O Livro
doCarolus
“Estou só
tão só como me consumo
Em tão pouco fogo para tanto fumo…” (Poema
12º, “ESTOU”)
Hoje, a conversa da nossa
amiga, depois de nos mostrar alegremente um seu livrinho de autógrafos, dos
seus tempos de moça, com desenhos e frases dos seus amigos e colegas de então,
e que terminava num soneto de um seu amigo doutor, girou igualmente à volta de
um livrinho do seu filho mais velho, Carolus de alcunha, livro de uns quarenta anos
posterior, que este coligira em tempos, com fotos igualmente das suas
esculturas e pinturas que a mãe tanto aprecia e que, mesmo só em foto, revelam
uma estranha sensibilidade, feita de irrealidade e magia, nos tons suaves, nos
traços esbatidos ou mais carregados, no surrealismo de imagens figurativas de
um universo de insegurança, artifício, sensualidade e sofrimento que os seus
versos igualmente comprovam e o título “Tatuagem” bem simboliza, no seu
escalpelizar de corpos e almas, em denúncia de estados de alma de
intranquilidade e ânsia.
Para esse livro que ele
coligiu em 2003, Carolus pedira-me um Prefácio que releio neste exemplar
computorizado e já danificado pelo abandono, que a mãe encontrou e nos trouxe,
a lembrar a sensibilidade do filho, aluno cuja inteligência os professores do
colégio em Quelimane elogiavam como excepcional, mais um caso que o 25 de Abril,
talvez, suspendeu de um procedimento alinhado, trazido pelo excessivo de uma
liberdade sem limites da adolescência, num contexto favorecedor de contestação,
revolta e requinte no abandono.
E a mãe referiu o rapazinho de
nove anos daqueles tempos de bom estudante que, penalizado por dois colegas
africanos não terem lanche, os levava a lanchar em sua casa, que era perto da
escola.
Pedi à nossa amiga que me
emprestasse o livrinho, para colocar no meu blog, mesmo só em amostra, sem
pretender, com o título “O Livro do Carolus” parafrasear “O
Livro de Cesário Verde” cuja primeira edição Silva Pinto organizou e custeou,
após a morte do grande amigo. Nem “O Livro de Cesário Verde”, de versos
geométricos e claros,de jogos sinestésicos ou figurativos de tanta riqueza e
luminosidade, tem a ver com este do Carolus, que ele próprio intitulou “Tatuagem”.
Pudesse eu – economicamente falando – publicar-lhe o Livrinho de 30 poemas,
fá-lo-ia com amizade e gosto. Limito-me a copiar para o meu blog alguns poemas e
o tal Prefácio, com pena de não o fazer às imagens dos seus quadros e das suas
esculturas, mas, certamente, no prazer de um certo rebuscamento filosófico, conciso
e fechado, mas não isento de ironia, jogando com a frustração, e conjuntamente
com outros efeitos de sonoridade e requinte formal. Deixo-o, ao menos, no meu
Blog, de uma posteridade incerta, como registo de um quadro humano de tortura
interior de um jovem dos nossos tempos, que me parece merecer o apoio de quem
pudesse apoiá-lo ou o quisesse, e para isso refiro o número do seu telemóvel: 919011630
Carolus - Tatuagem - Setembro de 2003
Prefácio:
Signos - jogando desenfreados no
atropelo dos seus valores, hesitantes entre significante e significado, sons
que vibram em efeitos simbólicos, em compassos fugidios, de uma sintaxe volúvel
e expressão original, subentendendo, tantas vezes, mais do que traduzindo….
Signos alucinados, remetendo para um universo íntimo, das angústias
vividas, das raivas sentidas, dos sentimentos frustrados, apesar da ternura
real, e mau grado o cepticismoe o sentido do ilusório que imprimem os seus
versos, tatuagem agridoce perfurando as almas.
Versos em que os signos pictóricos acompanham conceituosamente o muro
das palavras, em amálgama artística que define o criador de sons e conceitos,
de cores, de formas…
Poeta-pintor, poeta-escultor, escultor-pintor-poeta, artista… Carolus.
O último poema, que dá nome ao Livro:
Tatuagem
pintor que tatua
desenha sanguinário
na doce pele nua
retalhos do imaginário
desenha corre mundo
do artista que não
assina
desconhecido oriundo
será essa sua sina
mas será sempre lembrada
mesmo centrada na arte
inconsciente imaginada
como, de quem, de que
parte?
O 1º poema:
RELATIVIDADE
Não há nada que pareça
que seja
que não pareça que não
seja nada
se for coisa que se
veja
enquanto for iluminada
saiba-se para que se
preveja
tem ciclos e é apagada
da parte que for
iluminada
faz ser coisa que seja
e doutro lado não seja
nada
será só porque não se
veja?
