Que nesta pátria reduzida, há ainda
personagens que, pelo seu passado patriota e de cultura e a sua coragem real, não
se envergonham de defender e aclarar esses valores de respeito pátrio, como o
faz JAIME NOGUEIRA PINTO, através de demonstração sábia e clamorosa, que poderá
servir de apelo a uma responsabilização presente e futura dos que, apesar de
tudo, vão dando o seu contributo aclarador contra as impertinências de idiotia
e marasmo que nos é comum, e que até neste dia feriado nos é revelado nas
actuações marginais de um primeiro-ministro ou as baboseiras retóricas sem
consistência de um presidente da República, que não se importa de expor o povo
português ao ridículo, nos seus discursos exaltantes e deslavados, de afecto
patrioteiro e lorpa, ali mesmo no sítio onde o “Adamastor” augurara desastres a
heróis futuros da epopeia marítima, que arriscaram as suas vidas em
inteligentes e arriscadas façanhas de alargamento espacial, que o épico anotou,
por as ter vivido também, nesse mundo já então descoberto. Que escritores como
JAIME NOGUEIRA PINTO, de honradez impoluta, ajudem à clarificação dos factos, e
à clarividência de um povo, que se vai sumindo, na baboseira e no erro.
Os dias de Camões
Se há censura capaz de cancelar o nosso maior poeta – cujas
comemorações sobreviveram a quatro regimes – é a que por aí se anuncia e
prenuncia.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 10
jun. 2023, 00:1915
O século XVI é um século decisivo na História da
Europa e, consequentemente, na História do mundo, já que, até à Segunda Guerra
Mundial e à descolonização, isto é, até há meio século, o mundo foi
eurocêntrico.
Há
quinhentos anos, dava-se a proclamação da secessão luterana em Wittenberg, em
1517, e redigiam-se dois tratados políticos antagónicos e fundacionais – O Príncipe
de Maquiavel (1513) e a Utopia de Thomas Morus (1516). Poucos
anos depois, batalhavam, de Marignan a Pavia, pelas terras de Itália, Francisco I, Valois, pela França, e Carlos V,
Habsburgo, pelo Império. E o século
que assim abria e que foi também o século de Camões, ia fechar com as mortes,
no mesmo ano de 1616, de dois génios das letras, Miguel de Cervantes e William Shakespeare.
Neste tempo e neste país, mergulhados na douta e menos douta
ignorância tolerada e até encorajada, é difícil pensar e problematizar outros
tempos históricos e outras realidades, particularmente tempos e realidades em
que Portugal foi maior do que é hoje. Até porque a pequenez reinante se dá mal
com alguma grandeza passada, e procura, com aplicação, ensombrá-la.
Que,
consciente ou inconscientemente, não escapemos a estender ao passado a nossa
história pessoal e o nosso tempo e a sua teia de valores e princípios éticos e
políticos, pode ser inevitável; mas fazê-lo para cumprir uma agenda ideológica
simplista, sem qualquer pejo, conhecimento de causa ou preocupação de verdade,
compreensão e rigor, é já outra coisa, e totalmente diferente. Assim,
numa época em que a moda da vitimização do oprimido e da acusação e contrição
do opressor cai num pântano de alienação acrítica, também aqui se tenta pintar
a época das descobertas e das conquistas ultramarinas como um tempo de mera
exploração, tirania, colonização, imperialismo, racismo e escravatura. E, consequentemente, os heróis desse
tempo como meros exploradores, tiranos, colonialistas, imperialistas, racistas
e escravocratas, a milhas de distância da tolerância, da inclusividade, da
paridade, da clarividência e da superioridade moral de quem assim os pinta. Do
infante D. Henrique a Vasco da Gama, de Afonso de Albuquerque a D.
João de Castro, ninguém escapa.
Em
tempo de pré-celebrações, estando as forças vivas do regime, os meninos do Tuttifrutti
e os fura-pneus verdes já perfilados para salvar o planeta e a democracia das
energias fósseis do “iliberalismo”, há que estar particularmente atento nesta
matéria. Porque uma coisa é certa: perante a novela a que vimos a assistir e a
crise político-social – que as melhorias da macroeconomia podem atenuar, mas
não apagam –, denegrir o passado, todo o passado, para
dourar o presente é e vai ser o caminho a seguir. Às
vezes exagerando, como na campanha do “Não Podias”, que teve de ser abafada,
mas não pondo nunca em causa a estratégia de fundo.
Voltando ao século XVI e à sua riqueza pensante e estratégica: os humanistas críticos, como o realista Maquiavel e o
idealista Morus, tiveram bem a consciência do tempo que viviam e, exaltando a
liberdade dos Antigos, traçaram nos seus escritos os dilemas que se lhes
apresentavam – entre autoridade e liberdade, entre
monarquia e tirania, entre bem comum e maioria –,
pesando os perigos do desgoverno e a tentação do despotismo.
