Uma Revolução – a tal que os zunzuns opinativos de personagens que
interferiram como opositores na história do Estado Novo, escrita por
David Martelo em “A BiGORNA”, (recebida por email enviado por João Sena) – veio aplicar as
tais alternativas ao poder de Salazar
nesta
descritas. Seguiu-se um período de reconstrução de já lá vão 45 anos, de mediação
partidária e por conta de dinheiros provenientes de esforço alheio (que
dificilmente se conseguirão ressarcir), conduzindo o país por ínvios caminhos
reconstrutivos, o que faz que alguns cidadãos de honrada estirpe- (que ainda
existem) -sobre ele se debrucem com opiniões sérias de uma ética não mais
atendida. É o caso do segundo texto, de Salles da Fonseca, ironizado pelos seus dois comentadores, pelos
motivos óbvios da sua ineficácia, neste meio que o desvio das normas e da ética
descrita tornou irrisórios.
I - ESTADO
NOVO – AS DIFICULDADES DO PÓS-GUERRA
Terminada
a 2.ª Guerra Mundial, o regime do Estado Novo ficou perante uma situação
política internacional claramente adversa. Enquanto a sociedade civil
despertava para uma nova e esperançosa realidade e gerava um grande movimento
de contestação e luta eleitoral — o Movimento de Unidade Democrática
(MUD) —, no interior do regime, incluindo as Forças Armadas, não faltava
quem se apercebesse de que, forçosamente, algo haveria de ser mudado. Para os
militares mais altamente colocados, a questão da defesa do espaço português,
fora do continente europeu, via alterarem-se profundamente os pressupostos
definidos no reinado de D. Afonso VI e mantidos até então. De facto,
a conservação do vasto Império colonial dependia decisivamente da aliança
marítima com a Grã-Bretanha. Por causa desse imperativo estratégico, sofrêramos
os ataques franco-espanhóis dos séculos XVIII e XIX e tínhamos ido combater em
França em 1917. Assim que a velha aliada decidisse acatar as recomendações da
Carta das Nações Unidas para a liquidação do seu património colonial — como era
claro que iria suceder — não seria de esperar que, a partir daí, estivesse
disponível para se bater por um Império que não era seu. Do ponto de vista militar — e, naturalmente, dos militares — Portugal corria o
grave risco de ficar perigosamente isolado, o que contrariava a política
externa tradicional do Estado português, desde a sua fundação no século XII.
A adesão à OTAN, em 1949, parece, por momentos, poder resolver a questão do
isolamento. Todavia, o Tratado do Atlântico
limita a sua acção, a Sul, ao trópico de Câncer. As possessões ultramarinas
portuguesas ficam, deste modo, excluídas das garantias de defesa colectiva. O
problema mantém-se. A humilhante derrota da França na Indochina
constitui um alerta e um exemplo a ter em conta.
Por outro lado, através dos contactos internacionais que a actividade da OTAN
vai proporcionar a muitos militares portugueses, estes vão aperceber-se,
cada vez com maior rigor, da dimensão da tempestade que se vai abater sobre o
Império colonial português. No plano puramente político, o discurso dos
“dissidentes” do Estado Novo aludia, de forma algo imprecisa, à necessidade de
repor a pureza original do 28 de Maio.
