Dois textos bastante elucidativos, o
primeiro, de Rui Ramos, sobre uma
União Europeia em banho-maria dificilmente extinguível, para descanso nosso, o
segundo, de Helena Garrido, sobre um
governo exercendo os seus trejeitos de sedução sobre o público eleitor, com
medidas de caridadezinha que nos regalam a alma mendicante, e que se revelam de
trágicas consequências desgastantes, como os seus comentadores bem demonstram também.
Que há para discutir sobre a
Europa? /premium
OBSERVADOR, 14/5/2019
O
ponto mais importante destas eleições europeias é que até os principais
"populistas" são hoje europeístas. Não há alternativa à UE, e
portanto também não há qualquer discussão europeia.
O
regime tem algumas coisas comovedoras. Uma delas é o esforço que todos fazem
para disfarçar a verdadeira natureza das eleições para o parlamento
europeu. Aqui, como em outros países, não passam de uma grande sondagem
de opinião em urna, num dia em que a maior parte dos eleitores tem mais que
fazer. Porque é que deveria ser diferente? Trata-se de eleger uma assembleia
cujo principal papel consiste em votar, de cinco em cinco anos, o executivo do
que é, para todos os efeitos, uma união intergovernamental. Para dissimular
isso, pede-se aos candidatos que discutam a Europa ou até mais rebuscadamente
“ideias sobre a Europa”.
É
um hábito sem sentido. Ficou dos anos 90, quando se preparava a integração
monetária e toda a gente julgava que assistia ao parto dos Estados Unidos da
Europa. Ainda
talvez parecesse fazer sentido no princípio desta década, durante a crise do
euro, quando, pelo contrário, muita gente achou que era chique acreditar no fim
da União Europeia. Desde então, porém, não é fácil justificá-lo.
Basta
olhar para os “populistas”, de que a imprensa agora abusa desesperadamente para
dar algum interesse às eleições europeias. Há uns anos, a antiga Frente
Nacional, em França, o Syriza, na Grécia, ou o 5 Estrelas e a Liga Norte, na
Itália, ainda talvez pudessem passar por anti-europeus. Renegavam o Euro,
contestavam as regras, exigiam fronteiras. Que vimos, entretanto? O Syriza, que
em 2015 organizou um referendo contra a recusa dos outros europeus lhe
emprestarem dinheiro sem condições, até já é elogiado no Economist. Na Itália, o 5
Estrelas e a Liga Norte prometeram ferro e fogo contra as restrições
orçamentais, para actualmente serem mais cumpridores do que Macron. Em França, Marine Le Pen
trocou o “Frexit” pelo “governo da moeda única”, como se fosse uma comissária
europeia. Os grandes eurocépticos parecem hoje euroconformados. Porquê? Porque
estão no governo, como o Syriza, o 5 Estrelas e a Liga Norte, ou porque ainda
esperam lá chegar, como Le Pen. O mesmo se poderia dizer do
nosso eurocepticismo doméstico. Há quatro anos que BE e PCP estão esquecidos
das “saídas” e “rupturas” que outrora os deixavam tão excitados. A UE mudou?
Não, apenas houve a geringonça.
É sabido que os europeus ficam mais europeístas
quando as economias crescem, o que tem sido o caso ultimamente. Mas talvez
tenham entretanto descoberto outra coisa: que nenhum país, até ver, tem meios
para organizar uma saída ordenada da UE.
Viu-se isso na Grécia, em 2015, quando o Syriza preferiu a humilhação de
esquecer o referendo, a sofrer o drama argentino de um novo dracma. E está-se a
ver isso agora no Reino Unido, onde a elite política, depois do referendo de
2016, já
concordou que não sairá da UE sem ficar com um pé lá dentro: “brexit in name only”, como diz o ex-governador do Banco de
Inglaterra. Na UE, não
é fácil entrar, como os portugueses aprenderam durante quase dez anos de
espera, mas é ainda mais difícil sair. Não porque o Tratado de Lisboa não
tenha o artigo 50. Mas porque o que a UE representa — um dos
maiores mercados do mundo e, para quem está no Euro sob o guarda-chuva do BCE,
uma fortaleza contra os mercados de capitais — não tem alternativa. Fora da UE,
a maior parte dos Estados europeus teria provavelmente de renunciar ao seu
modelo social — ou aceitar a degradação dos seus níveis de vida.
É difícil imaginar mais integração
europeia, e é difícil querer menos. Que há então para discutir? Talvez isto: as
razões pelas quais as democracias europeias tentaram e conseguiram, através da
integração internacional, colocar as suas estruturas internas para além de
qualquer debate. Foi uma ideia americana no primeiro pós-guerra, em 1919, como
sugere Adam Tooze em The Deluge. Não
se fez então. Fez-se agora.
