domingo, 9 de junho de 2019

Bom domingo, pela manhã


Dois textos airosos de Salles da Fonseca, o primeiro sobre o “Maio 68”, o segundo sobre o analfabetismo de cultivo nacional durante séculos, como se não fizéssemos parte dum bloco continental onde, de longa data, se cultivaram preceitos de valorização humanista, mau grado as cruezas ambiciosas que tal valorização acarretou igualmente, em alguns países, como prova de superioridade estranhamente incompatível com esse grau de avanço filosófico e preparação académica. Quanto ao “Maio de 68”, definido facetamente, embora com precisão de bisturi, à boa maneira sorridente e franca de SF, ele demonstra que há mais França para lá dessas desordens e sabemos que sim, apesar dos coletes amarelos de hoje, fruto das democracias de um “ontem” bastante anterior ao nosso, que ainda vamos na classe infantil, na fase da carnavalada, envolvendo, é certo, laivos de anarquia comunista de empréstimo. Por via do analfabetismo arreigado, apesar das confirmações de avanço percentual.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 09.06.19
«USQUE AD NAUSEUM»
Ouço rádio no carro e é frequente deixar um programa a meio porque, entretanto, chego ao destino. Só me aguento um pouco desde que seja alguma música de que esteja a gostar muito e queira ouvir até ao fim. Mas, sendo conversa, corto-lhes o pio.
Então, nestes últimos dias, a conversa é sempre a mesma: Maio de 68 “usque ad nauseum” que é como quem diz até à náusea. E como o tema já é nauseante desde há muito, para além do ad, ele já é mesmo”ex nauseum” que em linguagem comum significa”desde a náusea”.
Creio mesmo que a maior parte das intelectualidades que falam do Maio de 68 ainda não eram gente em Maio de 1968 mas falam com muita sabedoria porque julgam que quem os ouve sabe ainda menos que eles. Enganam-se. Muitos de nós já éramos gente naquela época e vivemos tudo com alguma intensidade.
Então, o que foi o Maio de 68?
Tenho várias hipóteses de resposta…
Uma carnavalada;
Uma tentativa de revolução anarquista;
Uma tentativa de golpe de Estado comunista;
Uma revolta contra De Gaule…
… mas fico-me por uma mistura delas todas pois admito que de tudo por lá havia desde a carnavalada até à vontade de se verem livres da preponderância autoritária do «velho».
A sociedade francesa estava já muito igualitária, não admitia que alguém pudesse preponderar; o individualismo não queria orientações de classe; o marxismo queria impor uma orientação da sua classe, a proletária; o anarquismo não admitia peias à liberdade; os carnavalescos não quiseram perder a oportunidade.
E a pergunta permanece: - O que foi o Maior de 68?
A minha resposta é: - Um grande fiasco de revolta anti burguesa em que, felizmente para os burgueses, os seus adversários não se entenderam porque tinham (e têm) pressupostos incompatíveis.
Isto, o que penso de Maio de 68 tanto porque o vivi à distância geográfica duma Península Ibérica como à distância política de quem vivia num regime autocrático «proteccionista contra novidades». Mas a informação circulava e uma tia minha foi para Paris em Maio de 68 para ser operada ao coração. Foi operada, tudo correu bem, regressou a Portugal perfeitamente «recauchutada» e perguntou se era verdade que durante a estadia dela em Paris tinha acontecido alguma sarrafusca política. Ao que alguém lhe respondeu que tinha havido uma zanga entre o Sartre e o Aron. E ela respondeu que a Simone era danada para pôr o marido à zaragata.
Pois é, afinal houve mais França para além do «Maio de 68», esse tema que fede usque ad nauseum.
Maio de 2019
Henrique Salles da Fonseca
Francisco G. de Amorim: 09.06.2019: Muito bom. Como sempre.
Henrique Salles da Fonseca: 09.06.2019: E faltou-te contar qual foi o resultado eleitoral seguinte ao Maio/68. Carlos Traguelho

Henrique Salles da Fonseca, 09.06.2019: Claríssima vitória de Aron; estrondosa derrota de Sartre.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 08.06.19
Tanto quanto a minha actual ambliopia me permitiu constatar, hoje refiro-me a um homem branco, português, na casa dos 50 ou, no máximo, na dos 60 anos de idade.
De pé ao balcão duma pastelaria na zona das Janelas Verdes, em Lisboa, o Fulano conversava com outro cliente sobre qualquer assunto que não procurei entender mas que, a certa ocasião, versou a leitura de mensagens nos telemóveis. E o branco disse para o seu interlocutor algo como…
– Não tenho telemóvel, não sei ler
… e ao longo da conversa insistiu várias vezes na afirmação de que não sabia ler.
Apesar da lógica algo distorcida de não ter telemóvel por não saber ler, admiti que o Fulano não conhecesse também a numeração e, portanto, ser completamente vazio da mais elementar instrução.
Mas conferiu (ou fingiu conferir) o troco que lhe deram na transacção que fizera e com isso só serviu para me espantar ainda mais naquilo que hoje me parece um absurdo, o analfabetismo adulto em pessoas aparentemente não deficientes.
Sobre esta questão, lembro-me duma conversa que um professor de liceu teve connosco, os seus alunos em turma de filosofia, sobre a questão do analfabetismo em que ele nos sugeriu que tentássemos abstrair de tudo o que estivesse escrito e nos pudéssemos aproximar do mundo do analfabeto. Dizia ele que era quase o mesmo que abstrair de tudo o que nos rodeia, do ser, pois já não somos capazes de imaginar o mundo sem a comunicação escrita.
E lembrei-me de mais…
… de que a actividade mental, nomeadamente pela prática da leitura, estimula os neurónios e respectivas sinapses, desenvolve o cérebro; “a contrario senso, a inactividade mental retrai a capacidade cerebral; povos mentalmente desenvolvidos apresentam QI’s médios mais elevados que povos com elevadas taxas de analfabetismo.
… em 1910, chegámos à República com uma taxa de analfabetismo adulto da ordem dos 90%; em 1974 essa taxa ainda era de 25%; no Recenseamento Geral da População de 2011, ainda era de 5%.
Sempre que viajo por países com letreiros em escrita diferente do alfabeto latino me lembro desta questão mas, na verdade, sempre vai havendo um ou outro letreiro para turistas e lá me vou orientando. Não sou capaz de me imaginar analfabeto, o analfabetismo é um flagelo e, quando o constato, um espanto.
Grande inércia, esta que ainda hoje com tanto analfabeto adulto temos que vencer em Portugal para conseguirmos avançar por este séc. XXI adentro…
Junho de 2019
Henrique Salles da Fonseca


Nenhum comentário: