É o que diz Fernando Mendes muitas vezes, a sua justificação
subentendida, enfiada provavelmente na aorta do sentimento, para usar uma
expressão do meu rebuscamento tosco. Não tem a ver com esta de que trata Maria João Avillez, gente de outras esferas
sociais e intelectuais. Gostamos de todas. Há sempre mais, os gostos variam,
mas o objectivo de Maria João Avillez
é decididamente mais formativo, o de Fernando Mendes de mais sentimento. O pior
é mesmo a gente má que anda por aí, a impor o desânimo…
Ao correr do gostar
Cada um destes nomes e cada um a seu
modo ampliam os limites da criação nesse misterioso “lá”, onde habita o
instinto, a imaginação, o fulgor da mente, a inspiração. E por vezes o génio.
MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 07 jun. 2023, 00:214
1Prólogo: gosto
de gostar e depois dizer que gostei. Gostar combate e defende ao mesmo
tempo: combate o bafio da
indiferença e enfraquece a desistência. É verdade. Veio com a vida,
aprendi que para gostar não se pode sair do trilho da curiosidade. Não me
lembro de deixar de fazer perguntas mesmo a despropósito: as respostas contêm
sempre ingredientes que podem produzir um gostar. Quando acontece, gosto de
gostar.
Hoje
gosto de alguns portugueses que aqui deixo quanto mais não seja porque há
outros, para além de Pedro Nuno Santos & company (ou ex-company).
Claro que os “meus” não podem rivalizar
com um secretário de Estado atrapalhado ou uma intriga entre instituições – a corte tem regras mediáticas, ai de
quem as dinamite.
E,
no entanto, cada um destes nomes e cada um a seu modo ampliam os limites da
criação nesse misterioso “lá”, onde habita o instinto, a imaginação, o fulgor
da mente, a inspiração. E por vezes o génio.
2Falando de portugueses, por exemplo, é
obrigatório referir Marcello Mathias que acaba de publicar um livro
interessantemente original. Desta vez
o diplomata-escritor (ou escritor-diplomata?) trata de portugueses vistos por
portugueses. O resultado é, sem novidade, melancólico. Foi-o de cada
vez que um “estrangeiro” abria os olhos e olhando a nossa geografia humana e a
outra, discorria sobre elas. Aqui ”O
Português visto por alguns Portugueses” (Dom Quixote) também é. E o
detalhado prefácio do autor ainda mais o sublinha: nós, vistos por nós?
Sim, melancólico e não raro ácido e não raro com justeza. Marcello Mathias é filho de um grande embaixador e ministro dos
Negócios Estrangeiros de Salazar entre 1958/61; irmão de outro grande
embaixador, Leonardo, já falecido e pai de dois jovens diplomatas, um dia
provavelmente grandes embaixadores. Em casa traziam o mundo na palma da mão,
eram “naturalmente” cultos, capazes, cosmopolitas. E naturalmente
patriotas. (Fartei-me de lhes fazer perguntas e um dia fiz um “portrait ”de
família, nos idos do Expresso).
Foi com este caldo de cultura que este
Marcello partiu para a diplomacia – felizmente para o país; e para as letras,
felizmente para nós. Houve letras em vários registos que surpreendentemente desaguaram hoje neste amplo fresco
pintado por alguns portugueses (mais ou menos“ilustres”) sobre os outros
portugueses. Aconselho.
3A magnifica Aurélia – e ainda
havemos de ouvir falar muita mais dela – dava-se a ver com a sua “Vida e Segredo” no Museu Soares dos Reis
(agora já reinaugurado após profundas obras), onde morou alguns meses. Aurélia de Sousa já lá não
está mas deixo dela o indispensável registo, após me ter demorada a olhá-la. Sempre me interroguei porque se fazia
(aparentemente) pouco caso desta pintora tão, como dizer, especial? Que
traço… Magnifico sim, talvez inclassificável. E agora, quando passam cem anos
sobre a sua morte, talvez ela tenha nascido uma segunda vez nas paredes de um
museu. É isso que percepcionamos com o tempo, todo o tempo nos reclamava num percurso
em quatro “andamentos” percorridos sob o véu de uma mansa melancolia ou assim a
senti: na inclinação dos corpos femininos sobre os seus ofícios, na solidão
desolada de algumas figuras; no desamparo voluntário de alguns lugares, na
tristeza muda de alguns interiores.
Não podendo trazer para casa nenhuma
apetecida tela (mas qual seria?) um catálogo bem feito mitiga a despedida das
telas. Ah os bons catálogos das “nossas” exposições inesquecíveis… Nunca se
entoará sobre eles e sobre os seus autores o laudatório coro que inteiramente
merecem. Não raro nos trazem intacta a memória que ali se celebra, e inteira a
sua história. Sim havemos de ouvir falar dela.
