sábado, 15 de junho de 2019

Um simples conto


“Auto do Rei Herodes” se chama. Arrependida de ter abandonado o livrinho de contos que a RTP há anos tinha publicado - por inapetência meio estarola de continuar a ler “por devoção” uma escritora que fora forçada a ler “por obrigação”, o que fizera, de resto, com gosto, guiada pela orientação impecável de Maria Alzira Barahona - resolvi pegar novamente nesse livrinho de Contos de ABL, não como leitura de cabeceira que tentei primeiro, mas como peças de arte a merecer concentração absoluta – no meu caso, à mesa solitária da esplanada. O primeiro conto foi precisamente “A Brusca”, história de uma rica mansão vendida pelo seu proprietário a um “filho duma boa família de província” meio boémio, que para lá levou uma mulher fabricante de filhos de diferentes pais, casa paulatinamente reduzida a escombros, e posteriormente de novo vendida e restaurada. Uma história que novamente me recordou “A Sibila”, na aproximação de figuras um tanto evasivas de mistérios sombrios, como representantes de mundos meio sinistros de gente de província protegida na sua aristocracia intelectual ou de raiz fundiária.
De Agustina, fui lendo por vezes a sua colaboração em jornais, saboreando-lhe a arte da palavra escrita, mas as directivas de vida fizeram-me protelar a leitura de tanta obra sua que desconheci. Hoje, dado o realce que a sua morte mereceu, resolvi concentrar-me também na leitura de uma escrita de facto impecável, na ironia subjacente às suas descrições de um sintetismo miraculoso, entre a projecção analítica e o conhecimento literário. E peguei no segundo conto – “O Rei Herodes” – história de um rico que se fez mendigo e mesmo assassino, pois com uma pedrada matara um rapaz da aldeia, que o difamava, e que ele, de resto amou sentidamente. Uma história de nada – apenas um caso – para o rendilhado das interpretações sublimes da escritora, conhecedora como ninguém da alma humana, e que atribui às suas personagens idêntica capacidade de destrinça, caso do “Rei Herodes”, de que transcrevo as falas finais e a conclusão, demonstrativas de quanto Agustina cria tipos sociais como pretexto para “invadir” os universos anímicos, desinteressada de criar enredos consistentes, histórias com real movimento e acção, que mereçam apreço ou repúdio, admiração ou choque. Pelo contrário, é espantosa de “criação” vocabular, simbólica, mas um pesadelo de génio que “não chega a nada”, propondo um caso, talvez sórdido, talvez sinistro, com o seu quê de caricato, num sombrio tumular ou doentio. Agustina maneja as palavras e as ideias monstruosamente, genialmente, deslumbrantemente, monocordicamente, como pintor recreando-se na mistura das suas tintas e admirando o efeito simbólico das suas manchas ou traços, no mundo recriado. Nada semelhante a tantas prosas romanceadas de autênticos criadores de enredos, sem rebuscamento mas com elegância criativa de que cito como exemplo, “Cisnes Selvagensde Jung Chang.
Eis o passo final de “O Rei Herodes”.
«-Tacteou as chaves junto dele e tomou-as na mão direita, apertando-as com muita força. Eram enormes chaves de calabouço e de celeiro, dum rugoso ferro que o uso não conseguira amaciar. O Rei Herodes escolheu uma e apontou-a diante dos meus olhos. – Vou abrir a arca onde tenho ataduras para os meus pés e passarei o tempo a mudá-las.
- Não tem oiro, armas raras e perfumes? – disse-lhe eu.
- Não. Só farrapos donde rasgo ligaduras para os meus pés. Gastam-se depressa, são feitas de trapos velhos. – Ele olhou para mim, a voz dele fez-se ainda mais estrídula e desigual. – Mas os adivinhos sabem coisas extraordinárias, são gente marcada, desde que nasce, para adivinhar coisas. Conheci alguns que faziam despontar uma flor num copo de água límpida, outros que sacudiam as nuvens como um tapete roto e faziam cair delas gotas de sangue, eu vi, não era possível fraude nenhuma; de resto, sou um homem lúcido. Fizeram-me levantar sozinho no ar e dar três voltas em redor duma sala sem nunca pousar os pés no sobrado, e outro, sentado no chão, riscou na areia com o dedo, e eu pus-me de repente a chorar e a tremer; não era palavra alguma conhecida e isso despertou em mim terrível paixão e ânimo imenso de viver. Até uma pedra se moveria e vertia lágrimas se eu a olhasse nesse momento. Sim, até uma pedra ou um fio de algodão, ou uma pena solta dos últimos ninhos e que adormece no ar. Sim, até uma pedra… uma pedra qualquer, uma pedra.
Então o Rei Herodes levantou-se e mal se tinha de pé na sua exígua estatura, vacilante, maciço e triste como um pequeno paquiderme recém-nascido e órfão. Caiu-me nos olhos aquele belo rio fremente, os pinhais duma solenidade algo caseira, o horizonte de vilas marítimas, costeiros sítios tintos de nuvens vermelhas. “Ah – disse eu -, então é verdade! É uma noite maravilhosa» e fiquei ainda algum tempo, simplesmente, a olhar.»
CRÓNICA:  ACÇÃO PARALELA:     Agustina, a escritora sem literatura
ANTÓNIO GUERREIRO      PÚBLICO, 7 de Junho de 2019
Pela morte de Agustina Bessa-Luís, elevou-se um coro público de superlativos e hipérboles, de adjectivos extasiados aproximando-se das visões místicas e do gozo erótico da espiritualidade barroca. Estava aberta a corrida para o inefável, e muitos foram os concorrentes. Vejamos alguns exemplos.