Neste universo de dissidentes, no entanto, importa salientar a existência de
duas tendências, resultantes do momento de ruptura com o regime e dos métodos
de acção que se propunham adoptar: a primeira, formada no início do
pós-guerra, inclui figuras como Henrique Galvão, David Neto e Quintão
Meireles, 1 - que,
desde então, assumem publicamente o dissídio com Salazar e uma clara rejeição
da figura de Santos Costa; a segunda
vai-se constituindo durante a presidência de Craveiro Lopes e engloba elementos
altamente colocados que anseiam por uma reforma conduzida pelo próprio regime —
casos do próprio Craveiro Lopes, de Júlio Botelho Moniz e de um significativo número de generais do
Exército e da Força Aérea, também eles dissociados da figura do ministro da
Guerra, embora de forma mais discreta. Qualquer destas facções
político-militares estava decidida a empreender o afastamento de Salazar
pela via putschista, de preferência com a complacência do Presidente da
República — primeiro Carmona, e, mais tarde, Craveiro Lopes. Embora seja seguro que entre as duas facções tenha
havido, ocasionalmente, contactos exploratórios, é mais arriscado afirmar que
tenham, alguma vez, agido de forma perfeitamente concertada. Que estiveram
em campos diferentes, por outro lado, é questão que não oferece dúvidas de
nenhuma espécie — como foi o caso da campanha de Humberto Delgado à presidência da República. 1 A este grupo
juntar-se-ia, mais tarde, o general Humberto Delgado. 2 Nas quase três décadas que se vão seguir, a acção
oposicionista das correntes civil e militar — aparentemente divergentes —
faria, todavia, um inevitável percurso convergente. Por mais de uma vez,
elementos das duas correntes haveriam mesmo de juntar esforços — quase sempre
de forma insipiente — para logo depois refluírem para os seus sectores de
origem. Ilustres
republicanos, como António Sérgio, Jaime Cortesão ou Azevedo Gomes, acreditavam ser possível derrubar o regime
através da aliança com os seus dissidentes. É esta corrente de pensamento
que conduz ao apoio da oposição às candidaturas de Quintão Meireles e
Humberto Delgado. Outro factor decisivo nos anos que se vão seguir é, sem
dúvida, o estado de saúde de Salazar.
Embora jamais tivesse sido um perfeito exemplo de homem saudável, o desgaste de
17 anos ininterruptos de governo — onde merecem especial destaque as tensões
acumuladas ao longo da Guerra Civil de Espanha e da 2.ª Guerra Mundial — faz de
Salazar, nos seus 57 anos, um homem de vigor definitivamente abalado. Até a
voz — instrumento fundamental para quem fazia do discurso político uma forma de
afirmação — estava agora afectada por uma irrecuperável rouquidão que o impedia
de falar longamente em voz alta. O próprio biógrafo do ditador, Franco
Nogueira, embora com alguma benevolência à
mistura, não deixa de referir essas decisivas condicionantes: Intelectualmente
está intacto: não tem ranhuras a sua lucidez, nem há quebra na sua vontade. Mas
a tensão dos nervos, a subjugação imperiosa de si próprio até ao limite da
ruptura, haviam desgastado as suas energias. Findo o
pesadelo, vem o relaxamento, o colapso. Oliveira Salazar sofre das suas velhas
enxaquecas, e causam-lhe incómodo redobrado; mais do que nunca, mortificam-no
os olhos, exaustos de aplicação sem mercê; e afligem-no tonturas prolongadas, e
a crença de que não pode andar sem o apoio de alguém, nem permanecer de pé sem
se arrimar a uma parede, a um móvel.2 Perdida a juventude política — como sinónimo de
criatividade, espírito inovador e entusiasmo na acção —, Salazar, como muitos outros ditadores ao longo da história, vai
conduzir esta nova fase da sua vida pública como um resistente que se
entrincheira na derradeira posição conquistada. Ciente de que a iniciativa está
no campo adversário, resta-lhe, assim, optar por uma postura claramente
defensiva. No campo
político-militar, destacam-se duas personalidades: Santos Costa,
ministro da Guerra — cada
vez mais influente nas hostes do regime — e Júlio Botelho Moniz,
ministro do Interior. Nos meios de cúpula do Estado Novo há a sensação de
que qualquer deles procura desenvolver algo de semelhante a um ‘projecto
próprio’. Entre os civis, igual procedimento
parece perceber-se nas atitudes de Marcello Caetano. O avizinhar das eleições para a Assembleia
Nacional [18 de Novembro de 1945] avoluma as preocupações dos homens do regime.
