“Auto
do Rei Herodes” se chama. Arrependida de ter abandonado o livrinho de
contos que a RTP há anos tinha
publicado - por inapetência meio estarola de continuar a ler “por devoção” uma
escritora que fora forçada a ler “por obrigação”, o que fizera, de resto, com
gosto, guiada pela orientação impecável de Maria
Alzira Barahona - resolvi pegar novamente nesse livrinho de Contos de ABL, não como leitura de cabeceira que
tentei primeiro, mas como peças de arte a merecer concentração absoluta – no meu
caso, à mesa solitária da esplanada. O primeiro conto foi precisamente “A Brusca”, história de uma rica mansão vendida
pelo seu proprietário a um “filho duma
boa família de província” meio boémio, que para lá levou uma mulher
fabricante de filhos de diferentes pais, casa paulatinamente reduzida a escombros, e posteriormente de novo vendida e restaurada. Uma história que
novamente me recordou “A Sibila”, na
aproximação de figuras um tanto evasivas de mistérios sombrios, como
representantes de mundos meio sinistros de gente de província protegida na sua aristocracia
intelectual ou de raiz fundiária.
De Agustina, fui lendo por vezes a sua colaboração em jornais, saboreando-lhe
a arte da palavra escrita, mas as directivas de vida fizeram-me protelar a
leitura de tanta obra sua que desconheci. Hoje, dado o realce que a sua morte
mereceu, resolvi concentrar-me também na leitura de uma escrita de facto
impecável, na ironia subjacente às suas descrições de um sintetismo miraculoso,
entre a projecção analítica e o conhecimento literário. E peguei no segundo
conto – “O Rei Herodes” – história
de um rico que se fez mendigo e mesmo assassino, pois com uma pedrada matara um
rapaz da aldeia, que o difamava, e que ele, de resto amou sentidamente. Uma história
de nada – apenas um caso – para o rendilhado das interpretações sublimes da
escritora, conhecedora como ninguém da alma humana, e que atribui às suas
personagens idêntica capacidade de destrinça, caso do “Rei Herodes”, de que transcrevo as falas finais e a
conclusão, demonstrativas de quanto Agustina cria tipos
sociais como pretexto para “invadir” os universos anímicos, desinteressada de
criar enredos consistentes, histórias com real movimento e acção, que mereçam
apreço ou repúdio, admiração ou choque. Pelo contrário, é espantosa de “criação”
vocabular, simbólica, mas um pesadelo de génio que “não chega a nada”, propondo
um caso, talvez sórdido, talvez sinistro, com o seu quê de caricato, num
sombrio tumular ou doentio. Agustina maneja as palavras e as ideias
monstruosamente, genialmente, deslumbrantemente, monocordicamente, como pintor
recreando-se na mistura das suas tintas e admirando o efeito simbólico das suas
manchas ou traços, no mundo recriado. Nada semelhante a tantas prosas
romanceadas de autênticos criadores de enredos, sem rebuscamento mas com
elegância criativa de que cito como exemplo, “Cisnes Selvagens” de Jung Chang.
Eis o passo final de “O Rei Herodes”.
«-Tacteou
as chaves junto dele e tomou-as na mão direita, apertando-as com muita força.
Eram enormes chaves de calabouço e de celeiro, dum rugoso ferro que o uso não
conseguira amaciar. O Rei Herodes escolheu uma e apontou-a diante dos meus
olhos. – Vou abrir a arca onde tenho ataduras para os meus pés e passarei o
tempo a mudá-las.
- Não
tem oiro, armas raras e perfumes? – disse-lhe eu.
-
Não. Só farrapos donde rasgo ligaduras para os meus pés. Gastam-se depressa,
são feitas de trapos velhos. – Ele olhou para mim, a voz dele fez-se ainda mais
estrídula e desigual. – Mas os adivinhos sabem coisas extraordinárias, são
gente marcada, desde que nasce, para adivinhar coisas. Conheci alguns que
faziam despontar uma flor num copo de água límpida, outros que sacudiam as nuvens
como um tapete roto e faziam cair delas gotas de sangue, eu vi, não era
possível fraude nenhuma; de resto, sou um homem lúcido. Fizeram-me levantar
sozinho no ar e dar três voltas em redor duma sala sem nunca pousar os pés no
sobrado, e outro, sentado no chão, riscou na areia com o dedo, e eu pus-me de
repente a chorar e a tremer; não era palavra alguma conhecida e isso despertou
em mim terrível paixão e ânimo imenso de viver. Até uma pedra se moveria e
vertia lágrimas se eu a olhasse nesse momento. Sim, até uma pedra ou um fio de
algodão, ou uma pena solta dos últimos ninhos e que adormece no ar. Sim, até
uma pedra… uma pedra qualquer, uma pedra.
Então
o Rei Herodes levantou-se e mal se tinha de pé na sua exígua estatura,
vacilante, maciço e triste como um pequeno paquiderme recém-nascido e órfão. Caiu-me
nos olhos aquele belo rio fremente, os pinhais duma solenidade algo caseira, o
horizonte de vilas marítimas, costeiros sítios tintos de nuvens vermelhas. “Ah –
disse eu -, então é verdade! É uma noite maravilhosa» e fiquei ainda algum
tempo, simplesmente, a olhar.»
CRÓNICA: ACÇÃO PARALELA: Agustina, a escritora sem literatura
ANTÓNIO GUERREIRO PÚBLICO, 7 de Junho de 2019
Pela
morte de Agustina Bessa-Luís, elevou-se um
coro público de superlativos e hipérboles, de adjectivos
extasiados aproximando-se das visões místicas e do gozo erótico da
espiritualidade barroca. Estava aberta a corrida para o inefável, e muitos
foram os concorrentes. Vejamos alguns exemplos.
