terça-feira, 11 de junho de 2019

Tabuletas condenadas, todavia, como o resto



Mais uma crónica de agudeza irresistível de CFA a que um mundo mais sagaz deveria atender, como páginas de sabedoria e humor cáustico, que espelham bem a miséria sucessiva a infiltrar-se no mundo, miséria de tacanhez papalva, com que um público de espírito pobre e ambição do ganho sem esforço se deixa convencer actualmente, com as patranhas que lhes são impingidas pelos “literatos” vendedores de banha de cobra, de idiotia conselheiral arrasadora. Longe estamos da aurea mediocritas com que os clássicos mergulhavam nos doces prazeres de leituras em latim ou grego, ou “romanço”, contentando-se com sagaz mediania material, que a febre existencial de hoje, proveniente do desenvolvimento científico e tecnológico rapidamente fez ultrapassar, apressando-lhe o fim, talvez, como já dissera Álvaro de Campos:
…Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, (TABACARIA)

E o resultado, na população em geral e nos políticos em particular, por cá, pelo menos, é a insânia, “a decadência da coisa”.


PLUMA CAPRICHOSA
CLARA FERREIRA ALVES
E, 11/5/19
Giving a F*ck
Comprei um livro estúpido num aeroporto. O gesto não é tão estúpido como parece. O livro perseguia-me de aeroporto em aeroporto há meses, e de livraria em livraria, da Barnes & Noble para a Waterstones, da Strand para a WHSmith. Estava na fase Pague um e leve dois, o que constitui uma vantagem quando não se tem confiança nem no livro nem no autor. Um dos colantes da capa assegurava que tinha sido o best-seller #1, de quê e quando não dizia. Outros asseguravam que da lista de best-sellers de “The New York Times”, o que não nos leva muito longe. A razão pela qual o livro vendia era óbvia, tinha f*ck no título, exactamente assim, com um asterisco no lugar do u. “The Subtle Art of Not Giving a F*ck”, A arte subtil de não ligar peva, com o subtítulo ‘Uma Abordagem Contraintuitiva para Viver uma Boa Vida’. O autor parece que é um blogger famoso e tem uma audiência de milhões. E descreve-se a si mesmo, no site, como “Autor, Pensador, Entusiasta da Vida”. Dá conselhos aos tais milhões e uns julgam que ele é um idiota e outros que ele lhes salvou a vida, nas palavras do autor entusiasta. Pode ser um idiota, mas é um daqueles idiotas que descobriram como fazer dinheiro a partir de coisa nenhuma, da idiotice, o que os portugueses chamam descobrir dinheiro na cabeça de um careca.
Mark Manson, o entusiasta, não tem um único cabelo, metaforicamente. O livro é um conjunto anódino de historietas pessoais e outras retiradas da rede, a que o entusiasta tenta dar um significado profundo e algumas razões de autoajuda. O significado profundo é o de “not giving a f*ck”, não ligar peva, deixar andar, e as lições de autoajuda são sobre o modo de ser feliz não ligando peva. A palavra f*ck repete-se monotonamente ao longo das duzentas e tal páginas, é a âncora estilística e epistemológica de todo o pensamento, e o bom do Mark diz-nos que já foi infeliz e agora é feliz, não por ter deixado de ligar peva, mas por só ligar peva a uma coisa de cada vez. No caso dele concentrou-se em criar um negócio na internet, casar-se, arranjar uma casa e sedimentar numa vida de blogger. Um fracassado tornou-se um milionário autor de livros e entusiasta dos direitos de autor e das leituras e conferências de motivação, e vem aí o novo”Everything is F*cked: A Book about Hope”, Tudo está F*dido: um livro sobre a Esperança. Sustenta uma vida confortável em Nova Yorque com os ganhos de best sellers que os leitores atentos ao “NY Times” e às listas de best sellers compram.
Há uma dúzia de anos, este entusiasta nunca seria publicado. O livrinho resulta do poder da rede e das redes e resulta sobretudo da indigência generalizada da livraria e da livralhada no mundo anglo-saxónico, onde a literatura diminui de peso e os autores vendidos, carregados por uma máquina promocional de milhões de dólares, vendem por escreverem livros que apelam ao senso comum e ao poder da audiência global para imitar o sucesso e a receita dele. Assim se tornou Michele Obama, com o seu medíocre manual de autoelogio e autoajuda, um dos autores mais vendidos de todos os tempos. E assim fez história.
O entusiasta Manson é só um dos que perceberam a tendência. A substância, na nossa cultura de imitação, não é necessária. São necessárias a vontade e a capacidade de converter a ligeireza e a cópia numa máquina de fazer dinheiro com a ajuda da audiência tecnológica. Mark Manson faz Paulo Coelho parecer um intelectual. Um verdadeiro Dostoievsky.
A coisa não teria importância se não fosse a contaminação de toda a vida por esta deliberada atitude, a de nada ter importância suficiente para movimentar os neurónios. A atitude leviana contaminou a política, a academia, a educação, a memória, a biografia. Não se trata de nostalgia em relação ao século XX, ou ao passado, trata-se da estupidificação maciça que a tecnologia maciça está a introduzir na sociedade civilizada. A estupidificação a ser estudada e quantificada por cientistas, conduzirá ao apagão e à destruição da memória da civilização de que descendemos. Num inquérito aos passageiros, milhões deles, o aeroporto de Heathrow perguntou qual a loja que desejava ver nos terminais. Ganhou a livraria. Mas a livraria que ganhou, a WHSmith, só vende dois tipos de livros. Bestsellers com promoções, autoajuda e finança e gestão à cabeça e, num canto discreto, longe da multidão, uma reserva índia de clássicos. Entre Dickens e Tolstoi de bolso e o nosso Manson entusiasta, nada floresce a não ser policiais e thillers baratos, todos com a mesma intriga, e romances cor de rosa, todos copiados. A poesia e a filosofia não existem, a ficção antes e depois do século XIX também não, com excepção de um Salinger ou outro autor de culto, como Garcia Maequez. A loja real da Amazon em Nova Iorque é pior, só vende o que a Amazon vende e o que a Amazon vende em massa é lixo. Milhares de autores que ninguém sabe quem são, sustentados pela máquina da Amazon, e as críticas e as estrelinhas (muitas fabricadas) do “público” da Amazon, o menor denominador comum da inteligência. Não se vislumbra um clássico. Ou um escritor .Abundam os superheróis. Esperar que a política, e os políticos, escapem a esta tendência é esperar demasiado. O espectáculo dos últimos dias em Portugal¸com o obviamente demito-me que denunciou a estupidez, é um sinal da decadência da coisa. O melhor para a saúde é seguir o conselho do autor entusiasta, não ligar peva.

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