segunda-feira, 17 de junho de 2019

Subitamente, no quase verão seguinte…



Uma Revolução – a tal que os zunzuns opinativos de personagens que interferiram como opositores na história do Estado Novo, escrita por David Martelo em “A BiGORNA”, (recebida por email enviado por João Sena) – veio aplicar as tais alternativas ao poder de Salazar nesta descritas. Seguiu-se um período de reconstrução de já lá vão 45 anos, de mediação partidária e por conta de dinheiros provenientes de esforço alheio (que dificilmente se conseguirão ressarcir), conduzindo o país por ínvios caminhos reconstrutivos, o que faz que alguns cidadãos de honrada estirpe- (que ainda existem) -sobre ele se debrucem com opiniões sérias de uma ética não mais atendida. É o caso do segundo texto, de Salles da Fonseca, ironizado pelos seus dois comentadores, pelos motivos óbvios da sua ineficácia, neste meio que o desvio das normas e da ética descrita tornou irrisórios.
I - ESTADO NOVO – AS DIFICULDADES DO PÓS-GUERRA
Terminada a 2.ª Guerra Mundial, o regime do Estado Novo ficou perante uma situação política internacional claramente adversa. Enquanto a sociedade civil despertava para uma nova e esperançosa realidade e gerava um grande movimento de contestação e luta eleitoral — o Movimento de Unidade Democrática (MUD) —, no interior do regime, incluindo as Forças Armadas, não faltava quem se apercebesse de que, forçosamente, algo haveria de ser mudado. Para os militares mais altamente colocados, a questão da defesa do espaço português, fora do continente europeu, via alterarem-se profundamente os pressupostos definidos no reinado de D. Afonso VI e mantidos até então. De facto, a conservação do vasto Império colonial dependia decisivamente da aliança marítima com a Grã-Bretanha. Por causa desse imperativo estratégico, sofrêramos os ataques franco-espanhóis dos séculos XVIII e XIX e tínhamos ido combater em França em 1917. Assim que a velha aliada decidisse acatar as recomendações da Carta das Nações Unidas para a liquidação do seu património colonial — como era claro que iria suceder — não seria de esperar que, a partir daí, estivesse disponível para se bater por um Império que não era seu. Do ponto de vista militar — e, naturalmente, dos militares — Portugal corria o grave risco de ficar perigosamente isolado, o que contrariava a política externa tradicional do Estado português, desde a sua fundação no século XII. A adesão à OTAN, em 1949, parece, por momentos, poder resolver a questão do isolamento. Todavia, o Tratado do Atlântico limita a sua acção, a Sul, ao trópico de Câncer. As possessões ultramarinas portuguesas ficam, deste modo, excluídas das garantias de defesa colectiva. O problema mantém-se. A humilhante derrota da França na Indochina constitui um alerta e um exemplo a ter em conta. Por outro lado, através dos contactos internacionais que a actividade da OTAN vai proporcionar a muitos militares portugueses, estes vão aperceber-se, cada vez com maior rigor, da dimensão da tempestade que se vai abater sobre o Império colonial português. No plano puramente político, o discurso dos “dissidentes” do Estado Novo aludia, de forma algo imprecisa, à necessidade de repor a pureza original do 28 de Maio. Neste universo de dissidentes, no entanto, importa salientar a existência de duas tendências, resultantes do momento de ruptura com o regime e dos métodos de acção que se propunham adoptar: a primeira, formada no início do pós-guerra, inclui figuras como Henrique Galvão, David Neto e Quintão Meireles, 1 - que, desde então, assumem publicamente o dissídio com Salazar e uma clara rejeição da figura de Santos Costa; a segunda vai-se constituindo durante a presidência de Craveiro Lopes e engloba elementos altamente colocados que anseiam por uma reforma conduzida pelo próprio regime — casos