sexta-feira, 9 de junho de 2023

Brilhante


De conceito e referência este texto de Eugénia Vasconcellos que traz à memória, para mais, um filme denso e inesquecível, e o seu Bolero simbólico, bem adaptado, no seu repetitivo monótono, ao sentido existencial num mundo maquiavélico, de encontros e torturas sem sentido que se repetem infindavelmente, e sempre no espanto de “a primeira vez” – que E.V. desmistifica. Com dor. Com revolta.

Histórias repetidas

Como é possível ao fim de anos de ocupação da Crimeia, 470 dias depois da invasão Russa da Ucrânia, invasão que a Rússia continua a negar, usar os termos russos, indistinguir informação e propaganda?

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora

OBSERVADOR, 09 jun. 2023, 00:15

Na adolescência tudo é intenso, urgente, absoluto. A vida é tomada por adjectivos radicais. Talvez seja por isso que os livros então lidos, os filmes vistos, os acontecimentos vividos se imprimam na memória – já em adultos queremos recordar o nome de um escritor que conhecemos de cor e vemo-nos às aranhas. Isto vem a propósito da citação inicial de um filme que vi logo ao início da minha adolescência, Les Uns et Les Autres, de Claude Lelouch, e esta semana me ocorreu: «Il n’ y a que deux au trois histoires dans la vie de l’ être humain et elles se répètent aussi cruellement que si elles n’ étaient jamais arrivées».

A 29 de Agosto de 1941, a União Soviética, numa operação levada a cabo pelas forças secretas estalinistas, o NKVD precursor do famoso KGB, destruiu a Barragem Dnipro, em Zaporizhzhia. Esta barragem alimentava a maior central hidroeléctrica da Europa, Dneprostroi, terceira maior do mundo, e era fundamental para a indústria e para a agricultura dos dois lados do rio Dniepre. Aquele colosso da engenharia, erguido entre 1925 e 1932, sob a direcção de Hugh Lincoln Cooper [1865-1937], extraordinária personagem e coronel do Exército norte-americano durante a Primeira Grande Guerra, tivera um custo que ultrapassara, então, os 100 milhões de euros.

À data do anúncio da destruição da Barragem Dnipro, Lozovsky disse que o governo soviético e o povo soviético, dos quais era porta-voz, estavam determinados a conduzir a guerra nos seus territórios de modo a que, ao contrário do que sucedera na Europa Ocidental, a Alemanha visse o seu poderio militar reduzido a cada dia.

A 31 de Agosto de 1941, no jornal The Observer, JL Garvin descrevia a destruição da Barragem Dnipro como uma «destruição patriótica», «o maior gesto de sabotagem sacrificial alguma vez praticado». Foram, de facto, milhares as vítimas entre civis e militares do Exército Vermelho. Os números nunca foram revelados, mas estimam-se entre os 20.000 e os 100.000 mortos. As descrições dos sobreviventes são avassaladoras. Quilómetros de terra alagados, vilas desaparecidas. Animais mortos. Indústria e colheitas perdidas.

A barragem e a central foram reconstruídas e actualizadas.

E nós, dia após dia, ao longo dos últimos 15 meses, temos vindo a descobrir a história e os detalhes do mapa da Ucrânia assinalados pelo verbo do terror: violação; tortura; assassinato. Crianças e deportação. Povo e êxodo. Destruição. Sofrimento. Morte.

Nada disto é surpreendente. Mas nem por isso este crescendo de violência deixa de nos esmagar quando as imagens nos entram pela casa a dentro e nem podemos sequer pensar na dor de quem nos aparece no ecrã. Não é um reality show: é a vida segundo Putin e o seu mapa mental definido pelas fronteiras da União Soviética, na Guerra Fria. O mesmo mapa mental da televisão russa, onde os ucranianos, «povo artificial» logo inexistente, na mais escabrosa repescagem da linguagem nazi para os judeus, são tratados por «baratas» que é preciso eliminar. Zonas residenciais, hospitais, teatros, escolas? É indiferente. Civis? É indiferente. Crianças?

Vuhledar. Kharkiv. Bucha. Nova Kakhovka. A geografia do horror.

Quais miúdos aprendemos tudo, lemos tudo, vemos tudo. A cascata de reservatórios e centrais do rio Dniepre. A de Nova Kakhovka: quando foi construída a central hidroeléctrica, por quem, qual a capacidade; as imagens de satélite e de drones, dos vídeos de telemóvel. Tornamo-nos especialistas em sabotagem industrial e em explosivos; em arrefecimento de centrais nucleares e desastres ecológicos. Imaginamos as minas, as antigas da Segunda Grande Guerra e as recentes, levadas pelo caudal inevitável e imaginamos o impacto surpreendente da explosão. As vítimas adiadas.

Enquanto isto, os media produzem afirmações extraordinárias. Por exemplo: «Rússia e Ucrânia trocam acusações sobre a responsabilidade pela destruição da barragem da central hidroeléctrica de Nova Kakhovka». Há mais de um ano que os russos controlam esta central… Como é possível colocar em pé de igualdade o agressor que a ocupa e o agredido? Como é possível, ao fim de anos sobre a ocupação da Crimeia, e 470 dias depois da invasão Russa da Ucrânia, invasão que a Rússia continua a negar, usar os termos russos? Como é possível indistinguir informação e propaganda?

E enquanto isto, outras barragens e reservatórios de menor visibilidade são destruídos e outros ainda são propostos para destruição, como o reservatório de Kyiv, em plena televisão russa, por Evgeny Buzinsky, general na reserva e ex-professor da Escola Superior de Economia, de Moscovo.Também aqui, nada de novo. Afinal, é no canal que apresenta ucranianos como baratas.

Ainda a propósito da trágica explosão. Em todas as guerras há operações secretas, sabotagens, infiltrações, espionagem. Levadas a cabo por cada um de todos os lados envolvidos no conflito. Muitos desses acontecimentos são apurados pelo público anos depois quando as matérias são desclassificadas. Sabemos também que enquanto a guerra decorre na frente de batalha há invisíveis corredores diplomáticos. E sabemos até que nada sabemos.

Mas nada disto obsta ao acto primordial e de onde todos os outros decorrem: a Rússia invadiu a Ucrânia.

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