A austeridade pelo racionamento /premium
OBSERVADOR, 3/6/2019
Caos nos transportes, filas intermináveis
em serviços públicos e listas de espera ou condições degradadas no SNS. São
reflexos das escolhas políticas do Governo. Como agora reconhece António Costa.
“A
prioridade desta legislatura foi, obviamente, fazer a recuperação de
direitos [e rendimentos]”, disse o primeiro-ministro na Comissão Política
nacional do PS e aqui citado pelo Expresso (para assinantes). Promete, até
ao fim da legislatura, dar resposta a “um conjunto de serviços cujo
funcionamento deficiente não é aceitável”, nomeadamente os “transportes
públicos, Serviço Nacional de Saúde ou prestação de serviços básicos como a
emissão de cartões de cidadão e passaportes.” E na sexta-feira, o Governo,
pela voz do ministro Pedro Nuno Santos, pediu
desculpas aos passageiros de transportes públicos.
Aquilo
a que estamos a assistir hoje é a consequência de escolhas que o Governo
fez. E que o próprio Governo agora reconhece: deu prioridade à “recuperação dos
direitos” à custa da degradação de outros direitos. Os universos podem não ser
os mesmos. Uns suportaram apenas a factura escondida de uma acelerada
recuperação dos rendimentos dos que são pagos pelo Estado. Os efeitos dessas
opções a médio prazo mereceram neste espaço vários alertas. Há medidas que têm
custos escondidos que se reflectem mais cedo ou mais tarde. O momento chegou,
de pagar a factura dessas escolhas, como em 2011 chegou o tempo de pagar os
excessos de uma década anterior.
A capacidade política de António
Costa impede que esses custos, de degradação dos serviços públicos, tenham
efeitos eleitorais. Esta foi
uma legislatura de segmentação muito racional do eleitorado. Não
se promoveu o interesse público, mas actuou-se em segmentos de mercado
eleitoral relevantes para garantir a conquista e manutenção no poder. Se
somarmos os funcionários públicos e os pensionistas – com especial relevo para
os das pensões mais elevadas –, verificamos que a prioridade à recuperação dos
rendimentos é a estratégia vencedora de eleições.
Tem um custo, claro, que neste momento é impossível de desmentir. E o que
faz um Governo politicamente inteligente? Reconhece o custo que há muito sabia
que existia, pede desculpa e garante que as próximas prioridades serão esses
problemas.
Porque
é que não se gera uma onda de revolta e irritação contra o Governo? Boa parte
das pessoas, que hoje são vítimas da confusão nos transportes na área
metropolitana de Lisboa, são as mesmas que recuperaram rendimentos ou viram o
seu horário de trabalho reduzir-se. Hoje pagam isso com a degradação dos
serviços públicos, mas já ganharam alguma coisa. Piores estão os que não
ganharam nada, mas esses não têm uma voz que se oiça, nos partidos que suportam
o Governo ou na rua. Todos ficámos pior, mas uns ficaram menos mal do que
outros.
Veja-se o caso da acentuada redução do preço dos transportes públicos. Primeiro,
é praticamente impossível criticar uma medida destas quando ela é anunciada.
Tem todos os ingredientes políticos para receber a aprovação do povo: é amiga
do ambiente e aumenta o poder de compra das famílias. Parece um almoço grátis,
uma vez que não se aumentou a oferta de transportes públicos e o custo, que se
diz a medida ter, parece despiciendo face aos seus benefícios.
Onde está a factura? A prazo
veremos se não estará no não pagamentos às empresas de transporte. No imediato,
o custo está na degradação das condições em que as pessoas viajam. Todos
pouparam dinheiro – os que já andavam de transportes públicos e os que iam de
carro. Mas agora viajam de pé ou têm de sair mais cedo de casa para chegarem a
horas ao trabalho. Ou ainda, em alguns casos mais graves como a travessia do
Tejo, nunca sabem se vão ter barco. O significativo desconto no preço dos
passes sociais está a ser pago com tempo e piores condições de transporte. Já
devíamos ter aprendido que não há almoços grátis ou, seguindo o ditado popular,
“quando a esmola é muita, o pobre deve desconfiar”.
Mas
enquanto nos transportes quem paga o preço é quem teve o benefício, há outros
casos em que não é assim. É por exemplo o caso da redução do horário
de trabalho dos funcionários públicos.
A
redução do horário de 40 para 35 horas semanais corresponde a um aumento
salarial implícito de 12,5%, financeiramente incomportável. Mas como não se paga (pelo menos em grande parte) com
dinheiro, o Governo pode ser generoso. Quem paga então esse aumento
de 12,5%? Parte está na subida das despesas com pessoal do Estado – a parcela
que custou dinheiro –, mas a maior parte é paga com o tempo de quem precisa dos
serviços públicos. Ou seja, estamos perante uma espécie de racionamento.
