Francisco Assis preocupa-se
com a desigualdade de oportunidades visíveis no próprio Ensino Superior, que
contrariam o princípio da igualdade social preconizada na nossa revolução
salvadora, de uma democracia que só o é na irregularidade, pela indisciplina
generalizada que confunde valores e trouxe a desordem, a indisciplina, o
desrespeito, o mal-estar. A crónica de Ruy Ventura põe ainda mais o dedo na ferida, ao apontar a inércia
generalizada no ensino, especificando sobre essas oficinas de projectos que
nada são, tais como para nada servem os trabalhos de grupo em que os alunos
mais empenhados dão mais à luz, enquanto os menos empenhados permanecem na
sombra da sua lassidão ou indiferença. Um ensino que cada vez mais se degrada,
os próprios directores das escolas por vezes, adeptos da abolição de exercícios
e exames seleccionadores de competências. A perversão há muito que está
instalada neste país sem rei nem roque, o apontar das desigualdades sociais
impressas no ensino superior parece-me balela, própria de avestruz que esconde
a cabeça na areia por medo, ou, neste caso humano, para mostrar uma
superioridade de princípios democráticos e se sair bem na foto, sabendo,
hipocritamente, que tudo vai mal, e que o “cultivo do jardim” de cada um, como
teoria do optimista Pangloss, não é mais possível neste mundo desfigurado pelo
caótico e pelo falhanço moral, como se comprova aqui, hoje, sabendo nós de
antemão que amanhã será pior.
I - OPINIÃO
A educação e a democracia
Não é possível falar de um verdadeiro
sistema democrático quando a desigualdade de oportunidades permanece em níveis
que apontam para sociedades aristocráticas ou organizadas segundo sistemas de
castas.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 27 de Junho de 2019
Um
estudo levado a cabo pela Fundação Belmiro de Azevedo, divulgado ontem pelo
jornal PÚBLICO,
apresenta conclusões que nos confrontam com um dos maiores falhanços da
democracia portuguesa. Mais de quarenta anos após a sua instauração a nossa
democracia revela uma trágica incapacidade de garantir a concretização de uma
das suas obrigações mais básicas: a promoção da igualdade de oportunidades. Admitindo
que as democracias europeias contemporâneas são todas elas, nos seus aspectos
essenciais, subsidiárias do pensamento republicano associado aos grandes ideais
da Revolução Francesa, a denegação do princípio da igualdade de
oportunidades constitui uma amputação séria do projecto democrático. Não foi
por acaso, aliás, que o republicanismo francês, de índole profundamente
democrática, atribuiu à escola pública a função nuclear de promoção e de
consolidação histórica dos princípios e dos valores que prosseguia.
A componente formal da democracia,
contrariamente ao que preconizavam os seguidores do pensamento marxista, é
absolutamente fundamental. Sucede,
porém, que é manifestamente insuficiente para que possamos falar de uma
sociedade verdadeiramente democrática. A grande insuficiência do pensamento
liberal reside, justamente, na incapacidade de perceber que a afirmação da
autonomia individual pressupõe um certo grau de democratização social e
económica. Quando estas falham o sistema democrático tende a reduzir-se, de
facto, a uma dimensão formal incompatível com as suas próprias exigências no
plano doutrinário.
O
estudo anteriormente referido revela uma realidade perturbadora: o nosso
sistema de ensino reproduz as desigualdades económicas e sociais. Há
informações específicas com um conteúdo avassalador: mais de 70 por cento dos
estudantes de medicina são filhos de pais com formação universitária. Isto
revela algo aterrador numa sociedade pretensamente democrática: há cursos para
ricos e há cursos para pobres. A universidade pública, que por definição
deveria contrariar toda e qualquer forma de privilégio, reproduz uma
desigualdade económica e social hereditária. É possível falar de uma verdadeira
democracia num contexto desta natureza? Não, não é possível.
O
que tudo isto indicia é que o nosso sistema educativo está a falhar estrondosamente
numa das suas funções mais importantes: a de garantir a cada indivíduo que
enquanto cidadão da mesma República tem os mesmos direitos que todos os demais.
Já sabíamos que assim não era, mas não esperávamos que essa incapacidade fosse
de uma ordem tal que questiona alguns dos fundamentos do contrato social e
político em que fundamos a organização da nossa sociedade. Imaginemos que esta
situação se aplicava ao sector da saúde - teríamos diferenças exponenciais de
esperança de vida entre ricos e pobres. É certo que essa diferença existe mas
não tem, em termos comparativos, qualquer similitude com o que agora
constatamos que ocorre no plano da educação.
