessa sabotagem tivesse
havido uma oposição construtiva a lei fosse mais restritiva. Como José Ribeiro
e Castro sabe e não se cansa de dizer, as leis podem ser mudadas, e se por
hipótese se constatar que estão a ser ajudadas pessoas a morrer que a opinião
pública considera esmagadoramente que não deveriam ser ajudadas, a lei será
alterada de forma a ser mais restritiva. A insistência de José Ribeiro e Castro
em atribuir a lei em vigor ao PS é mais demagogia, pois ela foi aprovada por
larguíssima maioria parlamentar, e não apenas sequer com os votos da esquerda.
Neste mesmo jornal, em que os leitores são preponderantemente de direita, e até
demasiado para o meu gosto, José Ribeiro e Castro encontrou sem dificuldades
múltiplos comentários de pessoas favoráveis à morte assistida. Ediberto Abreu: Está difícil saber perder em democracia... Carminda Damiao: Artigo bem fundamentado. Parabéns. João
Ramos: Muito bem!!!
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