domingo, 2 de junho de 2019

Reposição de um texto desaparecido do Blog



O Livro doCarolus
“Estou só
tão só como me consumo
Em tão pouco fogo para tanto fumo…” (Poema 12º, “ESTOU)

Hoje, a conversa da nossa amiga, depois de nos mostrar alegremente um seu livrinho de autógrafos, dos seus tempos de moça, com desenhos e frases dos seus amigos e colegas de então, e que terminava num soneto de um seu amigo doutor, girou igualmente à volta de um livrinho do seu filho mais velho, Carolus de alcunha, livro de uns quarenta anos posterior, que este coligira em tempos, com fotos igualmente das suas esculturas e pinturas que a mãe tanto aprecia e que, mesmo só em foto, revelam uma estranha sensibilidade, feita de irrealidade e magia, nos tons suaves, nos traços esbatidos ou mais carregados, no surrealismo de imagens figurativas de um universo de insegurança, artifício, sensualidade e sofrimento que os seus versos igualmente comprovam e o título “Tatuagem” bem simboliza, no seu escalpelizar de corpos e almas, em denúncia de estados de alma de intranquilidade e ânsia.
Para esse livro que ele coligiu em 2003, Carolus pedira-me um Prefácio que releio neste exemplar computorizado e já danificado pelo abandono, que a mãe encontrou e nos trouxe, a lembrar a sensibilidade do filho, aluno cuja inteligência os professores do colégio em Quelimane elogiavam como excepcional, mais um caso que o 25 de Abril, talvez, suspendeu de um procedimento alinhado, trazido pelo excessivo de uma liberdade sem limites da adolescência, num contexto favorecedor de contestação, revolta e requinte no abandono.
E a mãe referiu o rapazinho de nove anos daqueles tempos de bom estudante que, penalizado por dois colegas africanos não terem lanche, os levava a lanchar em sua casa, que era perto da escola.
Pedi à nossa amiga que me emprestasse o livrinho, para colocar no meu blog, mesmo só em amostra, sem pretender, com o título “O Livro do Carolus” parafrasear “O Livro de Cesário Verde” cuja primeira edição Silva Pinto organizou e custeou, após a morte do grande amigo. Nem “O Livro de Cesário Verde”, de versos geométricos e claros,de jogos sinestésicos ou figurativos de tanta riqueza e luminosidade, tem a ver com este do Carolus, que ele próprio intitulou “Tatuagem”. Pudesse eu – economicamente falando – publicar-lhe o Livrinho de 30 poemas, fá-lo-ia com amizade e gosto. Limito-me a copiar para o meu blog alguns poemas e o tal Prefácio, com pena de não o fazer às imagens dos seus quadros e das suas esculturas, mas, certamente, no prazer de um certo rebuscamento filosófico, conciso e fechado, mas não isento de ironia, jogando com a frustração, e conjuntamente com outros efeitos de sonoridade e requinte formal. Deixo-o, ao menos, no meu Blog, de uma posteridade incerta, como registo de um quadro humano de tortura interior de um jovem dos nossos tempos, que me parece merecer o apoio de quem pudesse apoiá-lo ou o quisesse, e para isso refiro o número do seu telemóvel: 919011630

Carolus        -     Tatuagem     -       Setembro de 2003

Prefácio: 
Signos -  jogando desenfreados no atropelo dos seus valores, hesitantes entre significante e significado, sons que vibram em efeitos simbólicos, em compassos fugidios, de uma sintaxe volúvel e expressão original, subentendendo, tantas vezes, mais do que traduzindo….
Signos alucinados, remetendo para um universo íntimo, das angústias vividas, das raivas sentidas, dos sentimentos frustrados, apesar da ternura real, e mau grado o cepticismoe o sentido do ilusório que imprimem os seus versos, tatuagem agridoce perfurando as almas.
Versos em que os signos pictóricos acompanham conceituosamente o muro das palavras, em amálgama artística que define o criador de sons e conceitos, de cores, de formas…
Poeta-pintor, poeta-escultor, escultor-pintor-poeta, artista… Carolus.

O último poema, que dá nome ao Livro:


Tatuagem
pintor que tatua                                            
desenha sanguinário
na doce pele nua
retalhos do imaginário

desenha corre mundo
do artista que não assina
desconhecido oriundo
será essa sua sina

mas será sempre lembrada
mesmo centrada na arte
inconsciente imaginada
como, de quem, de que parte?

O 1º poema: RELATIVIDADE
Não há nada que pareça que seja
que não pareça que não seja nada
se for coisa que se veja             
enquanto for iluminada
saiba-se para que se preveja
tem ciclos e é apagada

da parte que for iluminada
faz ser coisa que seja
e doutro lado não seja nada
será só porque não se veja?

