sábado, 8 de junho de 2019

Resumos a não perder



Sobre o nosso eterno status de penúria e ficção de uma realidade utópica pelos responsáveis pela engrenagem, e as nossas eternas singularidades de povo com acesso limitado a um nível cultural menos mesquinho, tais são alguns dos temas destes dois nomes maiores da cultura actual, na sua singularidade literária e na honestidade do seu pensamento desempoeirado, que só nos merece aplauso! - AG e VPV.
GOVERNO:    Os dias nacionais da amnésia / premium
ALBERTO GONÇALVES     OBSERVADOR, 8/6/19
Caso tivesse o azar de atropelar uma velhinha, o dr. Costa sairia do carro sob aplausos, a anunciar campanhas de sensibilização para a segurança rodoviária e para os dramas da terceira idade.
O dr. Ferro Rodrigues, personagem que existe, propôs transformar o 17 de Junho no Dia Nacional em Memória das Vítimas dos Incêndios Florestais. E o parlamento em peso, que há dois anos despachou o assunto mediante a aprovação de uma comissão de peritos parcialmente escolhida pelo dr. Ferro Rodrigues e inteiramente útil, voltou a aprovar o que calhou.
O PS quer um “dia da memória” porque sabe não haver nenhuma. Se houvesse, toda a gente se lembraria das figuras que os nossos estimáveis governantes fizeram naqueles desgraçados dias, sob o alto patrocínio de Sua Excelência, o Senhor Presidente da República. Se houvesse memória, toda a gente se lembraria da grotesca indiferença do dr. Costa, disfarçada sob um ar pesaroso e interrompida para anunciar aos saltinhos a candidatura do autarca lisboeta. Se houvesse memória, toda a gente se lembraria do “focus group” convocado pelo primeiro-ministro para medir os efeitos dos incêndios na sua popularidade. Se houvesse memória, toda a gente se lembraria dos bonitos calções que o primeiro-ministro envergou numa praia espanhola enquanto os cadáveres arrefeciam. Se houvesse memória, toda a gente se lembraria da valentia da então ministra da Administração Interna, uma criatura hoje sem nome que à época, e entre lágrimas, se proclamou a principal vítima de tudo aquilo. Se houvesse memória, toda a gente se lembraria da eficácia do lendário SIRESP e dos míticos Kamov, não por acaso duas heranças do dr. Costa. Se houvesse memória, toda a gente se lembraria de que, em Pedrógão, um Estado voraz falhou na solitária tarefa que lhe devia competir: assegurar, na medida do possível e do razoável, a segurança física dos cidadãos. Se houvesse memória, enfim, o dia da dita seria dispensável. Assim, é apenas repugnante.
Aliás, é irónica a evocação da memória por parte de um governo que conta justamente com uma amnésia colectiva e galopante para permanecer impune. Não faltam exemplos. Os escassos serviços públicos que importam desabam com estrondo por desvio de verbas para a compra de votos? Sem problema: o dr. Costa aparece a prometer investimento, na próxima legislatura, nos serviços que ele próprio arruinou nesta. A teia de compadrios que o PS representa com gabarito atinge dimensões desmesuradas até para os padrões da Nicarágua? Não vale a pena maçarmo-nos: o dr. Costa irrompe a “priorizar” (?) o combate à exacta corrupção que durante anos não o maçou nadinha. A TAP, esse falido baluarte pátrio, distribui lucros imaginários por comparsas de carne e osso e filiação partidária? Óptimo: o dr. Costa acha surpreendente e desagradável o regabofe que, ao anular a privatização da empresa, o dr. Costa promoveu. A CGD, outra companhia de bandeira, passeia falcatruas sucessivas? Impecável: o dr. Costa insurge-se a acusar o “desplante” do sr. Berardo, invenção do anterior chefe do dr. Costa. O fisco decide assaltar os contribuintes em plena estrada? Evite-se o pânico: o dr. Costa cala-se e manda o ministro e o secretário de Estado do ramo fingirem-se chocados com a prática da única actividade que os excita. Para a semana, é previsível que o dr. César faça um discurso muito crítico da nomeação de familiares para cargos estatais. Esta semana, não sei o que os socialistas farão com as proezas do dr. Constâncio, embora o desembaraço com que varreram as proezas do “eng.” Sócrates já permita ter uma ideia.
Os incêndios de 2017 foram uma tragédia. O resto é uma imensa farsa, protagonizada por criaturas com doses ilimitadas de descaramento. Caso tivesse o azar de atropelar uma velhinha, o dr. Costa sairia do carro sob aplausos, a anunciar campanhas de sensibilização para a segurança rodoviária e para os dramas da terceira idade. Caso, pelo contrário, tivessem o azar de nascer num lugar civilizado, o dr. Costa e os desavergonhados vultos que o rodeiam nunca chegariam ao poder – ou seriam enxotados ao primeiro dos incontáveis escândalos que em Portugal cometem sem escândalo algum.