Em 10 de Outubro de 1945, Santos Costa escreve a Salazar estas significativas palavras: Noto
certo alarme nos nossos arraiais com o actual momento político. Os inimigos
crescem a olhos vistos e, mesmo que não vão às eleições, devem sair do acto
bastante prestigiados. Serão os nossos capazes de aproveitar o pretexto para se
unirem? Oxalá que sim. Mas quem deve dar o grito de união? Quem terá
possibilidades de se fazer ouvir? 2 NOGUEIRA, Franco, Salazar, Vol. III, pp. 10-11. 3 Seguidamente, acrescenta
um comentário tão significativo quanto surpreendente para um ‘fiel’ do regime:
Creio firme e sinceramente que da U.N. nada poderá vir de útil a este respeito.
Falta aos seus elementos dirigentes o indispensável prestígio para tanto.3
Na sequência das eleições legislativas de 18 de Novembro de 1945 — a que, uma
vez mais, a oposição se abstém de concorrer, por não ver reunidas as
indispensáveis condições de isenção —, as fracturas no interior do regime são
evidentes. Os 57% de eleitores que acorrem às
urnas — de um total de 992.723 inscritos — estabelecem o pior resultado registado
até então (79% em 1934; 83,5% em 1938; 86,6 % em 1942).4 Vai-se desvanecendo
a convicção de que o país segue no ‘rumo certo’. Parecem criadas condições para
uma ruptura conducente a um relançamento político mais de acordo com as
realidades do pós-guerra. David
Martelo – 1999, “A BIGORNA”
II - DA ÉTICA
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 16.06.19
A ultrapassagem do metafísico pelo positivo só se sustentou enquanto
este último viveu da herança dos estádios anteriores (teológico e metafísico). Porém, o sucessivo afastamento e descuido em
relação àquelas fontes deixou-o animicamente esvaído e eticamente desamparado.
Este
raciocínio de D.
Manuel Clemente a págs.
40 e seg. do seu livro “PORQUÊ E
PARA QUÊ» – Pensar com esperança o Portugal de hoje” assenta como uma luva à geração pós-moderna actual.
Contudo,
a ética cristã de solidariedade e benevolência para com o próximo (muito
próxima da compaixão budista), de
honradez e de trabalho, tem uma versão laica que pergunta, com enorme
simplicidade, «o que é que eu posso fazer por ti sem o prejudicar a ele,
esse terceiro que nem sequer conheço?». E esta atitude não carece de
fundamento teológico pelo que é perfeitamente aplicável a quem se diz afastado
das religiões. Ou seja, estar
longe das religiões não é argumento para ignorar o princípio ético.
No início do século XX, a
sociedade portuguesa vivia numa quase hierocracia e foi contra esse domínio que a laicização da ética tentou abrir
caminho. Mas não terá conseguido vingar no ambiente de iliteracia que
então reinava e hoje, passado um século, continuamos a padecer das consequências desse desencontro. Uma população tutelada pela ameaça da ira divina, não teve
arcaboiço para se harmonizar eticamente sem tutela num espaço que se pretendia
republicano, responsável. Aos portugueses, iletrados e habituados a uma
estrutura social muito parametrizada, foi então pedido (exigido, imposto?) que
assumissem uma plena cidadania. Mas, na verdade, nada lhes foi pedido: foi-lhes
consumado o facto e, desenquadrados, deixados entregues a si próprios,
abandonados.
E
como as elites republicanas se limitaram a copiar as homólogas monárquicas que
as tinham antecedido digladiando-se em lutas renhidas pelo Poder, o vulgo
continuou ignaro, não opôs resistência quando o mandaram morrer na Flandres, no
sul da Angola e no norte de Moçambique assim como também não fez «cara
feia» quando apareceu alguém disposto a pôr ordem onde se instalara a desavença
constante, o «tira-te tu para me pôr eu», a falência.
Seguiu-se
nova parametrização social, rigor financeiro, resfriamento das vontades que
se apresentavam aquecidas. Essa parametrização durou 40
anos. Tantos como agora levamos de militância pós-moderna, a herdeira do
niilismo.
