Refiro-me ao discurso de Agustina citado por Francisco Assis. Digo na ponta da pena, porque Agustina escrevia a tinta. É sempre com
admiração que se lêem estes discursos conceituosos que provam tais capacidades
de minúcia analítica, por vezes sintetizada em verso, como é o caso da “vã cobiça desta vaidade a que chamamos fama,
“fraudulento gosto que se atiça co’ a aura popular que honra se chama” de
um Velho do Restelo que outro génio
literário criara, séculos antes. Uma obra de análise social, como “Les Caractères” de La Bruyère é ainda
hoje digna da admiração de quem a lê, tal a captação reflexiva dos variados comportamentos
humanos que denuncia. Mas Agustina
é
realmente espécie de “sibila”, de longa data exibida, em livro logo laureolado,
como retrato de predestinação, cumprindo, ela também, “informes instruções d’Além” numa vasta obra de tão extraordinárias qualidades
de leitura das almas e dos tempos. E Francisco
Assis soube bem servir-se do excerto para uma advertência sensata a um
governante brincalhão, entre outros aspectos graves, na abordagem das questões de fundo que afectam a vida nacional.
Gostei do texto, sério e aprumado E preocupado, naturalmente.
OPINIÃO
Um pouco mais de gravitas
Nas presentes circunstâncias o país
precisa de um Presidente com mais gravitas institucional orientada para a
devida abordagem das questões de fundo que afectam a vida nacional.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO; 6 de Junho de 2019
1.
Em Março de 1975, em Roma, no âmbito de um Congresso da Associação
Internacional para a Cultura Ocidental, Agustina Bessa-Luís proferiu uma
comunicação em que a dado passo afirmou o seguinte: “Não há hoje
praticamente ninguém que não esteja possuído da intenção pueril de ganhar a
simpatia de um público. É a atitude que tomam as crianças por traumatismo da
sua debilidade. O escritor quer agradar, o político precisa de agradar, o
metafísico aspira a agradar. Esta subserviência que se instala numa fraude de
desafectação, de impune demagogia, acaba por institucionalizar-se na pura
superficialidade. E marca a agonia de uma cultura. A graça, contrário da
exibição, alma sincera que persuade, desaparece. A civilização torna-se num
método unicamente concebido para sobreviver.”
Não
faço parte daqueles que conheceram e que privaram de perto com Agustina
Bessa-Luís. Contactei com ela vaga e brevemente. O exacto tempo de um almoço em
Amarante. Estavam outras pessoas à mesa, entre as quais um outro escritor
extraordinário, e hoje pouco conhecido, Alexandre Pinheiro Torres. Contemplei-a
mais do que a indaguei. Diante do génio impõe-se um certo cerimonial que,
quanto mais não seja, é a expressão de um lúcido pudor. No momento da sua morte
não ousarei divagar sobre a importância da sua obra, uma vez que outros muito
mais habilitados do que eu já o fizeram de forma admirável, aliás, na maior
parte dos casos. Apesar de tudo, sempre me ocorrerá dizer que ela foi, sem
dúvida, um dos grandes espíritos do século XX europeu, uma das melhores
intérpretes da cultura ocidental nas suas múltiplas e impressionantes
metamorfoses contemporâneas, uma escritora de tal modo extraordinária que, como
praticamente nenhum outro intelectual do seu tempo, se revelou exuberantemente
prodigiosa na compreensão do humano desde o plano sociológico até à dimensão
metafísica. Não tenho a certeza que uma autora tão impressionante possa
suscitar, para usar as suas próprias palavras acima enunciadas, “a simpatia de
um público”. Nesse sentido, talvez Agustina fosse simultaneamente
intemporal e anacrónica, o que não significa que as suas palavras não nos
ajudem a compreender o labiríntico mundo demasiadas vezes excessivamente
superficial em que vivemos. Talvez fosse a nossa melhor escritora, mas foi
decerto uma das nossas maiores pensadoras. Nesse plano foi tão desmedidamente
grande que levaremos muito tempo até entendê-la em toda a sua plenitude.
2. O
Presidente da República tem um problema de denominação simples: Marcelo.
Sempre que se esquece de aprisionar o juvenil criador de factos políticos que
há em si as coisas tendem a correr mal. Marcelo Rebelo de Sousa é obviamente
uma figura ímpar. Inteligente, culto, divertido, está muito acima dos padrões
habituais na vida política portuguesa. Não é difícil compreender que ele
sempre se tenha percebido como um predestinado. Ora, o problema dos
predestinados na vida pública é que tendem a ficar de tal maneira dependentes
do fascínio por si próprios que facilmente se tornam seres quase exclusivamente
preocupados com o propósito de agradar permanentemente a um público. São uma
espécie de acrobatas da inteligência predispostos aos mais insólitos exercícios
gímnicos.
As
considerações que o Presidente da República fez há poucos dias sobre a direita,
a esquerda e o futuro têm suscitado diversas interpretações. Do meu ponto de
vista, elas são pura e simplesmente inaceitáveis. Não compete ao Presidente da
República pronunciar-se naqueles termos. Por muito menos Sá Carneiro e Mário
Soares vergastaram furiosamente Ramalho Eanes.
É inadmissível que o Presidente da
República no exercício das suas funções se pronuncie sobre o estado em que, do
seu ponto de vista, se encontra a direita portuguesa. É ainda mais
incompreensível que enuncie publicamente a antevisão de uma vitória da esquerda
nas próximas eleições legislativas. Raia os limites do absurdo insinuar que a
decisão de uma recandidatura dependerá da avaliação da necessidade da reposição
de um equilíbrio entre a esquerda e a direita na vida institucional portuguesa.
Literalmente, tal significaria que Marcelo Rebelo de Sousa só admitiria
recandidatar-se na sequência de uma expressiva vitória da esquerda nas próximas
eleições legislativas com o único propósito de se constituir numa espécie de
contra-poder a partir do Palácio de Belém. Coisa que, aliás, nunca fez no
decorrer do presente mandato.
Já
aqui por várias vezes exprimi admiração pelo Presidente da República. Essa
admiração subsiste. Contudo, não posso esconder uma relativa desilusão na
apreciação da sua actuação presidencial. Esperava francamente que Marcelo
Rebelo de Sousa tivesse tido nos últimos tempos uma acção mais eficaz na
promoção de alguns entendimentos estruturais entre o PS e o PSD. Creio mesmo
que esse tem sido um dos seus maiores falhanços, se tivermos em consideração
que Rui Rio tem manifestado uma grande disponibilidade para a concretização de
alguns acordos de regime com o Governo. Raramente um líder da oposição adoptou
tal tipo de atitude. Competiria ao Presidente da República a criação de
condições favoráveis à plena concretização de tais entendimentos. Nas presentes
circunstâncias o país precisa de um Presidente com mais gravitas institucional
orientada para a devida abordagem das questões de fundo que afectam a vida
nacional.
Eurodeputado
do PS
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