Nunca
fui favorável à publicação dos rankings escolares do ensino secundário. Não é
possível comparar um colégio privado, que selecciona os seus alunos no seio das
elites económicas e sociais, e uma escola pública que recebe educandos
provenientes dos sectores mais desfavorecidos da sociedade portuguesa. O que
pode haver de comum, para nos atermos à cidade do Porto, entre o Colégio do
Rosário, que acolhe os filhos da burguesia local, e a Escola Básica e
Secundária do Cerco frequentada pelos filhos dos habitantes de um bairro social
marginalizado? Infelizmente muito pouco.
Neste caso estamos a falar da distância entre uma escola privada e uma escola
pública. Só que essa mesmíssima disparidade também ocorre entre escolas
públicas consoante a sua localização geográfica.
A
questão não é de tratamento fácil e exige respostas inovadoras. A
escola republicana francesa de Jules Ferry era uma escola de exigência. Um
espaço escolar onde o professor vê diminuída a sua autoridade, onde o princípio
da transmissão do saber não prevalece sobre práticas pedagógicas folclóricas e
onde um certo facilitismo se sobrepõe a uma cultura da responsabilidade
contribui fortemente para a perpetuação das desigualdades. Precisamos
de rever profundamente o nosso modelo educativo. A escola que serve a
democracia não é a escola que se rende ao triunfo da infantilidade, nem
tão-pouco aquela que se demite de qualquer função no plano da formação cívica.
Se há domínio onde é possível constatar, simultaneamente, as profundas
incapacidades de um esquerdismo adolescente e de um liberalismo radical é
justamente o domínio da educação. A combinação espúria destas duas correntes de
opinião concorre para a produção de efeitos catastróficos.
Não é possível falar de um verdadeiro
sistema democrático quando a desigualdade de oportunidades permanece em níveis
que apontam para sociedades aristocráticas ou organizadas segundo sistemas de
castas. Não estamos a falar de uma questão menor mas sim de um tema central em
qualquer regime democrático. O que o estudo agora publicado revela constitui
uma verdadeira infâmia. Se há tema que se deve constituir numa questão central
nos próximos anos deve ser este mesmo - o da educação enquanto dimensão
fundamental para a plena afirmação da democracia.
Eurodeputado
do PS
II - OPINIÃO
Uma fábrica de desigualdades
Vítimas de teorias e práticas pedagógicas
que já eram velhas há 40 anos, porque lhes dão jeito para camuflar o insucesso
que realmente existe e continuará a existir por este caminho, há escolas (e
cada vez são mais) que vivem um autêntico PREC educativo.
RUY VENTURA
PÚBLICO, 27 de Junho de 2019
A
frase não me surpreendeu. Apesar de estudioso e bom leitor, o meu filho é um
rapaz saudável e, como todos os outros, aspira pelo tempo de piscina, praia,
passeio, televisão e outros divertimentos. Não dei andamento à conversa. Para
minha surpresa, o miúdo resolveu no entanto desabafar enquanto punha a mesa e
eu temperava a salada.
“Até
que enfim estou livre daquelas ‘oficinas’ em que levámos o ano inteiro a fazer
projectos e nunca saímos do mesmo sítio... Uns trabalhavam e outros ficavam a
ver. O costume... Nas apresentações ninguém se preocupava se estava bem feito
ou não, se tinha sido copiado da Internet ou escrito por nós... Além disso, eu
pensava que os projectos eram para fazermos coisas úteis, giras... O nome
engana... ‘oficinas’... São uma seca e das grandes!”
Resolvi
dar-lhe alguma atenção, mas silenciosa. Sem que eu lhe perguntasse coisa
alguma, do alto dos seus onze anos, não teve papas na língua: “Os
professores andam aborrecidos. Toda a gente vê. Não os deixam dar as aulas como
querem e não têm tempo para dar a matéria toda. Fica sempre a meio, agora com a
mania das disciplinas semestrais… Eles tentam disfarçar, mas nós bem vemos o
que está a acontecer. Dizem que para o ano que vem as aulas vão ser todas
assim. Só projectos e trabalhos de grupo. Que raiva! Estou mesmo a ver no que
vai dar... Mas nem quero pensar muito nisso. Já estou de férias. Quem me dera
que as aulas normais voltassem e acabasse esta porcaria que inventaram para
aí.”
Perguntei-lhe
se era o único a pensar assim. Poderia ter chamado a irmã, avançada um ano nos
estudos, mas quis saber o que ele me responderia. “Não sou o único a dizer
isto. Os meus colegas estão fartos como eu e só aqueles que não se importam com
nada é que andaram contentes porque não precisaram de fazer nenhum. Trabalham
uns e eles assobiam, portam-se mal nas aulas e chateiam toda a gente, porque
sabem que vão passar na mesma... Ninguém chumba no meu ano nesta escola, mesmo
que faça porcaria e não aprenda. A directora diz que chumbar dá mau nome à
escola... Que temos de acabar com o insucesso…”
A
interrogação final veio de chofre: “Achas justo? É justo dar o mesmo
prémio àqueles que trabalham e àqueles que não se ralam e não querem
trabalhar?”
