De conceito e referência este texto de Eugénia Vasconcellos que traz à memória,
para mais, um filme denso e inesquecível, e o seu Bolero simbólico, bem adaptado, no seu repetitivo monótono, ao
sentido existencial num mundo maquiavélico, de encontros e torturas sem sentido
que se repetem infindavelmente, e sempre no espanto de “a primeira vez” – que E.V. desmistifica. Com dor. Com revolta.
Histórias repetidas
Como é
possível ao fim de anos de ocupação da Crimeia, 470 dias depois da invasão
Russa da Ucrânia, invasão que a Rússia continua a negar, usar os termos russos,
indistinguir informação e propaganda?
EUGÉNIA DE
VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 09 jun. 2023, 00:15
Na adolescência tudo é intenso, urgente,
absoluto. A vida é tomada por adjectivos
radicais. Talvez
seja por isso que os livros então lidos, os filmes vistos, os acontecimentos
vividos se imprimam na memória – já em adultos queremos recordar o nome de um
escritor que conhecemos de cor e vemo-nos às aranhas. Isto vem a propósito da citação inicial de um filme que
vi logo ao início da minha adolescência, Les
Uns et Les Autres, de Claude Lelouch, e esta semana me ocorreu: «Il n’ y a que deux au trois histoires dans la vie de
l’ être humain et elles se répètent aussi cruellement que si elles n’ étaient
jamais arrivées».
A 29 de Agosto de 1941, a
União Soviética, numa operação levada a cabo pelas forças secretas
estalinistas, o NKVD precursor do famoso KGB, destruiu a Barragem Dnipro, em
Zaporizhzhia. Esta barragem alimentava a maior central
hidroeléctrica da Europa, Dneprostroi, terceira maior do mundo, e era
fundamental para a indústria e para a agricultura dos dois lados do rio Dniepre.
Aquele colosso da engenharia, erguido entre 1925 e 1932, sob a direcção de Hugh
Lincoln Cooper [1865-1937], extraordinária
personagem e coronel do Exército norte-americano durante a Primeira Grande
Guerra, tivera um custo que ultrapassara, então, os 100 milhões de euros.
À data do anúncio da destruição da
Barragem Dnipro, Lozovsky disse que o governo soviético e o povo soviético, dos
quais era porta-voz, estavam determinados a conduzir a guerra nos seus
territórios de modo a que, ao contrário do que sucedera na Europa Ocidental, a
Alemanha visse o seu poderio militar reduzido a cada dia.
A
31 de Agosto de 1941, no jornal The Observer, JL
Garvin descrevia a destruição da Barragem Dnipro como uma
«destruição patriótica», «o maior gesto de sabotagem sacrificial alguma vez
praticado». Foram, de facto, milhares as vítimas entre civis e militares do
Exército Vermelho. Os números nunca foram revelados, mas estimam-se entre os
20.000 e os 100.000 mortos. As descrições dos sobreviventes são avassaladoras.
Quilómetros de terra alagados, vilas desaparecidas. Animais mortos. Indústria e
colheitas perdidas.
A barragem e a central foram
reconstruídas e actualizadas.
E nós, dia após dia, ao longo dos últimos 15 meses, temos vindo a
descobrir a história e os detalhes do mapa da Ucrânia assinalados pelo verbo do
terror: violação; tortura; assassinato. Crianças e deportação. Povo e êxodo.
Destruição. Sofrimento. Morte.
Nada disto é surpreendente. Mas nem por
isso este crescendo de violência deixa de nos esmagar quando as imagens nos
entram pela casa a dentro e nem podemos sequer pensar na dor de quem nos
aparece no ecrã. Não é um reality show: é a vida segundo Putin e o seu mapa
mental definido pelas fronteiras da União Soviética, na Guerra Fria. O mesmo
mapa mental da televisão russa, onde os ucranianos, «povo artificial» logo
inexistente, na mais escabrosa repescagem da linguagem nazi para os judeus, são
tratados por «baratas» que é preciso eliminar. Zonas residenciais, hospitais, teatros,
escolas? É indiferente. Civis? É indiferente. Crianças?
Vuhledar.
Kharkiv. Bucha. Nova Kakhovka. A geografia do horror.
Quais miúdos aprendemos tudo, lemos tudo,
vemos tudo. A cascata de reservatórios e centrais do rio Dniepre. A de
Nova Kakhovka: quando foi construída a
central hidroeléctrica, por quem, qual a capacidade; as imagens de satélite e
de drones, dos vídeos de telemóvel. Tornamo-nos
especialistas em sabotagem industrial e em explosivos; em arrefecimento de
centrais nucleares e desastres ecológicos. Imaginamos as minas, as antigas da
Segunda Grande Guerra e as recentes, levadas pelo caudal inevitável e
imaginamos o impacto surpreendente da explosão. As vítimas adiadas.
Enquanto isto, os media produzem
afirmações extraordinárias. Por exemplo: «Rússia e Ucrânia trocam acusações sobre
a responsabilidade pela destruição da barragem da central hidroeléctrica de
Nova Kakhovka». Há mais de um ano que os russos controlam esta central… Como é
possível colocar em pé de igualdade o agressor que a ocupa e o agredido? Como é
possível, ao fim de anos sobre a ocupação da Crimeia, e 470 dias depois da invasão
Russa da Ucrânia, invasão que a Rússia continua a negar, usar os termos russos?
Como é possível indistinguir informação e propaganda?
E enquanto isto, outras barragens e reservatórios de
menor visibilidade são destruídos e outros ainda são propostos para destruição,
como o reservatório de Kyiv, em plena televisão russa, por Evgeny Buzinsky,
general na reserva e ex-professor da Escola Superior de Economia, de Moscovo.Também
aqui, nada de novo. Afinal, é no canal que apresenta ucranianos como baratas.
Ainda
a propósito da trágica explosão. Em todas as guerras há operações secretas,
sabotagens, infiltrações, espionagem. Levadas a cabo por cada um de todos os
lados envolvidos no conflito. Muitos desses acontecimentos são apurados pelo
público anos depois quando as matérias são desclassificadas. Sabemos também que
enquanto a guerra decorre na frente de batalha há invisíveis corredores
diplomáticos. E sabemos até que nada sabemos.
Mas nada disto obsta ao acto primordial
e de onde todos os outros decorrem: a Rússia invadiu a Ucrânia.
GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO
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