Foi este Humanismo Crítico
que dominou os primeiros anos do século XVI europeu, com Maquiavel, com
Guicciardini, com Morus, com Erasmo. Um humanismo que continuou depois com Montaigne,
com Cervantes, com Shakespeare. Entre os portugueses, salientou-se Damião de
Goes, “estrangeirado”
e viajante nos seus percursos europeus e no convívio com protestantes e outros
“livres-pensadores”, o que lhe valeria alguns problemas com o Santo Ofício,
instalado por cá desde 1536. Não seria o único.
Luís de Camões foi, em
pleno sentido, um humanista crítico. Diz-se
agora que o Estado Novo manipulou os valores camonianos para os pôr ao serviço
dos seus princípios ideológicos – Deus, Pátria e Família –, e que o
cristianismo e o patriotismo do poeta terão sido sobrevalorizados. Ora
a realidade é que o culto de Camões e do patriotismo de Camões, incentivado por
liberais como Almeida Garrett e Herculano, vinha já da monarquia constitucional
e iria até ser uma das pedras de toque da campanha republicana. Em 1880, no terceiro centenário da morte
de Camões, Teófilo
Braga, figura
importante da intelectualidade e do movimento republicano, usaria a memória do
“poeta da pátria” para acusar a dinastia de Bragança de falta de patriotismo; e a República
faria do 10 de Junho feriado municipal em Lisboa. Depois, a
Ditadura Militar, em 1929, consagraria o dia de Camões como feriado nacional.
Apesar dos eventuais usos
propagandísticos dos vários regimes, o Portugal pós-revolucionário acabaria por
manter o 10 de Junho como Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades
Portuguesas.
Jorge Borges de Macedo, nos seus
vários escritos sobre os valores e as ideias políticas de Camões, diz-nos que o Poeta se integrava plenamente num
Humanismo Crítico europeu que incluía um pessimista antropológico céptico, como Maquiavel, um mártir católico utópico, como Thomas Morus,
e um moderado autónomo, como Erasmo de
Roterdão.
Camões considerava a
comunidade histórica portuguesa independente como o valor maior; o poder real
como legítimo, desde que ao serviço de Deus e da Pátria; a História como o
espaço temporal onde a comunidade era posta à prova; e o povo, o “povo
pertinaz”, como um colectivo capaz de pedir o sacrifício da “linda Inês”, mas
também de seguir Nuno Álvares Pereira, nos Atoleiros e em Aljubarrota. Para
ele, a História dessa comunidade, como toda a História, não vivia sem
controvérsias e resistências externas e internas: Baco
é, nos Lusíadas, o inimigo jurado dos portugueses no caminho marítimo para a
Índia, onde há perigos míticos e perigos reais – como a Tempestade ou o
Adamastor. E os que
se opõem à decisão da expansão, salientando os seus riscos (não
esqueçamos que o infante D. Pedro, cujo damnatio memoriae foi consagrado por
Zurara, era crítico da expansão e, mais depressa, um europeísta) estão na argumentação complexa do “Velho do Restelo”, que dá voz à problemática ideológica e
geopolítica da Europa e da Cristandade de então e é tudo menos um velho céptico
e choramingas.
Movido por paixões, audacioso, guerreiro, marginal, soldado de Marrocos
e marinheiro de dois oceanos, Camões alerta-nos para os malefícios do ouro e da corrupção
apontados por Morus na Utopia; e para o dilema, tão caro aos humanistas
críticos, entre o poder do Rei, essencial garante da ordem, e os perigos da
tirania. E se
exalta a “Santa Fé”, denuncia os sacerdotes que a traem e não a pregam; se
exalta a epopeia e os seus heróis, denuncia os nobres decadentes e aconselha os
novos-ricos usurários a porem “na cobiça um freio duro”. Conhece bem a cultura
clássica, de Homero a Virgílio, e as várias frentes do Império da “ditosa
pátria sua amada”. É um homem do seu tempo e das contradições e conflitos desse
tempo, que tantas vezes a Fortuna decide.
Compreende-se que tudo isto seja
areia a mais para o maniqueísmo infantil dos novos censores e para as
melindrosas sensibilidades ensimesmadas dos modernos “sensitivity readers”
(vigilantes leitores, num tempo em que escasseiam leitores). Talvez a dificuldade de navegar por entre o
engenho e arte do Poeta para reeditar Os
Lusíadas em edição
expurgada salve Camões – ou então, o candidate à facilidade do cancelamento.
Porque se há censura capaz de cancelar o nosso maior poeta – humanista crítico, cristão e patriota,
cujas comemorações sobreviveram a quatro regimes – é a que por aí se anuncia e prenuncia.
