Sobre o nosso eterno status de penúria e
ficção de uma realidade utópica pelos responsáveis pela engrenagem, e as nossas
eternas singularidades de povo com acesso limitado a um nível cultural menos
mesquinho, tais são alguns dos temas destes dois nomes maiores da cultura actual,
na sua singularidade literária e na honestidade do seu pensamento
desempoeirado, que só nos merece aplauso! - AG e VPV.
GOVERNO: Os dias
nacionais da amnésia / premium
Caso
tivesse o azar de atropelar uma velhinha, o dr. Costa sairia do carro sob
aplausos, a anunciar campanhas de sensibilização para a segurança rodoviária e
para os dramas da terceira idade.
O
dr. Ferro Rodrigues,
personagem que existe, propôs transformar o 17 de Junho no Dia Nacional em
Memória das Vítimas dos Incêndios Florestais. E o parlamento em peso, que há
dois anos despachou o assunto mediante a aprovação de uma comissão de peritos
parcialmente escolhida pelo dr. Ferro Rodrigues e inteiramente útil, voltou a
aprovar o que calhou.
O
PS quer um “dia da memória” porque sabe não haver nenhuma. Se houvesse, toda a
gente se lembraria das figuras que os nossos estimáveis governantes fizeram
naqueles desgraçados dias, sob o alto patrocínio de Sua Excelência, o Senhor
Presidente da República. Se houvesse memória, toda a gente se lembraria da
grotesca indiferença do dr. Costa, disfarçada sob um ar pesaroso e interrompida
para anunciar aos saltinhos a candidatura do autarca lisboeta. Se houvesse
memória, toda a gente se lembraria do “focus group” convocado pelo
primeiro-ministro para medir os efeitos dos incêndios na sua popularidade. Se
houvesse memória, toda a gente se lembraria dos bonitos calções que o
primeiro-ministro envergou numa praia espanhola enquanto os cadáveres
arrefeciam. Se houvesse memória, toda a gente se lembraria da valentia da então
ministra da Administração Interna, uma criatura hoje sem nome que à época, e
entre lágrimas, se proclamou a principal vítima de tudo aquilo. Se houvesse
memória, toda a gente se lembraria da eficácia do lendário SIRESP e dos míticos
Kamov, não por acaso duas heranças do dr. Costa. Se houvesse memória, toda a
gente se lembraria de que, em Pedrógão, um Estado voraz falhou na solitária
tarefa que lhe devia competir: assegurar, na medida do possível e do razoável,
a segurança física dos cidadãos. Se houvesse memória, enfim, o dia da dita
seria dispensável. Assim, é apenas repugnante.
Aliás,
é irónica a evocação da memória por parte de um governo que conta justamente
com uma amnésia colectiva e galopante
para permanecer impune. Não faltam exemplos. Os escassos serviços públicos
que importam desabam com estrondo por desvio de verbas para a compra de votos?
Sem problema: o dr. Costa aparece a prometer
investimento, na próxima legislatura, nos serviços que ele próprio arruinou
nesta. A teia de
compadrios que o PS representa com gabarito atinge dimensões desmesuradas até
para os padrões da Nicarágua? Não vale a pena maçarmo-nos: o dr.
Costa irrompe a “priorizar” (?) o combate à exacta corrupção que durante anos
não o maçou nadinha. A TAP,
esse falido baluarte pátrio, distribui lucros imaginários por comparsas de
carne e osso e filiação partidária? Óptimo: o dr. Costa acha
surpreendente e desagradável o regabofe que, ao anular a privatização da
empresa, o dr. Costa promoveu. A CGD,
outra companhia de bandeira, passeia falcatruas sucessivas? Impecável: o dr. Costa insurge-se a acusar o
“desplante” do sr. Berardo, invenção do anterior chefe do dr. Costa. O fisco
decide assaltar os contribuintes em plena estrada? Evite-se o pânico: o dr.
Costa cala-se e manda o ministro e o secretário de Estado do ramo fingirem-se
chocados com a prática da única actividade que os excita. Para a semana, é
previsível que o dr. César faça um discurso muito crítico da nomeação de
familiares para cargos estatais. Esta semana, não sei o que os socialistas
farão com as proezas do dr. Constâncio, embora o desembaraço com que
varreram as proezas do “eng.” Sócrates já permita ter uma ideia.
Os
incêndios de 2017 foram uma tragédia. O resto é uma imensa farsa, protagonizada
por criaturas com doses ilimitadas de descaramento. Caso tivesse o azar de atropelar uma velhinha, o dr.
Costa sairia do carro sob aplausos, a anunciar campanhas de sensibilização para
a segurança rodoviária e para os dramas da terceira idade. Caso, pelo
contrário, tivessem o azar de nascer num lugar civilizado, o dr. Costa e os
desavergonhados vultos que o rodeiam nunca chegariam ao poder – ou seriam
enxotados ao primeiro dos incontáveis escândalos que em Portugal cometem sem
escândalo algum.
É
tentador, e recorrente, culpar o regime subjugado. Ou o “sistema” instalado. Ou
os “media” domesticados. Ou a oposição calada. Ou o que quiserem. A culpa,
desculpem lá, é dos portugueses.