É tentador, e recorrente, culpar o regime subjugado. Ou o “sistema” instalado. Ou os “media” domesticados. Ou a oposição calada. Ou o que quiserem. A culpa, desculpem lá, é dos portugueses. Incapazes de estabelecer um nexo de causalidade, ou de ligar as acções aos autores e às consequências, os portugueses passam pela vida em sociedade com uma inconsciência quase divertida. Eu, pelo menos, diverti-me bastante a reparar na quantidade de análises que atribuem a abstenção crescente a um alegado “protesto”. Só se agora o povo protesta nas praias e nos “shoppings”, com a jovialidade típica daqueles para quem qualquer porcaria serve. Incluindo, ou talvez principalmente, a porcaria vigente. Sem escrutínio, sem contraponto, sem punição, a porcaria promete durar e deixar uma factura pesada, a título de lembrança. Mas os portugueses não se lembram de nada.
COMENTÁRIO:
Francisco José: Fantástico! Análise mais que realista e séria! Este povo tem e terá o que merece! O problema é que pagamos todos este desvario!
II - CRÓNICA: Diário
Para Vasco Pulido Valente, “Agustina é uma filha de Entre-Douro-e-Minho, que nunca percebeu o que ficava para lá das fronteiras em que sempre se fechou”.
VASCO PULIDO VALENTE               PÚBLICO, 8 de Junho de 2019
2 de Junho: A cada crise, Guterres avança com alarme, com lágrimas e com um apelo desesperado à caridade universal. Agora foi Cartum, onde oficialmente há forças democráticas. Gostaria de saber em que é que Guterres se funda para nos garantir que a democracia pode sobreviver mais de cinco minutos no Sudão. Mas nenhum obstáculo terreno impede o bispo dos Direitos do Homem de pregar o seu sermão à humanidade e à CNN. É para isso que lhe pagam.
3 de Junho: Marcelo declarou publicamente que, perante o domínio do PS e a “crise” do centro-direita, talvez lhe competisse a ele equilibrar as coisas com a sua famosa “sensibilidade”. Não tardará a descobrir que a cada demonstração da sua “sensibilidade” criará um exército de inimigos. O mundo não é feito de beijinhos e de selfies. Nem meio nu, a dar mergulhos em todas as poças de Portugal, escapará.
4 de Junho: Morreu Agustina e teve justamente uma aclamação nacional. Peço desculpa de me excluir da imensa multidão dos seus devotos. Enquanto ela era celebrada na Sé Catedral do Porto, os literati comentavam o facto lamentável de ela não ser também um grande autor internacional. Porque será?
Porque Agustina é uma filha de Entre-Douro-e-Minho, que nunca percebeu o que ficava para lá das fronteiras em que sempre se fechou. Nós podemos, como portugueses, ter uma certa inclinação por ela. Partilho o gosto pela retórica. Mas nunca consegui desculpar a ausência de arquitectura dos romances, nem a prosa imperdoavelmente irresponsável, como diria Borges. Assim vai o mundo.
5 de Junho: Continua a conversa sobre a “crise” da direita e, fatalmente, sobre Marcelo. E Rui Rio também quis dar a sua inestimável opinião: o importante não é a “crise da direita”, é a “crise do regime”. Este palratório, que se está a tornar um hábito, não leva a nada. Primeiro, a “crise da direita” começou quando Costa formou governo e o PSD e o CDS desfizeram a coligação, como quem abre falência. Ora o facto é que, sem unidade, a direita que aí anda não pesa nem pode pesar na política portuguesa. O resto são desculpas. Basta olhar para Rio e Cristas, com a orelha murcha e os olhos no chão, para perceber que o que existe está condenado a desaparecer. Não é novo. Não é diferente. Não convence ninguém. Quanto à “crise do regime”, começa a ser visível a sua verdadeira essência: a miséria do país. Um mal que não se resolve com leis eleitorais, com a reforma moral dos partidos ou o milagroso desaparecimento da corrupção. Disparates que entretêm os opinantes do costume. O PS não diminuiu a pobreza e a desigualdade, disfarçou-as durante uns tempos. No fim continuámos com os mesmos problemas: a dificuldade de pagar o Estado que temos e, sobretudo, o Estado que desejamos; a impossibilidade de vivermos como se vive na Europa, ou sequer perto disso; a baixa produtividade; uma pequeníssima poupança; um investimento fraco; um crescimento que não acompanha as expectativas da maioria dos portugueses.
6 de Junho: As comemorações do desembarque da Normandia relembraram-me que a idade das tropas aliadas andava pelos vinte e tal anos. É quase assustador pensar na autoridade social que foi precisa para esta geração ser recrutada para um combate de morte a mais de cinco mil quilómetros de casa. Hoje não seria possível.
COMENTÁRIOS:
Rebelde:  Venezuela Livre. Sempre impecável, parabéns VPV.
Bertold Lisbon 10:21: Agustina, entre Douro e Minho. Isso chega. Dostoievsky e São Petesburgo, Balzac e Paris. Em que os diminuía? A vontade de ir contracorrente, de se pôr de lado.... para se distinguir sem esforço, eis a "fronteira onde se se fechou"...

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