A SEXTA COLUNA CULTURA LIVROS LITERATURA
COMENTÁRIOS:
bernardino o camarada: Muito obrigado , por este
magnífico texto. bernardino o
camarada: "Até porque
a pequenez reinante se dá mal com alguma grandeza passada, e procura, com
aplicação, ensombrá-la." Sábias palavras mestre Jaime. JM
Azevedo: Brilhante!!! João
Floriano: Os dias de Camões ou os dias sem Camões? As
preposições são palavras minúsculas mas com um poder imenso na modificação do
sentido. O que estamos a ter hoje, 10 de junho de 2023 é um dia de Camões mas
sem Camões. Um dia que não honra de modo algum uma figura ímpar da diáspora
portuguesa. Basta ver as três personalidades maiores do estado português e como
elas se comportam. Camões não merecia que transformassem o seu dia numa
palhaçada ridícula com posters de focinho de porco, uma esposa em gritinhos
estridentes, um PM a chamar racista a um professor sem para tal haver motivo,
um ministro classificado de madeira podre a precisar de ser rapidamente
removida da árvore, certamente ela própria já sem salvação da praga que a
corrói, semelhante à lagarta processionária altamente venenosa. João Ramos: Excelente texto para o dia de hoje, o 10 de Junho, e para chapar na cara
dos decadentes e incapazes que nesta altura pululam este grande país que tanto
querem tornar pequeno… Henrique Frazão: Excelente como sempre. vitor Manuel: Excelente trabalho de J.N.P., a incutir, nos portugueses
de bem, orgulho nesta Nação gloriosa, com o alerta do último parágrafo para
mais uma criminosa campanha. Felizmente, há um bobo da corte cada vez mais
atento... José Baeta > vitor manuel: Infelizmente, um bobo
"atento", mas sem graça nem engenho. José Pinto de Sá: Excelente texto. Viva Portugal! Francisco
Almeida: Gostei muito do
texto com uma única excepção. A referência ao infante D. Pedro, que inverte a
sua posição em relação ao infante D. Henrique. TIM
DO Á: Portugal: A
pequenez reinante dá-se mal com alguma grandeza passada e procura, com
aplicação, ensombrá-la. Certíssimo, JNP. Touché. Fernando
CE: Gostei muito do texto. Infelizmente, a maioria da direita pensante tem
medo de não ser aceite pela esquerda. Até onde irá este falso “progressismo”? Ainda por cima só traz mediocridade
e irresponsabilidade. Veja-se o governo do
Costa, em que quase ninguém escapa. João Floriano > Fernando CE: Verdade, e eu não entendo esse
medo de não ser aceite porque não há qualquer hipótese de a esquerda alguma vez
aceitar a direita e muito menos agora com esta deriva woke radical. É como se
uma ovelha estivesse á espera de ser aceite por um lobo. Este só tem um
propósito em relação à ovelha: acabar com ela. TIM DO Á: A grande diferença é que os
republicanos da primeira república eram patriotas e os de agora estão vergados
aos interesses estrangeiros e não há um desígnio nacional a não ser a agenda
dos estrangeiros. Quando assim é, um país já não existe e afunda-se. É o que
está a acontecer em Portugal. A nação portuguesa morreu. A não ser que se possa
dizer que a nação portuguesa é o Benfica ou o futebol. É o único campo onde
ainda vive, para nossa desgraça. Maria Nunes: Excelente artigo. Camões é
Grande. Os wokistas são pequeninos. Não têm envergadura para minimizar o nosso
genial Poeta. TIM
DO Á > Maria Nunes: Mas têm o dinheiro dos liberais
meta milionários globalistas norte americanos. E com ele manipulam e compram
tudo: a esquerda, o centro e a direita. Estão todos no seu bolso. Com a
excepção da direita conservadora, a que, para a diabolizarem, chamam de
radical. Maria Nunes
> TIM DO Á: Não sei se estou a ser ingénua,
mas o dinheiro não compra tudo. O que seria da Humanidade sem Shakespeare,
Leonardo, Camões, Pessoa, Régio? E tantos outros. Ficaríamos definitivamente
mais pobres. TIM
DO Á > Maria Nunes: Essa é a esperança. Henrique Frazão > TIM DO Á: Disse a verdade e o jornalismo
é o principal exemplo.
TIM DO Á > Henrique Frazão: Está quase todo no bolso. A soldo.
Em Portugal, nos EUA, no Brasil e um pouco por todo o lado. Compram e subornam
tudo. E assim evangelizam as populações como marionetas. bento
guerra: Há seres estranhos que passam pelas histórias das
sociedades, cometas sem anúncio prévio e as marcam para sempre, Camões é um
desses, como séculos depois o Pessoa. Lá fora, Cervantes, Shakespeare, Dante, Leonardo,
para cada cultura o seu cometa João
Floriano > bento guerra: Muito bem escrito. Gostei de ler. José Carvalho:Viva Camões! Alexandre Barreira: Pois. “Ó tu...que tens de humano. O gesto e o peito”. Não é
feitio. É defeito....! Jorge Carvalho: Dentro de poucas horas estarei em Belém, como faço
desde sempre, junto ao monumento dos Heróis do Ultramar onde vou render
homenagem a todos os combatentes, como o também foi Jaime Nogueira Pinto, e rezar por aqueles que já partiram e nunca renegaram
a nossa ditosa Pátria. Bem hajam Rui Pedro Matos: Muito bem! Miguel Magalhães: Excelente artigo. Parabéns por
usar a História de Portugal para combater essa praga contemporânea do wokismo
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