do próprio Craveiro Lopes, de Júlio Botelho Moniz e de um significativo número de generais do Exército e da Força Aérea, também eles dissociados da figura do ministro da Guerra, embora de forma mais discreta. Qualquer destas facções político-militares estava decidida a empreender o afastamento de Salazar pela via putschista, de preferência com a complacência do Presidente da Repúblicaprimeiro Carmona, e, mais tarde, Craveiro Lopes. Embora seja seguro que entre as duas facções tenha havido, ocasionalmente, contactos exploratórios, é mais arriscado afirmar que tenham, alguma vez, agido de forma perfeitamente concertada. Que estiveram em campos diferentes, por outro lado, é questão que não oferece dúvidas de nenhuma espécie — como foi o caso da campanha de Humberto Delgado à presidência da República. 1 A este grupo juntar-se-ia, mais tarde, o general Humberto Delgado. 2 Nas quase três décadas que se vão seguir, a acção oposicionista das correntes civil e militar — aparentemente divergentes — faria, todavia, um inevitável percurso convergente. Por mais de uma vez, elementos das duas correntes haveriam mesmo de juntar esforços — quase sempre de forma insipiente — para logo depois refluírem para os seus sectores de origem. Ilustres republicanos, como António Sérgio, Jaime Cortesão ou Azevedo Gomes, acreditavam ser possível derrubar o regime através da aliança com os seus dissidentes. É esta corrente de pensamento que conduz ao apoio da oposição às candidaturas de Quintão Meireles e Humberto Delgado. Outro factor decisivo nos anos que se vão seguir é, sem dúvida, o estado de saúde de Salazar. Embora jamais tivesse sido um perfeito exemplo de homem saudável, o desgaste de 17 anos ininterruptos de governo — onde merecem especial destaque as tensões acumuladas ao longo da Guerra Civil de Espanha e da 2.ª Guerra Mundial — faz de Salazar, nos seus 57 anos, um homem de vigor definitivamente abalado. Até a voz — instrumento fundamental para quem fazia do discurso político uma forma de afirmação — estava agora afectada por uma irrecuperável rouquidão que o impedia de falar longamente em voz alta. O próprio biógrafo do ditador, Franco Nogueira, embora com alguma benevolência à mistura, não deixa de referir essas decisivas condicionantes: Intelectualmente está intacto: não tem ranhuras a sua lucidez, nem há quebra na sua vontade. Mas a tensão dos nervos, a subjugação imperiosa de si próprio até ao limite da ruptura, haviam desgastado as suas energias. Findo o pesadelo, vem o relaxamento, o colapso. Oliveira Salazar sofre das suas velhas enxaquecas, e causam-lhe incómodo redobrado; mais do que nunca, mortificam-no os olhos, exaustos de aplicação sem mercê; e afligem-no tonturas prolongadas, e a crença de que não pode andar sem o apoio de alguém, nem permanecer de pé sem se arrimar a uma parede, a um móvel.2 Perdida a juventude política — como sinónimo de criatividade, espírito inovador e entusiasmo na acção —, Salazar, como muitos outros ditadores ao longo da história, vai conduzir esta nova fase da sua vida pública como um resistente que se entrincheira na derradeira posição conquistada. Ciente de que a iniciativa está no campo adversário, resta-lhe, assim, optar por uma postura claramente defensiva. No campo político-militar, destacam-se duas personalidades: Santos Costa, ministro da Guerracada vez mais influente nas hostes do regime — e Júlio Botelho Moniz, ministro do Interior. Nos meios de cúpula do Estado Novo há a sensação de que qualquer deles procura desenvolver algo de semelhante a um ‘projecto próprio’. Entre os civis, igual procedimento parece perceber-se nas atitudes de Marcello Caetano. O avizinhar das eleições para a Assembleia Nacional [18 de Novembro de 1945] avoluma as preocupações dos homens do regime. Em 10 de Outubro de 1945, Santos Costa escreve a Salazar estas significativas palavras: Noto certo alarme nos nossos arraiais com o actual momento político. Os inimigos crescem a olhos vistos e, mesmo que não vão às eleições, devem sair do acto bastante prestigiados. Serão os nossos capazes de aproveitar o pretexto para se unirem? Oxalá que sim. Mas quem deve dar o grito de união? Quem terá possibilidades de se fazer ouvir? 