Leio devagar estes pequenos contos de Agustina Bessa Luís, em intervalos
de outras leituras, pensando, como dantes, que apesar da sua riqueza
discursiva, (casada, todavia, por vezes, com uma simplicidade chã, além de um
extraordinário dom descodificador de comportamentos implicando saber acutilante
e divertido, psicológico e filosófico), Agustina se torna necessariamente fastidiosa,
por falta daqueles elementos airosos que nos prendem a um entrecho novelesco em
progressão de intriga – quer afectiva, quer de aventura, policial ou social no contexto
dos relacionamentos e sentimentos deles resultantes, tudo isso demonstrativo da
capacidade criativa dos respectivos autores, e os objectivos mais ou menos
críticos das suas mensagens, mais ou menos humanísticas, reveladoras de saber e
arte.
Não, nestes breves contos de Agustina, o
despojamento ficcional é evidente, pois que o objectivo é mesmo esse de,
através de uma ou duas personagens apenas, montadas no cavalete da sua criação,
mostrar a riqueza, quantas vezes sardónica, e sempre certeira e ampla de
universalidade, dos seus retratos, e simultaneamente implicar o narratário na
panorâmica das suas interpretações subjectivas, o narrador homodiegético ou
presente na acção, facilmente entrando em despique com o leitor ou narratário,
aceitando deste outras interpretações que não a sua, como vozes múltiplas de um
universo desmultiplicado e jamais definitivo na sua definição. De facto, mais
que os caracteres em si, fica-se preso à extraordinária argúcia das
interpretações desses caracteres, numa espécie de feeria discursiva
arrebatadora, pelo que implica de conhecimento universal da alma e do mundo,
fazendo-nos retomar a mesma leitura, degustando-a num deslumbramento.
Aconteceu com este conto – O BODO –
história de uma recoveira de correio, portadora de um casaco amarelo, que se
aproveita de dois convites apanhados do chão para receber um cabaz de Natal, indo
participar na bicha onde pessoas mais pobres aguardavam a sua vez, em meio de
disputas, a sua figura encasacada merecendo as injúrias raivosas de uma outra
participante, que, contudo, não levou a melhor, a defesa da recoveira reveladora
da injustiça social de que também ela era vítima.
Um conto curto, de que extrairei alguns
parágrafos, exemplificativos da interpretação que faço acima, da extraordinária
narradora, bem sardónica, na universalidade dos seus conceitos que a cada passo
demonstra, como narradora participante, embora não personagem da história, ou
apenas personagem evasiva, inominada doutros contos, em que dialoga com as
personagens, caso de “Auto do Rei Herodes”.
Vejamos como se inicia o conto “O BODO”, em
discurso directo a um narratário universal, discurso simples, todavia, mas implicando
universalidade de conceito e sentido desmistificador do preconceito social:
«Se julgam que vou contar-lhes uma história de Natal, com pinheirinhos, presépios e neve fingida, estão muito enganados. Não é isso. Nada de episódios com um menino pobre ou o facínora que regressa ao bom caminho, ou o grande artista tocado pela inspiração dos simples. É outra coisa muito diferente e aconteceu no Porto. Onde mais podia suceder este caso, grosseiro e apesar de tudo límpido e cheio duma coragem misturada com o mais delicado espírito, que não é o da “moral pública” muitas vezes, mas o da verdade? Foi no Porto, e não são precisos aqui muitos personagens; dois bastam, a não ser que alguém de vós queira também participar porque o momento lhe pareça mais próprio do que qualquer outro durante todo o ano. Podem hoje sentir mais amor os corações vazios? Podem hoje notar melhor a sua ausência nos lugares sombrios aqueles que sempre deram uma larga volta para os evitar? É possível, e eu não o quero negar. Vou só contar uma pequena história e, apenas por hoje, em honra do Salvador do mundo, eu prometo-vos que ela será breve e que terá só dois personagens…..