Uns
diziam que ela só se pode medir com o absoluto, que não admite níveis e
gradações (“Não se gosta mais ou menos de Agustina, como não se gosta mais ou
menos de Herberto Helder”, Pedro Mexia), outros diziam que ela encarnou o
enigma genial da literatura e ganhou o direito à eternidade (“Se há génio, é
Agustina. Se há mistério literário, é Agustina. Se há alguém que não morre, é
Agustina”, Hélia Correia; acrescente-se que a garantia da imortalidade foi
assinada por mais depoentes). Outros, “curvando-se” perante o seu génio que só
na esfera da teologia encontra explicação, veneraram a “criadora” e
atribuíram-lhe o poder de uma comunhão mística (“retrato da força telúrica
de um povo”, Presidente da República).
Era
o momento de erguer a cabeça e olhar para as alturas do sublime. Não havia limites para o entusiasmo lutuoso e
ninguém se lembrou das virtudes da sobriedade romântica que se opõe à desmesura
do pathos sagrado dos gregos. António Lobo Antunes mediu a grandeza de
Agustina pelo padrão da sua auto-reconhecida grandeza, que não é coisa pouca e
tem força suficiente para elevar a escritora aos píncaros do panteão, onde ele
estabeleceu morada por sua conta e risco e onde recebe os seus raros
convidados. Ao mesmo tempo “revelou” alguns ditos de espírito de Agustina que
ele, em privilégio exclusivo, teria tido a felicidade de ter escutado (como
aquele em que ela diz que forma com o seu marido um casal tão perfeito que deve
ser chamado “casal Garcia”), mas afinal todos esses ditos circulam por toda a
cidade desde há muito tempo e não há, no meio literário, quem não os conheça.
Uma decepção, estas revelações do candidato a Garcia. Em suma: a temperatura
das palavras aqueceu muito e ergueu-se um entusiasmo descontrolado.
Agustina Bessa-Luís merece esta adjectivação exasperada que esvazia o seu
objecto e nos faz prestar atenção a quem a profere? Não merece: não por estar
aquém, mas porque tudo o que escreveu lança um riso crítico, soberano e
perverso sobre estes tipos de discurso.
Ao
que há aqui em excesso, responde a quase ausência que se faz notar noutro lado,
em artigos e depoimentos que nos digam o que quer que seja sobre a obra de
Agustina, que responda à exigência de leitura dos livros, que faça uso da
citação. A literatura foi quase completamente evacuada no momento em que se
exalta com tanta veemência a pessoa da autora (sejamos justos, encontrei três excepções: um artigo de Mário Santos no PÚBLICO, outro
de Diogo Vaz Pinto no jornal i e algumas palavras do depoimento de
Gonçalo M. Tavares, o qual, apesar de cair no mesmo excesso, chamando a
Agustina “um extraterrestre”, diz depois algumas palavras pertinentes sobre a
sua escrita).
Alguém
que nunca tenha lido nada da escritora, e ela cultivou muitos géneros por onde
escolher, sai derrotado por esta parafernália laudatória. Para além dos títulos
de alguns livros, pouco mais nos faz aceder à obra da autora. Se calhar,
Gonçalo M. Tavares tem razão: é mesmo uma extraterrrestre. Esta
escritora sem escrita, este génio que nesta ocasião se vê espoliada da obra que
engendrou, é o produto mais extremo da condição clandestina da literatura e da
crítica. Agustina é um génio, mas os seus livros são um empecilho e uma
chatice, o melhor é fazer de conta que nem existem.
É
interessante ver que pessoas do meio literário que certamente têm uma enorme
lucidez e vêem com um olhar muito crítico esta situação, que é uma forma de
obscurantismo, caem nas armadilhas que denunciam quando estão de fora. Se
quiséssemos fazer uma etologia da vida literária como ela merece, do gregarismo
e da vacuidade que a animam, tínhamos nestas mobilizações circunstanciais dos
entusiasmos sem nenhum conteúdo, apenas fascinados por si mesmos, embora
pareçam voltados para um objecto preciso, material muito fecundo de pesquisa.
Livro
de recitações
“...O
mundo rural, que vive e prolonga a agricultura, a caça, a pecuária, a produção
de queijos e tantas outras coisas”
Numa
longa litania a denunciar as fraudes do PAN (mas não é isso que aqui me
interessa), Miguel Sousa Tavares refere-se de maneira recorrente ao “mundo
rural”. A referência a tal coisa ilocalizável mostra que seu imaginário não
é apenas preenchido por preconceitos, tem também os seus momentos de projecção
idílica, de reivindicação de uma aurea mediocritas, própria de um cenário onde
há rebanhos, pastores, agricultores e caçadores, todos convivendo em harmonia.
Quem hoje tem a felicidade de vislumbrar o “mundo rural”, quem acredita que tal
coisa a que outrora se chamou “mundo rural” ainda existe, também acredita na
existência dos unicórnios. Ou então o senhor da cidade, de seu nome Miguel,
arranjou maneira de alguém construir um “mundo rural” só para si. Ei-lo, então,
a partilhar, na televisão e nos jornais, a sua felicidade arcádica: “Et in arcadia
ego”.
COMENTÁRIOS
Helena Maria Vilhena Barroso, 122 11.06.2019: Agustina:
uma escritora que gostava de se ouvir escrever.
Gastão Clemente, Custóias 08.06.2019 :
Excelente artigo!
Carlos Félix, Oeiras / Beja 07.06.2019:
Os livros que nos faltam são os que não
pudemos ou quisemos escrever (e ler?). Para desanuviar: O “mundo rural” na
impossibilidade de ser idílico passou a ser lugar de idílios.
Nenhum comentário:
Postar um comentário