é já qualquer coisa o nada
só porque ao implicar que não há
sugere no tempo, e na forma desencontrada
só depois pode não haver, se já há

2º Poema: DEPENDÊNCIA
Sou mente que mente
inverno neste Inferno
sinto que não sinto
rejeito feito eu

Sigo cego, peço e meço
indo pelo frio do meu gelo
que não derrete e me repete
a gelar quem me quer Amar

A mente capaz
descodifica desmente
processo pelo qual faz
o código inerente, mente

3º Poema:   PALAVRAS
Perdi por ser essa frase acabada
com tanta palavra ali à mão
que deitei da boca p’ra fora
fantasiadas serviam a ocasião
importante se ser feliz fosse agora

Disponibilizadas as escolhas
como caminhos com várias ruas
escolho o trevo de quatro folhas
uma das pétalas vale por duas

6º Poema:DELFIM
A queda dum homem
direito ao seu bem
tal qual anjo jovem
de asas vai vem

Pula e avança
os sonhos geridos
numa criança
já bem definidos

E o anjo é o homem
 a queda ilusão
 até que me neguem
 ser uma visão

Negar que o homem
que o anjo eleva
é juntos que sobem
o que à queda se deva

A criança cresceu
com quedas que sobem
e o anjo morreu
deixou alma ao homem

Sem qualquer prurido
era nas fantasias
 que o anjo colorido
unia as assimetrias

17º Poema: PAIS
Foi ao escrever sobre os meus pais
impotente, senti-me incompleto
palavras actuais e a mais
para eles eternamente obsoleto

E por os sentimentos serem tão nobres
que nem mesmo que fosse profeta
acharia as palavras menos pobres
duvido que me sentisse mais poeta

20º Poema:MÃE
Mãe revolta, fera dragão
olhos violentos, letal,
no limite de protecção
é o instinto maternal

Doces também os olhos
nos momentos de abnegação
sorrisos aos molhos
de paciente compreensão

Desde logo na gestação
mamamos o aconchego vital
que move cada geração
nos sonhos da posição fetal

Cortados os primeiros laços
com desígnios de separação
trémulos os primeiros passos
seguros na sua direcção

Que os ampara nos abraços
e no colo da consolação
mamando amor aos pedaços
esses bonecos um dia dirão

Mãe pode ser sinónimo de nada
com a cumplicidade de tudo
só porque não há nada, comparada
com tudo, a minha, sobretudo

Mas falando de nada e de tudo
Mãe não pode ser equiparada
pois não fora ela sobretudo
fazer as palavras valerem nada

22º Poema:  LIBERDADE
Quando olhamos a pedra com a doçura
sentida na lua de mel do amor
distorcemos com toda a ternura
a visão do que passou a ser flor

E a liberdade de nos destinarmos
a ser do que se encarrega o amor
que seguramente será amarmos
que de pedra temos, temos de flor

Igual ao direito que temos
ser felizes, então um dever
tão dentro de nós que não vemos
que para tal é só escolher

27º Poema:MEDIA LUZ
Do sonho distante o apogeu
moreno esse corpo se julgou
dona do seu mundo e do meu
são tintas que a tela aceitou

Surgiu a sua imagem
feita à minha medida
dos contornos de miragem
estava ali oferecida

Seus contornos onde a luz finta
fintavam discretos a atenção
entregou-se descalça e faminta
momento sublime de rendição

Rendido vagueei nas doçuras
dessas ondas, dunas, maresia
seu perfume inalou loucuras
inspirou-a para a fantasia

Suspirou e gemeu incerteza
seria eu ou outro sua alteza
certo era controlar essa leveza
à media luz da vela acesa

Era tudo cor de rosa
alívio de respirar fundo
em mim fluía prosa
descobrira um novo mundo

28º Poema: CERTEZAS
Predestino pleno de incerteza
tanto com quanta certeza
que lhe chamam predestinada
sem dela saberem nada

Todos temos e não
Ali à mão, dourada
que nos revela sermos tudo e nada

Como corolário das leituras poéticas, transcrevo o soneto que o amigo da nossa amiga, Ricardo Fernandes, lhe escreveu no livro de autógrafos, em arte antiga, directa, em nada equiparável ao estilo do “Livro do Carolus”, mas uma escorreita homenagem à mãe deste, quando não sonhava ainda que o seria:

SONETO
À Ilda

Santo Deus! Pedir versos a um doutor!
Muito bem sabe a Ilda que o advogado
Passa a vida a encher papel selado
Com prosa seca, árida, incolor…

Falta à palavra o aroma da flor,
Falta a leveza, a graça, o torneado,
A subtileza, a música, o trinado
Que faz do poeta um imortal cantor!

Mas mesmo assim, e guitarreando à toa,
Em ti eu louvo a graça portuguesa,
A graça eterna da bela Lisboa…!

Tens um olhar que canta, chora e reza,
Uma alma franca, generosa e boa,
- Amiga minha, sonho de beleza!
29/3/1955


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