4O nome – Festival “Entre-Quintas” – já
nos transporta até lá. Música entre plátanos e tílias, numa paisagem natural de
alamedas de árvores, canteiros e flores, relvados penteados. Vai-se ouvi-la no
início de Julho, sobre o horizonte vasto de duas quintas afamadas no Ribatejo,
a do Casal Branco e a Casa Cadaval, em
Muge. O festival nasceu da iniciativa de José Lobo de Vasconcelos (Casal Branco), que desejando contribuir culturalmente
para comunidade ribatejana escolheu fazê-lo através da fruição ou da descoberta
da música. Acreditou que lhe valia a pena a desinstalação e, por acreditar, contagiou outras vontades
e ânimos, locais e não locais.
Encantador, acolhedor, quase íntimo, sob
um sol que se despede ou um luar que se anuncia, o festival tem na parceria com a Orquestra de Cascais e de Oeiras – e na
escolha que o seu maestro Nicolay Lalov faz de compositores e solistas – a
qualidade musical que calha ao cenário. Nunca esqueci a quase impressão de
irrealidade quando pela primeira vez me sentei debaixo de árvores centenárias
para ouvir música, num fim de tarde doce de Julho.
Era impossível não gostar.
5Já se sabe, sou uma “rendida”. E antiga.
Gosto muito dele e sobretudo de o dizer. Mais uma vez Diogo Infante esteve a altura de si mesmo, que o
mesmo dizer do seu imensíssimo talento. Profundo, maduro e maturado talento que
lhe projecta a vocação teatral para o quadro
de honra da perfeição. A sua última encenação de um precioso e porventura menos
conhecido Tennesse Williams – “A Peça Para Dois Actores” – vale qualquer desvio
de agenda ou geografia. É certo que entre sussurros, iras e transtornos
a tão “tenessiana” Luísa Cruz e Miguel Guilherme, encarnam com um brilho amargo
os dois terríveis irmãos. Mas não fora
o sopro da inspiração de Diogo Infante sobre aquele temível par balançando-se
na penumbra do palco do Trindade entre a aflição e a loucura e talvez não fosse
assim. Assim como é: muito bom.
6Teatro. Impossível também não deixar
nota da manhã de pura magia vivida por dois dos meus netos e por mim própria,
um destes dias no Politeama. Foi aliás um bisar de magia, já o ano passado
regressáramos a casa confundidos e alegres após ter visto a poética “Pequena
Sereia”
no mesmo palco. Desta vez foi a Cinderela, igualmente encenada por Felipe la Feria, diante de inúmeras crianças
maravilhadas pelo encanto que escorria da cena. La Feria não é um bem amado da
nomenclatura porque não sendo da esquerda da pesada e tendo público e
bilheteira, nunca teve o cartão de acesso ao reconhecimento dela. Parece que
não lhe fez falta. Em vez disso tem o dom – raro – de concretizar em simultâneo
a magia e a fantasia, o encantamento, o glamour, o ritmo, em cima de palco. É
um revivalista que sabe contar uma história, vesti-la, dançá-la e ritmá-la.
Tenha o público a idade que tiver.
7Dizer Rui
Ochoa é dizer fotografia e, depois, excelência. Agora fomos
presenteados – é o termo – com um livro que há muito tardava. “Fotografia 74
99” (Leya). Olhá-lo é olhar de frente para as últimas décadas do século XX,
revê-las, é confrontarmo-nos com o que fomos, acreditámos e fizemos. O país
ficou estampado nas páginas deste livro. A sua natureza humana também.
Trabalhei com
Rui Ochoa metade da vida. Pelo menos. Praticávamos uma cumplicidade silenciosa
enquanto cada um fazia seu ofício que a seguir se transformava num vivíssimo
diálogo igualmente cúmplice. Que tempos… Bons tempos.
8Gostar
defende-nos, é bem verdade. Mas estar disponível para acolher o gostar de
gostar, é também – parece-me – a tal formidável defesa contra a espuma
da intriga e o lodo da propaganda, da mediocridade e da irresponsabilidade. Tanta
coisa? É o que vigora.
COMENTÁRIOS:
Graciete Madeira: Mais
um belíssimo texto de M. João Avilez. Parabéns. bento guerra: "A vida é bela" e não há marquesa a dar cabo dela Seknevasse: Excelente! Entre o duche matinal e o artigo da Mª João não sei de qual
gostei mais. O ponto 8 é muito importante... pelo menos para mim que nos dias
actuais me sinto arrastado para onde não quero ir (pensar)... Obrigado. JOHN MARTINS: De tudo o que a MJ, escreveu hoje, desde o excerto 1 ) ao 8) como
sempre, muito bem escrito, e com muita inspiração; tendo em gostar. Muito
bem.
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