Incapazes de estabelecer um nexo de causalidade, ou de ligar as acções aos
autores e às consequências, os portugueses passam pela vida em sociedade com
uma inconsciência quase divertida. Eu, pelo menos, diverti-me bastante a
reparar na quantidade de análises que atribuem a abstenção crescente a um
alegado “protesto”. Só se agora o povo protesta nas praias e nos “shoppings”,
com a jovialidade típica daqueles para quem qualquer porcaria serve. Incluindo,
ou talvez principalmente, a porcaria vigente. Sem escrutínio, sem contraponto,
sem punição, a porcaria promete durar e deixar uma factura pesada, a título de
lembrança. Mas os portugueses não se lembram de nada.
COMENTÁRIO:
Francisco José: Fantástico!
Análise mais que realista e séria! Este povo tem e terá o que merece! O
problema é que pagamos todos este desvario!
II - CRÓNICA: Diário
Para Vasco Pulido Valente, “Agustina é
uma filha de Entre-Douro-e-Minho, que nunca percebeu o que ficava para lá das
fronteiras em que sempre se fechou”.
VASCO PULIDO VALENTE
PÚBLICO, 8 de Junho de 2019
2 de Junho: A cada crise, Guterres avança com alarme, com lágrimas
e com um apelo desesperado à caridade universal. Agora foi Cartum, onde
oficialmente há forças democráticas. Gostaria de saber em que é que Guterres se
funda para nos garantir que a democracia pode sobreviver mais de cinco minutos
no Sudão. Mas nenhum obstáculo terreno impede o bispo dos Direitos do Homem de
pregar o seu sermão à humanidade e à CNN. É para isso que lhe pagam.
3 de Junho: Marcelo
declarou publicamente que, perante o domínio do PS e a “crise” do
centro-direita, talvez lhe competisse a ele equilibrar as coisas com
a sua famosa “sensibilidade”. Não tardará a descobrir que a cada
demonstração da sua “sensibilidade” criará um exército de inimigos. O mundo não
é feito de beijinhos e de selfies. Nem meio
nu, a dar mergulhos em todas as poças de Portugal, escapará.
4 de Junho: Morreu Agustina e teve justamente uma
aclamação nacional. Peço desculpa de me excluir da imensa multidão
dos seus devotos. Enquanto ela era celebrada na Sé Catedral do
Porto, os literati comentavam o facto lamentável de ela não ser também
um grande autor internacional. Porque será?
Porque
Agustina é uma filha de Entre-Douro-e-Minho, que nunca percebeu o que ficava
para lá das fronteiras em que sempre se fechou. Nós podemos, como portugueses,
ter uma certa inclinação por ela. Partilho o gosto pela retórica. Mas nunca
consegui desculpar a ausência de arquitectura dos romances, nem a prosa
imperdoavelmente irresponsável, como diria Borges. Assim vai o mundo.
5 de Junho: Continua a
conversa sobre a “crise” da direita e, fatalmente, sobre Marcelo. E Rui Rio também quis dar a sua inestimável
opinião: o importante não é a “crise da direita”, é a “crise do regime”. Este
palratório, que se está a tornar um hábito, não leva a nada. Primeiro, a “crise da direita” começou quando Costa
formou governo e o PSD e o CDS desfizeram a coligação, como quem abre falência.
Ora o facto é que, sem unidade, a direita que aí anda não pesa nem pode
pesar na política portuguesa. O resto são desculpas. Basta olhar para Rio e
Cristas, com a orelha murcha e os olhos no chão, para perceber que o que existe
está condenado a desaparecer. Não é novo. Não é diferente. Não convence ninguém. Quanto à “crise do regime”, começa a ser visível a sua
verdadeira essência: a miséria do país. Um mal que não se resolve com leis eleitorais, com
a reforma moral dos partidos ou o milagroso desaparecimento da corrupção.
Disparates que entretêm os opinantes do costume. O PS não diminuiu a
pobreza e a desigualdade, disfarçou-as durante uns tempos. No fim continuámos
com os mesmos problemas: a dificuldade de pagar o Estado que temos e,
sobretudo, o Estado que desejamos; a impossibilidade de vivermos como se vive
na Europa, ou sequer perto disso; a baixa produtividade; uma pequeníssima
poupança; um investimento fraco; um crescimento que não acompanha as
expectativas da maioria dos portugueses.
6 de Junho: As comemorações do desembarque da Normandia
relembraram-me que a idade das tropas aliadas andava pelos vinte e tal anos. É
quase assustador pensar na autoridade social que foi precisa para esta
geração ser recrutada para um combate de morte a mais de cinco mil quilómetros
de casa. Hoje não seria possível.
COMENTÁRIOS:
Rebelde: Venezuela Livre. Sempre impecável, parabéns VPV.
Bertold Lisbon 10:21: Agustina, entre Douro e Minho. Isso chega.
Dostoievsky e São Petesburgo, Balzac e Paris. Em que os diminuía? A vontade de
ir contracorrente, de se pôr de lado.... para se distinguir sem esforço, eis a
"fronteira onde se se fechou"...
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