Se não quisermos continuar na
senda da desintegração social, a ignorar a solidariedade estruturante da
sociedade civil e a insistir na troca do ser pelo ter, devemos parar um pouco
para refrectir se merecemos a liberdade de que queremos usufruir. Para isso,
temos que interiorizar a síntese do humanismo, da solidariedade, da compaixão.
Tenho esta como a questão portuguesa histórica e sociologicamente
mais pertinente:
Na perspectiva singular,
individual – a ética da
compaixão – na dimensão do «eu, tu, ele»: «O
que é que eu posso fazer por ti sem o prejudicar a ele, esse terceiro que eventualmente nem sequer conhecemos?»; na perspectiva plural, colectiva – a ética do Sentido de Estado – na dimensão do «nós, vós, eles»: «O que é que nós podemos fazer por vós sem os prejudicar a eles, esses
terceiros que eventualmente nem sequer conhecemos?»
Temo
que essa síntese não esteja suficientemente assumida pela generalidade dos
cidadãos mas urge promovê-la antes que por aí apareça alguma sharia que nos seja imposta por estranhos radicais.
Então, regressemos à ética antes que seja tarde.
Junho de 2019 Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
Francisco G. de Amorim, 15.06.2019: São Francisco pregava aos peixes. Isto de pregar ao
"eleitor" que nem sequer "está para chatices" de ir votar,
é masoquismo. Infelizmente
Henrique Salles da Fonseca, 16.06.2019: Caro
Amigo: Continuo a ler, com muito interesse (em geral no sossego da noite,
quando se apagam as mil necessidades de intervenção nos quotidianos de filhos,
netos, irmãos, amigos..), todos os seus escritos. Na maior parte das vezes,
concordo. Outras, sinto como minhas as suas palavras. Escreve no seu texto “Era
Napoleão que dizia algo como «os espíritos superiores discutem ideias, os
medíocres discutem factos e os menores discutem pessoas»". Há 2 anos um
amigo meu reportou-me esta situação da vida real:” tendo um velho solar
alcandorado sobre o Douro, perto da Régua, que lhe chegou do trisavô, bisavô,
avô e Pai, tentou continuar a tradição de fazer vinho tinto e algum branco, das
vinhas que descem do solar até ao rio. Uma beleza. Só que… há 30 anos o Pai
mandava o feitor à Régua e contratava sem esforço 20 a 30 homens para as
vindimas. Há 5 anos já este meu amigo, agora sem feitor e directamente
conseguia com esforço 4 a 5 homens, graças ao celebre rendimento social de
inserção, que traziam os moços pelas romarias, feiras e bailaricos de verão sem
necessidade de trabalhar. Hoje já velho, se quer colheita vai ele, um filho
e um velho e fiel tractorista, para cima do tractor de vinha. Tentou
“arregimentar” o filho da antiga caseira. A história edificante, ilustra tudo o
que diz: “ Oh Dª Alzira, então onde anda o seu filho Manel? Precisava dele agora
para as colheitas. Saiba o Sr. Engº que já está para Lisboa. Foi assim: -
tentei que o merceeiro de Baião o aceitasse como marçano. Mas enganava-se nas
contas e entregas ao domicílio e o merceeiro disse-me que tinha pena mas não
podia mantê-lo. Como sou viúva e com muitas dificuldades, mandei-o para a Régua
gritar: Viva o PS e viva o PSD, que é o que está a dar. Sempre teve um
vozeirão, e tive esperança. Tanto gritou, durante umas semanas, que um Senhor,
todo bem-posto lá da Câmara disse-lhe: se quiseres vais para deputado. Não
sabia bem o que era, mas explicaram-lhe, que era fácil. Ia para a última fila
na Assembleia e só tinha que fixar o que um outro deputado, mais importante
mandava – levantava o polegar e levantava-se. Polegar para baixo, sentava-se;
mão aberta batia palmas. Aceitou, já me manda um dinheirinho todos os meses e
está contente porque come bem e não tem nada que fazer. Et voilá, como se faz a
nossa democracia. Abraço Martinho Pereira Coutinho
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