«……
Uma mulher que trazia vestido um casacão amarelo, novo, com lapelas de alfaiate
muito batidas, apanhou do chão dois papéis e ficou a decifrar o que eles
diziam, com essa curiosidade mole que atenua um acto demasiado
flagrante. Olhou para
a esquerda, depois para a direita, e com um sorriso vexado , meteu no bolso os
papéis; eram senhas para a distribuição de géneros dum bodo de Natal. Esta
mulher não era pobre. Vivia duma reforma da Carris e fazia recados levando o
correio de Matosinhos para a Batalha,
ofício que estava praticamente desaparecido. Essas estafetas que transportavam
as cartas numa saquinha de pano, todas as manhãs, já se resumiam a um emprego
de tolerância, e não seriam substituídas por outras. Entretanto, elas eram os
correios doutro correio e viajavam duma ponta a outra da cidade, palrando com
os guarda-freios – esta era ela própria viúva dum condutor – e trocando os
melhores cumprimentos com funcionários e domésticas, essa população do ponto e
agentes da economia privada que se deslocavam, com as suas ceiras e as suas pastas,
nos eléctricos que cheiravam a humidade.
Esta
mulher tinha um amigo a que chamava “ele”, enquanto que, para se referir ao
marido defunto, sempre dizia “o meu”. Quem a ouvia não punha jamais em dúvida a
espécie de sentimentos que se filtravam por aquelas duas palavras, e os olhos
tomavam um discreto véu, que não era benevolente nem tão pouco acusador. Sabiam
que a vida de cada um é regida por uma tríplice cadeia – a da consciência, a do
público e a das relações humanas propriamente ditas. A esta ligavam muita
importância, e não havia briga, luto ou alegria em que não estivesse esse olhar
atento que reprimia tanto a piedade fácil como a injúria demasiado activa. A
recoveira de correio, criatura notável pelo seu carácter misto de sensibilidade
e senso prático, desarmava muitas vezes os seus inimigos com a evocação daquele
a quem chamava “o meu”, e comovia o espírito fatalista dos seus juízes quando
se referia a ”ele”. Vivia assim, criando dois filhos com probidade e
reservando-se pequenos direitos que iam dar em cheio na tábua da lei, mas que,
no fundo, eram recursos que não se destinavam à história. Porque, de resto,
ninguém era mais prudente nem mais razoável; ela estava sempre pronta a comentar
com lógica impressionante os males do mundo e os seus autores. era intrometida
e belicosa, cheia de razões quase boas e que causavam, no meio dum ajuntamento,
uma disposição pronta a manifestar-se a seu favor. Era, enfim, a mulher da rua
por excelência Nessa manhã em que vestira o seu belo casaco cor de pêlo de boi,
ela encontrara as senhas para uma consoada e decidiu aproveitar-se delas. ……
(A gente pobre, humilde e desordeira da
bicha “com ar de cobiça humilde…”)
«Coitados!
Hoje é o dia grande deles…” Sorria com beatitude, tendo o cuidado de demonstrar
que para ela havia com frequência dias de fartura e que não estava ali por
necessidade, mas quase por cortesia para com os benfeitores. no fim de contas,
quem gosta de dar precisa do estímulo dumas almas reconhecidas mas não miseráveis
a ponto de parecerem insensíveis. receber uma esmola é uma arte que poucos
aperfeiçoam com a delicadeza, a graça, a sublimidade, a confiança nobre e a
languidez que é toda uma ética. A recoveira sorria, e para as outras mulheres
que, com capinhas de lã e saias espipadas, estavam como elas à espera do bodo,
tinha uma suficiência cúmplice a que não faltava dignidade.
« Uma
peixeira que passava, grande e máscula, com esse rosto vermelho dos que nas
madrugadas se agasalham com aguardente, e essas mãos hábeis e duras que
espostejam e que escorcham, parou de repente e bradou muito alto:
- De
casaco comprido! Olhem quem vem receber a ceia, olhem para esta de casaco
comprido! Ladrona, que a mim não me davam um bago de arroz se eu o pedisse! Vai
para tua casa comer com o fêmeo o que é dos pobres, ladrona!
