Que eu julgava negros, alegres, luzidios… mas aparecendo castanhos na bonita foto
do facebook de Luís Soares de
Oliveira, lembro «O MELRO» de Guerra
Junqueiro, provando que nem só os gatos são conquistadores de
“melros”, segundo a pretensão satírica de Junqueiro, em anticlericalismo bem “à for da corte”, naquela sua época de
sátira faiscante:
Aí estão os recém nascidos melros
Oliveira - criados na oliveira por baixo da janela do meu quarto. Haja vida. O
problema tem sido afugentar os gatos.
Comentários
José
Correia Guedes: "Os
melros Oliveira". Lá para as minhas bandas costumava dizer-se que fulano
era "um grande melro" se tinha artes de sedução superiores às dos
outros mortais. Ele há coisas...
O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o
arvoredo,
Verdadeiras risadas de
cristal.
E assim que o padre-cura abria
a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro; dentre a horta,
Dizia-lhe: "Bons
dias!"
E o velho padre-cura
não gostava daquelas
cortesias.
O cura era um velhote
conservado,
Malicioso, alegre,
prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no
telhado,
Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a
pé,
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os
exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava
alegremente;
Até que ultimamente
O velho disse um dia:
"Nada, já não tem jeito!,
este ladrão
Dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e
os pardais?!"
E o melro entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial,
inquieto,
Comendo alegremente,
honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais
pequeno insecto.
E apesar disto, o rude
proletário,
O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de
salário.
Que grande tolo o padre
confessor!
Foi para a eira o trigo;
E, armando uns espantalhos,
Disse o abade consigo:
"Acabaram-se as penas e
os trabalhos."
Mas logo de manhã, maldito
espanto!
O abade, inda na cama,
Ouvindo do melro o costumado
canto,
Ficou ardendo em chama;
Pega na caçadeira,
Levanta-se dum salto,
E vê o melro, a assobiar, na
eira,
Em cima do seu velho chapéu
alto!
Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre-cura andava
enfermo;
Não falava nem ria,
Minado por tão íntimo
desgosto;
E o vermelho oleoso do seu
rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a
desventura
(Muito embora o leitor não me
acredite),
Que o bom do padre-cura
Perdera o apetite!
Andando no quintal, um certo
dia,
Lendo em voz alta o Velho
Testamento,
Enxergou por acaso (que
alegria!,
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros,
escondido
Entre uma carvalheira.
E ao vê-los exclamou
enfurecido:
"A mãe comeu o fruto
proibido;
Esse fruto era minha
sementeira:
Era o pão, e era o milho;
Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que
pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou
vingado!"
E, engaiolando os pobres
passaritos,
Soltava exclamações:
"É uma praga. Malditos!
Dão me cabo de tudo esses
ladrões!
Raios os partam! Andai lá que
enfim"
E deixando a gaiola pendurada,
Continuou a ler o seu latim,
Fungando uma pitada.
Vinha tombando a noite
silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dorida
Um misticismo heróico e
salutar.
As árvores, de luz inda
douradas,
Sobre os montes longínquos,
solitários,
Tinham tomado as formas
rendilhadas
Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os
lavradores.
Dormiam virginais as coisas
mansas:
Os rebanhos e as flores,
As aves e as crianças.
Ia subindo a escada o velho
abade;
A sua negra, atlética figura,
Destacava na frouxa claridade,
Como uma nódoa escura.
E, introduzindo a chave no
portal,
Murmurou entre dentes:
"Tal e qual tal e qual!
Guisados com arroz são
excelentes."
Nasceu a Lua. As folhas dos
arbustos
Tinham o brilho meigo,
aveludado,
Do sorriso dos mártires, dos
justos.
Um eflúvio dormente e
perfumado
Embebedava as seivas
luxuriantes.
Todas as forças vivas da
matéria
Murmuravam diálogos gigantes
Pela amplidão etérea.
São precisos silêncios
virginais,
Disposições simpáticas,
nervosas,
Para ouvir falar estas falas
silenciosas
Dos mundos vegetais.
As orvalhadas, frescas
espessuras,
Pressentiam-se quase a
germinar.
Desmaiavam-se as cândidas
verduras
Nos magnetismos brancos do
luar.
..................................................
..................................................
E nisto o melro foi direito ao
ninho.
Para o agasalhar, andou
buscando
Umas penugens doces como
arminho,
Um feltrozito acetinado e
brando.
Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma frecha; e,
louco e mudo,
Correu por todo o matagal; em
vão!
Mas eis que solta de repente
um grito
Indo encontrar os filhos na
prisão.
"Quem vos meteu
aqui?!" O mais velho,
Todo tremente, murmurou então:
"Foi aquele homem negro.
Quando veio,
Chamei, chamei Andavas tu na
horta
Ai que susto, que susto!, ele
é tão feio!
Tive-lhe tanto medo! Abre esta
porta
E esconde-nos debaixo da tua
asa!
Olha, já vão florindo as
açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
Num bonito lugar
Ai! quem me dera, minha mãe,
ter penas
Para voar, voar!"
E o melro alucinado
Clamou:
"Senhor! senhor!
É porventura crime ou é pecado
Que eu tenha muito amor
A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como
consentes
Que me roubem assim os meus
filhinhos,
Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor,
quantos carinhos,
Quanta noite perdida
Nem eu sei...
E tudo, tudo em vão!
Filhos da minha vida
Filhos do coração!!!
Não bastaria a natureza
inteira,
Não bastaria o Céu par
voardes,
E prendem-vos assim desta
maneira!