2 NOGUEIRA, Franco, Salazar, Vol. III, pp. 10-11. 3 Seguidamente, acrescenta um comentário tão significativo quanto surpreendente para um ‘fiel’ do regime: Creio firme e sinceramente que da U.N. nada poderá vir de útil a este respeito. Falta aos seus elementos dirigentes o indispensável prestígio para tanto.3 Na sequência das eleições legislativas de 18 de Novembro de 1945 — a que, uma vez mais, a oposição se abstém de concorrer, por não ver reunidas as indispensáveis condições de isenção —, as fracturas no interior do regime são evidentes. Os 57% de eleitores que acorrem às urnas — de um total de 992.723 inscritos — estabelecem o pior resultado registado até então (79% em 1934; 83,5% em 1938; 86,6 % em 1942).4 Vai-se desvanecendo a convicção de que o país segue no ‘rumo certo’. Parecem criadas condições para uma ruptura conducente a um relançamento político mais de acordo com as realidades do pós-guerra. David Martelo – 1999, “A BIGORNA”
II - DA ÉTICA
HENRIQUE SALLES DA FONSECA             A BEM DA NAÇÃO, 16.06.19
A ultrapassagem do metafísico pelo positivo só se sustentou enquanto este último viveu da herança dos estádios anteriores (teológico e metafísico). Porém, o sucessivo afastamento e descuido em relação àquelas fontes deixou-o animicamente esvaído e eticamente desamparado.
Este raciocínio de D. Manuel Clemente a págs. 40 e seg. do seu livro “PORQUÊ E PARA QUÊ» – Pensar com esperança o Portugal de hoje” assenta como uma luva à geração pós-moderna actual.
Contudo, a ética cristã de solidariedade e benevolência para com o próximo (muito próxima da compaixão budista), de honradez e de trabalho, tem uma versão laica que pergunta, com enorme simplicidade, «o que é que eu posso fazer por ti sem o prejudicar a ele, esse terceiro que nem sequer conheço?». E esta atitude não carece de fundamento teológico pelo que é perfeitamente aplicável a quem se diz afastado das religiões. Ou seja, estar longe das religiões não é argumento para ignorar o princípio ético.
No início do século XX, a sociedade portuguesa vivia numa quase hierocracia e foi contra esse domínio que a laicização da ética tentou abrir caminho. Mas não terá conseguido vingar no ambiente de iliteracia que então reinava e hoje, passado um século, continuamos a padecer das consequências desse desencontro. Uma população tutelada pela ameaça da ira divina, não teve arcaboiço para se harmonizar eticamente sem tutela num espaço que se pretendia republicano, responsável. Aos portugueses, iletrados e habituados a uma estrutura social muito parametrizada, foi então pedido (exigido, imposto?) que assumissem uma plena cidadania. Mas, na verdade, nada lhes foi pedido: foi-lhes consumado o facto e, desenquadrados, deixados entregues a si próprios, abandonados.
E como as elites republicanas se limitaram a copiar as homólogas monárquicas que as tinham antecedido digladiando-se em lutas renhidas pelo Poder, o vulgo continuou ignaro, não opôs resistência quando o mandaram morrer na Flandres, no sul da Angola e no norte de Moçambique assim como também não fez «cara feia» quando apareceu alguém disposto a pôr ordem onde se instalara a desavença constante, o «tira-te tu para me pôr eu», a falência.
Seguiu-se nova parametrização social, rigor financeiro, resfriamento das vontades que se apresentavam aquecidas. Essa parametrização durou 40 anos. Tantos como agora levamos de militância pós-moderna, a herdeira do niilismo.