A
opinião do catraio não me apanhou desprevenido, confesso. Já ao longo do ano
lectivo notara um certo desalento no miúdo quando se aproximava o dia das
“aulas diferentes”. Ia como cão por corda para a escola. A irmã, tanto quanto
me era dado ver e ouvir, tinha o mesmo sentimento. Em conversas com outros pais
e encarregados de educação, das suas turmas e de turmas diferentes, fui-me
apercebendo de que era um sentimento alargado. Também conhecia a opinião de
um grupo alargado de professores daquela escola. Ano após ano, várias dezenas
tinham saído da instituição, mesmo tendo-lhe dado uma, duas ou até três décadas
de serviço e dedicação. Muitos dos que permanecem no “degredo” desejam, dizem,
seguir o mesmo caminho, perante as atitudes da tutela e da gerência. Pura e
simplesmente, não aguentam – segundo afirmam – as pressões diárias de que são
alvo para porem em prática uma “doutrina pedagógica” com traços totalitários.
Não
foi inesperado o desabafo do miúdo. Mas deixou-me porém preocupado, sabendo
eu o que é possível fazer e desfazer com os cinquenta por cento de autonomia
que o governo quer “oferecer” às escolas, em troca da aplicação cega e
militante da “flexibilidade curricular”. Também eu sou professor, embora tenha
a graça de leccionar num Agrupamento de Escolas onde ainda vai reinando o
equilíbrio, o bom senso e a sensibilidade humana. Como docente, consigo todavia
ser camaleão, se for necessário. Como pai, a minha grave inquietação vai
crescendo.
Com
as mãos livres e acalentadas pela 24 de Julho, há dirigentes escolares que
estão a pôr em prática uma autêntica anarquia educativa, travestida contudo
pelas melhores intenções, que não passam de vassouras para esconder os
problemas que existem na nossa escola pública. E não lhes faltam coadjuvantes
ou cúmplices: alguns docentes que esperam receber benesses (no horário, na
distribuição de serviço ou quiçá em viagens ao estrangeiro, pagas pela União
Europeia) e alguns pais que não enxergam um palmo à frente do nariz. Bom seria
que alguém verificasse se os dirigentes escolares mais ferrenhos na aplicação
da nova via “pedagógica” não serão muito próximos do partido do governo (ou
mesmo seus militantes); há quem diga que sim. Não é por acaso que, para
estranheza de muitos e estupefacção de alguns, dois dos secretários de Estado
do Ministério da Educação marcaram presença conjunta (!) na inauguração (!) da remodelação
parcial (!) de um dos blocos de salas de aula de uma das escolas mais
fundamentalistas na aplicação da “flexibilidade”… Não há almoços grátis, como
se diz por aí.
Vítimas
de teorias e práticas pedagógicas que já eram velhas há quarenta anos, porque
lhes dão jeito para camuflar o insucesso que realmente existe e continuará a
existir por este caminho, há escolas (e cada vez são mais) que vivem um
autêntico PREC educativo, com traços de maldade e insanidade, cujas
consequências plenas são ainda difíceis de alcançar. Uma delas é todavia
evidente. Os alunos com bom respaldo familiar conseguirão sobreviver a tudo
isto, com grande dispêndio de tempo e de dinheiro, que não há outro modo de
compensar o que lhes é tirado nessas escolas públicas. Alguns, filhos de
agregados mais abonados, partirão para bons colégios privados – onde a conversa
é outra… Aqueles a quem falta o dinheiro ou a família ou tudo isto junto serão
vítimas a médio prazo de uma escola que, assim, se demite de lutar contra as
desigualdades, em benefício de uma “inclusão” que é, na realidade, exclusão
social ao longo da vida.
Os colegas dos meus filhos que não fazem testes de avaliação, que se
alegram por passar de ano sem trabalhar e sem melhorar o seu comportamento, que
deixam de ter aulas baseadas no conhecimento sólido dos seus professores, que
não são treinados para o esforço que o estudo implica e implicará sempre, que
são vítimas da “flexibilidade” e da “inclusão”, poderão agora exultar com as
suas famílias, alheados do que se passa, do que motiva esta “nova pedagogia” e
dos seus resultados futuros. Estou certo disso, porque os vejo, os ouço e
converso com alguns dos seus pais. Os efeitos futuros não serão, todavia, algo
que seja bom de ver. Sem se terem habituado à exigência, ao trabalho, à
atenção, à concentração e ao estudo – enganados por sereias maviosas e
sorridentes que, desse modo, dizem “levar habilmente a escola rumo ao sucesso”
– ver-se-ão a braços com uma violenta e frustrante desigualdade de
oportunidades. E tal não é digno de um país que afirma defender a dignidade de
todos os seres humanos.
Escritor
e investigador
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