Covardes!
A luz, a luz, o movimento
insano,
Eis o aguilhão, a fé que nos
abrasa
Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento
humano.
A culpa tive-a eu! Quase à
noitinha
Parti, deixei-os sós
A culpa tive-a eu, a culpa é
minha,
De mais ninguém! Que atroz!
E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de
adivinhar
Remorso eterno! eterno
pesadelo!
.................................................
Falta-me a luz e o ar! Oh,
quem me dera
Ser abutre ou fera
Para partir o cárcere maldito!
E como a noite é límpida e
formosa!
Nem um ai, nem um grito
Que noite triste!, oh, noite
silenciosa!"
E a natureza fresca,
omnipotente,
Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos
heróis.
Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como
espadas,
Cantavam rouxinóis.
Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôfregas raízes
A procurar na terra as seivas
boas,
Com a avidez e as raivas
tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das
leoas.
A lua triste, a Lua
merencória,
Desdémona marmórea,
Rolava pelo azul da
imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
Branca como a harmonia,
Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os
sons das flores,
Na atonia cruel das grandes
dores,
O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno,
Bem como outrora o Nazareno
Na noite do calvário!
Segundo o seu costume
habitual,
Logo de madrugada
O padre-cura foi para o
quintal,
Levando a Bíblia e sobraçando
a enxada.
Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
Tratava da hortaliça
E rezava a Deus-Padre
Omnipotente
Vários trechos latinos,
Salvando desta forma,
juntamente,
As ervilhas, as almas e os
pepinos.
E já de longe ia bradando:
"Olé!
Dormiram bem? Estimo
Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do
Diabo,
Julgam que isto que era só dar
cabo
Da horta e do pomar,
E o bico alegre e estômago
contente,
E o camelo do cura que se
aguente,
Que engrole o seu latim e vá
bugiar!
Grandes larápios! Era o que
faltava
Vocês irem ao milho,
E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos
pilho
Eu vos ensinarei, meus
safardanas!
Vocês são mariolões, são
ratazanas,
Têm bico, é certo, mas não têm
tonsura
E, nas manhas, um melro nunca
chega
Às manhas naturais de um
padre-cura.
O melhor vinho que encontrar
na adega
É para hoje, olé! Que
bambochata!
Que petisqueira! Melros com
chouriço!
E então a Fortunata
Que tem um dedo e jeito para
isso!
Hei-de comer-vos todos um a
um,
Lambendo os beiços, com tal
gana enfim,
Que comendo-vos todos, mesmo
assim
Eu fico ainda quase em jejum!
E depois de vos ter dentro da
pança,
Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote
dança,
Como ele é melro e sabe
assobiar!"
Mas nisto o padre-cura,
titubeante,
Quase desfalecendo,
Atónito de horror, parou
diante
Deste drama estupendo:
O melro, ao ver aproximar o
abade,
Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a
grade
Do cárcere. Torcia,
Para os partir os ferros da
prisão,
Crispando as unhas
convulsivamente
Com a fúria dum leão.
Batalha inútil, desespero
ardente!
Quebrou as garras, depenou as
asas
E alucinado, exangue,
Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em
sangue,
Partiu num voo arrebatado e
louco,
Trazendo, dentro em pouco,
Preso do bico, um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e
sereno,
Disse:
"Meus filhos, a
existência é boa
Só quando é livre. A liberdade
é a lei,
Prende-se a asa mas a alma voa
Ó filhos, voemos pelo azul!
Comei!" -
E mais sublime do que Cristo,
quando
Morreu na Cruz, maior do que
Catão,
Matou os quatro filhos,
trespassando
Quatro vezes o próprio
coração!
Soltou, fitando o abade, uma
pungente
Gargalhada de lágrima, de dor,
E partiu pelo espaço
heroicamente,
Indo cair, já morto, de
repente
Num carcavão com silveiras em
flor.
E o velho abade, lívido
d'espanto,
Exclamou afinal:
"Tudo o que existe é
imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo
pranto
E em todo o coração há um
grito igual.
Deus semeou d'almas o universo
todo.
Tudo que o vive ri e canta e
chora
Tudo foi feito com o mesmo
lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da
existência,
Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma
essência,
Pela dor, pelo amor, pela
inocência,
Quer guarde um berço, quer
proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a
criatura,
Desde a mais bela até à mais
impura,
Ou numa pomba ou numa fera
brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus
murmura!
............................................................
Ah, Deus é bem maior do que eu
julgava"
E quedou silencioso. O velho
mundo,
Das suas crenças antigas, num
momento,
Viu-o sumir exausto,
moribundo,
Nos abismos sem fundo
Do temeroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou A Igreja, a
Crença,
Rude montanha, pavorosa,
escura,
Que enchia o globo com a
sombra imensa
Dos seus setenta séculos d'altura;
O Himalaia de dogmas
triunfantes,
Mais eternos que o bronze e
que o granito,
Onde aos profetas Deus falava
dantes,
Entre raios e nuvens
trovejantes,
Lá dos confins sidérios do
infinito;
Esse colosso enorme, em dois
instantes
Viu-o tremer, fender-se e
desabar
Numa ruína espantosa,
Só de tocar-lhe a asa vaporosa
Duma avezinha trémula, a
expirar!
.................................................
.................................................
E, arremessando a Bíblia, o
velho abade
Murmurou:
"Há mais fé e há mais
verdade,
Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos dum rochedo
nu
Que nessa Bíblia antiga. Ó
Natureza,
A única Bíblia verdadeira és
tu!..."
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