é já qualquer coisa o
nada
só porque ao implicar
que não há
sugere no tempo, e na
forma desencontrada
só depois pode não haver, se já há
2º Poema: DEPENDÊNCIA
Sou mente que mente
inverno neste Inferno
sinto que não sinto
rejeito feito eu
Sigo cego, peço e meço
indo pelo frio do meu gelo
que não derrete e me repete
a gelar quem me quer Amar
A mente capaz
descodifica desmente
processo pelo qual faz
o código inerente, mente
3º Poema: PALAVRAS
Perdi por ser essa frase
acabada
com tanta palavra ali à
mão
que deitei da boca p’ra
fora
fantasiadas serviam a
ocasião
importante se ser feliz
fosse agora
Disponibilizadas as escolhas
como caminhos com várias
ruas
escolho o trevo de
quatro folhas
uma das pétalas vale por
duas
6º Poema:DELFIM
A queda dum homem
direito ao seu bem
tal qual anjo jovem
de asas vai vem
Pula e avança
os sonhos geridos
numa criança
já bem definidos
E o anjo é o homem
a queda ilusão
até que me neguem
ser uma visão
Negar que o homem
que o anjo eleva
é juntos que sobem
o que à queda se deva
A criança cresceu
com quedas que sobem
e o anjo morreu
deixou alma ao homem
Sem qualquer prurido
era nas fantasias
que o anjo colorido
unia as assimetrias
17º Poema: PAIS
Foi ao escrever sobre os
meus pais
impotente, senti-me
incompleto
palavras actuais e a
mais
para eles eternamente
obsoleto
E por os sentimentos
serem tão nobres
que nem mesmo que fosse profeta
acharia as palavras
menos pobres
duvido que me sentisse
mais poeta
20º Poema:MÃE
Mãe revolta, fera dragão
olhos violentos, letal,
no limite de protecção
é o instinto maternal
Doces também os olhos
nos momentos de
abnegação
sorrisos aos molhos
de paciente compreensão
Desde logo na gestação
mamamos o aconchego
vital
que move cada geração
nos sonhos da posição
fetal
Cortados os primeiros
laços
com desígnios de
separação
trémulos os primeiros
passos
seguros na sua direcção
Que os ampara nos abraços
e no colo da consolação
mamando amor aos pedaços
esses bonecos um dia
dirão
Mãe pode ser sinónimo de
nada
com a cumplicidade de
tudo
só porque não há nada,
comparada
com tudo, a minha,
sobretudo
Mas falando de nada e de
tudo
Mãe não pode ser equiparada
pois não fora ela
sobretudo
fazer as palavras
valerem nada
22º Poema: LIBERDADE
Quando olhamos a pedra
com a doçura
sentida na lua de mel do
amor
distorcemos com toda a
ternura
a visão do que passou a
ser flor
E a liberdade de nos
destinarmos
a ser do que se
encarrega o amor
que seguramente será
amarmos
que de pedra temos,
temos de flor
Igual ao direito que
temos
ser felizes, então um
dever
tão dentro de nós que
não vemos
que para tal é só
escolher
27º Poema:MEDIA LUZ
Do sonho distante o apogeu
moreno esse corpo se
julgou
dona do seu mundo e do
meu
são tintas que a tela
aceitou
Surgiu a sua imagem
feita à minha medida
dos contornos de miragem
estava ali oferecida
Seus contornos onde a
luz finta
fintavam discretos a
atenção
entregou-se descalça e
faminta
momento sublime de
rendição
Rendido vagueei nas
doçuras
dessas ondas, dunas,
maresia
seu perfume inalou
loucuras
inspirou-a para a
fantasia
Suspirou e gemeu
incerteza
seria eu ou outro sua
alteza
certo era controlar essa
leveza
à media luz da vela
acesa
Era tudo cor de rosa
alívio de respirar fundo
em mim fluía prosa
descobrira um novo mundo
28º Poema: CERTEZAS
Predestino pleno de
incerteza
tanto com quanta certeza
que lhe chamam
predestinada
sem dela saberem nada
Todos temos e não
Ali à mão, dourada
que nos revela sermos
tudo e nada
Como corolário das leituras
poéticas, transcrevo o soneto que o amigo da nossa amiga, Ricardo Fernandes,
lhe escreveu no livro de autógrafos, em arte antiga, directa, em nada
equiparável ao estilo do “Livro do Carolus”, mas uma escorreita homenagem à
mãe deste, quando não sonhava ainda que o seria:
SONETO
À Ilda
Santo Deus! Pedir versos a um doutor!
Muito bem sabe a Ilda que o advogado
Passa a vida a encher papel selado
Com prosa seca, árida, incolor…
Falta à palavra o aroma da flor,
Falta a leveza, a graça, o torneado,
A subtileza, a música, o trinado
Que faz do poeta um imortal cantor!
Mas mesmo assim, e guitarreando à toa,
Em ti eu louvo a graça portuguesa,
A graça eterna da bela Lisboa…!
Tens um olhar que canta, chora e reza,
Uma alma franca, generosa e boa,
- Amiga minha, sonho de beleza!
29/3/1955
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