Abria
as grandes mãos e apresentava-as nuas como prova da sua verdade; as
sobrancelhas esbranquiçadas brilhavam como faíscas que dos olhos se soltassem.
A recoveira ficou abalada, mas não por muito tempo; quis primeiro desprezar
aquele incidente, mas o sangue puxava-lhe para a batalha, e a outra não a
deixava de modo tão fácil ignorar a provocação. pôs-se a gritar então com tal
vontade que imediatamente arranjou quem a entendesse e se colocasse do seu
lado.
-
Cristo! – disse a peixeira. – Como elas defendem o osso! Aviai-vos, mulheres,
vinde para cá! Arranco-vos das goelas a campainha! De casaco comprido, não
viram?
-
E que te importa, que te importa, que te importa? Não são os casacos que te dão
o lucro? Ganho o meu pão com limpeza e mereço mais do que recebo. Apanho toda a
chuva que o céu quer despejar, e quando me queixo dizem-me: “O teu lugar há
muito que devia ter acabado; é um emprego que não se admite nos dias de hoje…”
mas nos dias de hoje come-se como nos outros… Ora, não me cegues a vista, não
me faças falar! Aposto que tens mais aguardente no bucho do que rabanadas eu
hei-de ter esta noite. ………
----Fez-se
um certo frio, agora que a luta se apagara sem ficar decidida, e a recoveira,
com as senhas do bodo na mão, ofegante e chorosa dizia ainda:
-
Se eu não fosse pobre não estava aqui… Pobres, pobres são os ratos, eles roubam
porque não sabem pedir…
Alguém
proferiu palavras que a tranquilizaram; estava agora mais humilde e enxugava
gordas lágrimas, suspirando com estremeções patéticos. Aconselharam-na a beber
água fria, ela disse que a água, de manhã, lhe fazia mal, e pôs-se a contar as
suas doenças ou as que conhecia nas suas vizinhas, com uma espécie de deleite
macabro e recusando-se a acreditar em remédios, em médicos e em curas. – “O meu”,
que sofreu muito, andou pelas mãos de todos doutores e ainda hoje era vivo se
os não ouvisse. – A sua conversa era jactanciosa e mesquinha; mas o que era
extraordinário era a mistificação que em toda ela se percebia; porque aqueles
conceitos eram aparência e, no fundo, havia um sentido de indiferença por tudo
quanto era dito, por isso é que ela atraía tanto. Um homem, que
estava ao volante do seu automóvel e que presenciara toda a escaramuça, disse
para ele próprio: “Talvez eu não tenha nada com isso, mas penso que…” Ele não
tinha nada com isto, de facto; eram apenas dois os personagens que estavam
previstos nesta história, a não ser que … sim, a não ser … Mas não. O terceiro
personagem pode estragar tudo, mesmo que apareça em honra do Salvador do mundo.»
A opinião possível de um espectador da
cena virá, pois, simbolizar as opiniões díspares que o comportamento da
recoveira merecerá do público, comprovativas do provérbio “cada cabeça sua
sentença”, a narradora abstendo-se de fornecer a sua, apenas debruçada em
sardónico humor sobre as figuras sociais que lhe servem de meio para pesquisar casos
e caracteres. Um modo artístico e sentencioso de rematar um “quadro” captado, com
essa voz possível, (tal como a de Germa,
na introdução de “A Sibila”, pressupondo uma reprodução em analepse de uma
longa história de família com Quina, como
protagonista “de raça”).
O certo é que o “espectador da cena” neste conto, servirá, sobretudo, como manobra artisticamente caprichosa de o finalizar em
suspense, como apelo a discussão sobre a atitude da personagem descrita.
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