sexta-feira, 30 de junho de 2023

Um email do Ricardo


Que agradeço, lembrando velhas leituras de velhos prazeres, ainda hoje retomados, caso aconteçam.

CRÍTICA | ASTERIX NA CÓRSEGA

Por RITTER FAN 5 de agosto de 2020 784 views

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Astérix na Córsega é um dos mais diferentes álbuns da série. Ao mesmo tempo que, por ser o 20º, ele ganha um ar comemorativo, ele também apresenta uma história que é particularmente hermética e, por conseguinte, exige esforço para quem não for francês ou conhecer muito a cultura francesa. Mesmo assim, o resultado é altamente divertido e, uma vez ultrapassada a barreira do estranhamento inicial – que, em alguns casos, exigirá até pesquisa para melhor contextualização – ele pode até mesmo ser considerado como um dos melhores dentre a colecção já de altíssimo nível capitaneada por René Goscinny e Albert Uderzo até esse ponto.

Para começar, não há o famoso mapa da Gália com a aldeia dos irredutíveis gauleses sob uma lupa. No lugar dessa clássica abertura, há um mapa da Córsega, paradisíaca ilha do Mediterrâneo ao sudeste da França e a oeste da Itália que, dos séculos XIII ao XIX, foi governada pela República de Gênova, chegando a auto-proclamar-se uma república de língua italiana. No entanto, ela foi cedida como pagamento de parte de uma dívida ao Imperador Luís XV da França que, em 1769, anexou a ilha a força. Curiosamente, esse mesmo ano – precisamente no dia 15 de agosto – ficou marcado para sempre como sendo o do nascimento de seu mais ilustre habitante, ninguém menos do que Napoleão Bonaparte, que se tornaria Imperador da França no começo do século seguinte. Mas, voltando ao mapa, Goscinny e Uderzo estabelecem que os romanos pontilharam a ilha de acampamentos romanos, mas somente em seu litoral, já que as vastas florestas corsas os fazem se perder.

Culturalmente, porém, o legado corso vai além de Napoleão, com seus habitantes sendo jocosamente lembrados como nacionalistas ao extremo, orgulhosos, preguiçosos (eles adoram sestas, como os espanhóis) e brigões, resolvendo tudo na base da faca (inclusive, o termo vendetta – vingança – é popularmente reconhecido com vindo de lá, existindo até mesmo uma famosa faca com esse nome), além da onipresença de florestas na ilha repletas de porcos selvagens (não javalis), castanhas e, claro, a fabricação do famoso queijo casgiu merzu que realmente fede demais (mas é uma delícia!) como vemos feder a ponto de explodir o navio dos piratas. E é claro que Goscinny, provavelmente lambendo os beiços, amplifica os estereótipos corsos e cria um cenário em que a Córsega é outro protetorado romano selvagem e incontrolável, com seus habitantes capazes de ganhar brigas e duelos apenas com o olhar e com um “dramalhão mexicano” de arrancar excelente risadas. Uderzo, por seu turno, pegando esse maravilhoso gancho, desenha todos os corsos – sejam homens ou mulheres – como pessoas de cabelo preto lambido (como mafiosos), postura altiva e uma carranca séria que somente muito raramente oferece um discreto sorriso.

Mas a história do álbum começa de maneira bem diferente e inusitada, no dia em que nossos queridos gauleses comemoram anualmente a vitória na Batalha da Gergóvia – a que Vergingetórix varreu as tropas romanas, somente para, no mesmo ano, ser demolido na Batalha de Alésia – com convidados de diversas regiões e países. É nesse ponto, logo no início da narrativa, que o aspecto comemorativo do álbum fica evidente, já que vemos a chegada da família Conchampiñon Y  Champiñon de Asterix na Hispânia, Petissuix e sua esposa de Asterix entre os Helvéticos, Cinemapax, Zebigbos, Mac Arronix, Relax e Otorrinolaringologix de Asterix entre os Bretões, Alambix e sua esposa de O Escudo Arverno, Docontrix de Asterix Gladiador e, finalmente, Mudaodix, Beladecadix e Cabeçudix de Uma Volta pela Gália com Asterix. Ou seja, além de exigir conhecimento específico sobre a Córsega, a dupla criativa ainda faz com que esse volume tenha seu verdadeiro valor só compreendido por quem porventura tenha lido um bom número dos anteriores. A festa, além de banquetes, tem como ponto alto, claro, o espancamento dos romanos dos acampamentos que cercam o vilarejo, com os romanos, claro, desaparecendo nessa época justamente por saberem disso.

Mas, a chegada surpresa de um destacamento romano carregando a tiracolo o corso exilado Buonapartix (a tradução brasileira do nome do personagem já entrega a referência a Napoleão, algo que fica mais para a frente apenas, já que o nome original dele é Ocatarinetabellatchitchix), acaba impedindo que os legionários de Babaorum fujam, para a alegria dos gauleses e seus amigos que se refastelam com a poção mágica de Panoramix. Mas é Buonapartix que abre o espaço para a segunda parte da narrativa, já que Astérix e Obélix – além de Ideiafix – encarregam de levá-lo de volta à sua ilha natal porque ficam curiosos para ver como é que os corsos enfrentam os romanos. O retorno à ilha a partir do porto de Massília (Marselha) com o uso do navio dos piratas – que, hilariamente, fogem silenciosamente de lá quando, à noite, descobrem que dois dos passageiros são Astérix e Obélix – serve de guia turístico para todas as dezenas de estereótipos corsos que Goscinny e Uderzo distribuem ao longo das páginas restantes, com Buonapartix tendo a missão de impedir que o pretor romano leve a pilhagem de seu território para Roma.

A forma como a população corsa é abordada lembrará muito o estereótipo do siciliano mafioso e essa conexão não é sem querer, já que existe uma forte conexão entre essas duas ilhas do Mediterrâneo, com momentos hilários como quando Brutamontix se sente-se ofendido porque um legionário romano simplesmente fala com sua bela irmã e sente ofendido novamente quando esse mesmo legionário diz que não quer nada com ela. É também na Córsega que há diversas referências diretas a Napoleão Bonaparte, inclusive à Batalha de Austerlitz e à célebre menção, pelo próprio, de que é capaz de sentir a proximidade à sua terra natal apenas pelo olfacto (e isso sem contar com a mão dentro da veste, lógico!).

Estruturalmente diferente dos demais álbuns por conter três banquetes, por não mostrar o mapa clássico, substituindo-o pelo da Córsega cercada e por conter uma introdução dos autores sobre a ilha em si, além de servir de comemoração pela chegada ao 20º álbum (aliás, o último publicado inicialmente em capítulos na revista Pilote) Astérix na Córsega é um deleite que, para ser mesmo um deleite, exige conhecimento prévio razoavelmente extenso – mais do que o normal – sobre uma hoje região administrativa da França que não é lá muito famosa fora do território francês. Mas o leitor de Astérix é um leitor que certamente gosta de ser desafiado, pelo que esse pequeno detalhe certamente não atrapalhará o divertimento e as diversas lições de história costumeiras já nessa maravilhosa colecção.

Asterix na Córsega (Astérix en Corse, França – 1973)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote, Dargaud (serializada entre janeiro e maio de 1973 e lançada em formato encadernado em 1973)
Editoras no Brasil: Editora Record (em formato encadernado)
Páginas: 48

 

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