Se não quisermos continuar na senda da desintegração social, a ignorar a solidariedade estruturante da sociedade civil e a insistir na troca do ser pelo ter, devemos parar um pouco para refrectir se merecemos a liberdade de que queremos usufruir. Para isso, temos que interiorizar a síntese do humanismo, da solidariedade, da compaixão.
Tenho esta como a questão portuguesa histórica e sociologicamente mais pertinente:
Na perspectiva singular, individuala ética da compaixão – na dimensão do «eu, tu, ele»: «O que é que eu posso fazer por ti sem o prejudicar a ele, esse terceiro que eventualmente nem sequer conhecemos?»; na perspectiva plural, colectiva – a ética do Sentido de Estado – na dimensão do «nós, vós, eles»: «O que é que nós podemos fazer por vós sem os prejudicar a eles, esses terceiros que eventualmente nem sequer conhecemos?»
Temo que essa síntese não esteja suficientemente assumida pela generalidade dos cidadãos mas urge promovê-la antes que por aí apareça alguma sharia que nos seja imposta por estranhos radicais.
Então, regressemos à ética antes que seja tarde.
Junho de 2019   Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
Francisco G. de Amorim, 15.06.2019: São Francisco pregava aos peixes. Isto de pregar ao "eleitor" que nem sequer "está para chatices" de ir votar, é masoquismo. Infelizmente
Henrique Salles da Fonseca, 16.06.2019: Caro Amigo: Continuo a ler, com muito interesse (em geral no sossego da noite, quando se apagam as mil necessidades de intervenção nos quotidianos de filhos, netos, irmãos, amigos..), todos os seus escritos. Na maior parte das vezes, concordo. Outras, sinto como minhas as suas palavras. Escreve no seu texto “Era Napoleão que dizia algo como «os espíritos superiores discutem ideias, os medíocres discutem factos e os menores discutem pessoas»". Há 2 anos um amigo meu reportou-me esta situação da vida real:” tendo um velho solar alcandorado sobre o Douro, perto da Régua, que lhe chegou do trisavô, bisavô, avô e Pai, tentou continuar a tradição de fazer vinho tinto e algum branco, das vinhas que descem do solar até ao rio. Uma beleza. Só que… há 30 anos o Pai mandava o feitor à Régua e contratava sem esforço 20 a 30 homens para as vindimas. Há 5 anos já este meu amigo, agora sem feitor e directamente conseguia com esforço 4 a 5 homens, graças ao celebre rendimento social de inserção, que traziam os moços pelas romarias, feiras e bailaricos de verão sem necessidade de trabalhar. Hoje já velho, se quer colheita vai ele, um filho e um velho e fiel tractorista, para cima do tractor de vinha. Tentou “arregimentar” o filho da antiga caseira. A história edificante, ilustra tudo o que diz: “ Oh Dª Alzira, então onde anda o seu filho Manel? Precisava dele agora para as colheitas. Saiba o Sr. Engº que já está para Lisboa. Foi assim: - tentei que o merceeiro de Baião o aceitasse como marçano. Mas enganava-se nas contas e entregas ao domicílio e o merceeiro disse-me que tinha pena mas não podia mantê-lo. Como sou viúva e com muitas dificuldades, mandei-o para a Régua gritar: Viva o PS e viva o PSD, que é o que está a dar. Sempre teve um vozeirão, e tive esperança. Tanto gritou, durante umas semanas, que um Senhor, todo bem-posto lá da Câmara disse-lhe: se quiseres vais para deputado. Não sabia bem o que era, mas explicaram-lhe, que era fácil. Ia para a última fila na Assembleia e só tinha que fixar o que um outro deputado, mais importante mandava – levantava o polegar e levantava-se. Polegar para baixo, sentava-se; mão aberta batia palmas. Aceitou, já me manda um dinheirinho todos os meses e está contente porque come bem e não tem nada que fazer. Et voilá, como se faz a nossa democracia. Abraço Martinho Pereira Coutinho


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