Uns diziam que ela só se pode medir com o absoluto, que não admite níveis e gradações (“Não se gosta mais ou menos de Agustina, como não se gosta mais ou menos de Herberto Helder”, Pedro Mexia), outros diziam que ela encarnou o enigma genial da literatura e ganhou o direito à eternidade (“Se há génio, é Agustina. Se há mistério literário, é Agustina. Se há alguém que não morre, é Agustina”, Hélia Correia; acrescente-se que a garantia da imortalidade foi assinada por mais depoentes). Outros, “curvando-se” perante o seu génio que só na esfera da teologia encontra explicação, veneraram a “criadora” e atribuíram-lhe o poder de uma comunhão mística (“retrato da força telúrica de um povo”, Presidente da República).
Era o momento de erguer a cabeça e olhar para as alturas do sublime. Não havia limites para o entusiasmo lutuoso e ninguém se lembrou das virtudes da sobriedade romântica que se opõe à desmesura do pathos sagrado dos gregos. António Lobo Antunes mediu a grandeza de Agustina pelo padrão da sua auto-reconhecida grandeza, que não é coisa pouca e tem força suficiente para elevar a escritora aos píncaros do panteão, onde ele estabeleceu morada por sua conta e risco e onde recebe os seus raros convidados. Ao mesmo tempo “revelou” alguns ditos de espírito de Agustina que ele, em privilégio exclusivo, teria tido a felicidade de ter escutado (como aquele em que ela diz que forma com o seu marido um casal tão perfeito que deve ser chamado “casal Garcia”), mas afinal todos esses ditos circulam por toda a cidade desde há muito tempo e não há, no meio literário, quem não os conheça. Uma decepção, estas revelações do candidato a Garcia. Em suma: a temperatura das palavras aqueceu muito e ergueu-se um entusiasmo descontrolado.
Agustina Bessa-Luís merece esta adjectivação exasperada que esvazia o seu objecto e nos faz prestar atenção a quem a profere? Não merece: não por estar aquém, mas porque tudo o que escreveu lança um riso crítico, soberano e perverso sobre estes tipos de discurso.
Ao que há aqui em excesso, responde a quase ausência que se faz notar noutro lado, em artigos e depoimentos que nos digam o que quer que seja sobre a obra de Agustina, que responda à exigência de leitura dos livros, que faça uso da citação. A literatura foi quase completamente evacuada no momento em que se exalta com tanta veemência a pessoa da autora (sejamos justos, encontrei três excepções: um artigo de Mário Santos no PÚBLICO, outro de Diogo Vaz Pinto no jornal i e algumas palavras do depoimento de Gonçalo M. Tavares, o qual, apesar de cair no mesmo excesso, chamando a Agustina “um extraterrestre”, diz depois algumas palavras pertinentes sobre a sua escrita).
Alguém que nunca tenha lido nada da escritora, e ela cultivou muitos géneros por onde escolher, sai derrotado por esta parafernália laudatória. Para além dos títulos de alguns livros, pouco mais nos faz aceder à obra da autora. Se calhar, Gonçalo M. Tavares tem razão: é mesmo uma extraterrrestre. Esta escritora sem escrita, este génio que nesta ocasião se vê espoliada da obra que engendrou, é o produto mais extremo da condição clandestina da literatura e da crítica. Agustina é um génio, mas os seus livros são um empecilho e uma chatice, o melhor é fazer de conta que nem existem.
É interessante ver que pessoas do meio literário que certamente têm uma enorme lucidez e vêem com um olhar muito crítico esta situação, que é uma forma de obscurantismo, caem nas armadilhas que denunciam quando estão de fora. Se quiséssemos fazer uma etologia da vida literária como ela merece, do gregarismo e da vacuidade que a animam, tínhamos nestas mobilizações circunstanciais dos entusiasmos sem nenhum conteúdo, apenas fascinados por si mesmos, embora pareçam voltados para um objecto preciso, material muito fecundo de pesquisa.
Livro de recitações
“...O mundo rural, que vive e prolonga a agricultura, a caça, a pecuária, a produção de queijos e tantas outras coisas”
Numa longa litania a denunciar as fraudes do PAN (mas não é isso que aqui me interessa), Miguel Sousa Tavares refere-se de maneira recorrente ao “mundo rural”. A referência a tal coisa ilocalizável mostra que seu imaginário não é apenas preenchido por preconceitos, tem também os seus momentos de projecção idílica, de reivindicação de uma aurea mediocritas, própria de um cenário onde há rebanhos, pastores, agricultores e caçadores, todos convivendo em harmonia. Quem hoje tem a felicidade de vislumbrar o “mundo rural”, quem acredita que tal coisa a que outrora se chamou “mundo rural” ainda existe, também acredita na existência dos unicórnios. Ou então o senhor da cidade, de seu nome Miguel, arranjou maneira de alguém construir um “mundo rural” só para si. Ei-lo, então, a partilhar, na televisão e nos jornais, a sua felicidade arcádica: “Et in arcadia ego”.
COMENTÁRIOS
Helena Maria Vilhena Barroso, 122 11.06.2019: Agustina: uma escritora que gostava de se ouvir escrever.
Gastão Clemente, Custóias 08.06.2019 : Excelente artigo!

Carlos Félix, Oeiras / Beja 07.06.2019: Os livros que nos faltam são os que não pudemos ou quisemos escrever (e ler?). Para desanuviar: O “mundo rural” na impossibilidade de ser idílico passou a ser lugar de idílios.

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