As filas de espera para tirar o
cartão do cidadão ou o passaporte são a face visível desses custos. Mas a mais
grave é a que não se vê: as listas de espera na saúde e a degradação dos
serviços de saúde. É aliás lamentável que as preocupações com o sector da saúde
se concentrem no tema da gestão privada versus pública, em vez de se focar na
prestação dos cuidados de saúde.
Todos
sabíamos que não havia dinheiro para dar tudo aquilo que o Governo se
comprometeu a dar — e deu – desde o início da legislatura. O Governo também
sabia que não havia esse dinheiro. A restrição financeira foi resolvida com uma
travagem no investimento público e com a degradação dos serviços
públicos. Uma escolha que estava longe de se pensar que seria feita por um
Governo dito de esquerda e suportado por partidos de esquerda.
As escolhas políticas do Governo,
estando a produzir resultados eleitorais, revelam pelo menos a preferência dos
portugueses por uma austeridade pelo racionamento.
COMENTÁRIOS:
Pérolas a porcos: Eu diria que é antes um caso de "AUSTERIDADE PELA
NACIONALIZAÇÃO", porque foi assim que tudo COMEÇOU, e CONTINUA. 21.11.2016: "O Governo passa a gestão da
Carris para a Câmara de Lisboa e entrega ao Estado a dívida histórica da
empresa, que em 2014 ascendeu a 813,2 milhões de euros" 3.6.2019: "De acordo com a Conta Geral do
Estado, divulgada no mês passado, pode dizer-se que algumas dívidas têm vindo a
cair, mas nem sempre tanto quanto seria desejável.
O Metro do Porto, por exemplo, era a segunda empresa mais endividada,
com 3 615 milhões de euros. Isto porque o primeiro lugar estava entregue à
Infraestruturas de Portugal, que, apesar de ter reduzido em 54 milhões o
endividamento, continuava com uma dívida de 8 289 milhões. Em termos globais, pode dizer-se que o ano
passado ficou marcado por um decréscimo do endividamento (-5,1%) em relação aos
valores registados em 2016. Mas, ainda assim, com uma factura a ascender a
24 290,7 milhões de euros. Os dados da
Conta Geral do Estado mostram ainda que o Estado injectou, em 2017, 2 428
milhões de euros no capital as empresas públicas. A
maior injecção foi para a Infraestruturas de Portugal (880 milhões). Seguiu-se
a CP, com 516, 4 milhões. O Metropolitano
de Lisboa recebeu 192,1 milhões.O Ministério das Finanças sublinhou esta semana
que o défice orçamental melhorou 1,1 mil milhões de euros até julho deste ano. E,
segundo o gabinete de Mário Centeno, importa salientar que se registou uma
melhoria do saldo global, explicada “por um crescimento da receita (5,3%),
superior ao aumento da despesa (2,5%)”.
A justificar este crescimento significativo da despesa estão as empresas
de transportes públicos, nomeadamente, a Infraestruturas de Portugal (+9,2% ) e
a CP (+4,9%). VEJAM BEM, O QUE SÃO AS
CONTAS DO TRAPALHÃO DO CENTENO!!!
Antonio Sousa Branco: "Todos sabíamos que
não havia dinheiro para dar tudo aquilo que o Governo se comprometeu a dar — e
deu – desde o início da legislatura". Não é verdade. Durante muito tempo, salvo raríssimas
excepções, foi alimentada a "narrativa do fim da austeridade",
apoiada por quase todos (com um peso esmagador na Comunicação Social), que
viam em António Costa o hábil, o genial, o homem que pôs fim às malfeitorias da
troika e de Passos Coelho. Agora, não chorem perante o caos que se instalou
em tudo o que depende do Estado, SNS, transportes, atrasos nas
pensões, até ao terceiro-mundismo das filas e dos meses de espera para
renovar o passaporte ou o cartão do cidadão. Temos e vamos continuar a ter,
exactamente o que merecemos.
Paulo Silva: Austeridade sem e com anestesia...: Caso Passos Coelho tivesse tido a possibilidade de realizar esta política
durante a troika, concentrar o controlo do défice nas cativações do
investimento público em vez dos rendimentos das famílias, seria linchado na praça
pública como "inimigo do
serviço público número um" pelos inimigos das privatizações. Por
alguma razão inexplicável os media
estão tomados pela esquerda. Dr. Costa, o habilidoso, foi esperto ao
perceber que os portugueses depois do tratamento a sangue frio da troika pouco
se importariam com os serviços. Pelo menos num primeiro momento. Queriam era o
seu dinheiro de bolso de volta. Uns míseros euros e ficaram satisfeitos…
(reflexo deste triste país, pode dar-se um o desconto pelos baixos salários,
mas não é só, como referido acima)… As cativações foram o
algodão anestesiante para o “ir além do défice”. Mas a anestesia não dura para sempre.
Se a conjuntura não continuar a ajudar como até aqui, Costa vai ter sérios
problemas para aliviar o regresso da dor… Nessa altura a quem pedirá ajuda?...
Ou melhor, quem irá culpar?...
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