Dois textos airosos de Salles da
Fonseca, o primeiro sobre o “Maio 68”, o segundo sobre o analfabetismo de cultivo
nacional durante séculos, como se não fizéssemos parte dum bloco continental
onde, de longa data, se cultivaram preceitos de valorização humanista, mau
grado as cruezas ambiciosas que tal valorização acarretou igualmente, em alguns países, como prova
de superioridade estranhamente incompatível com esse grau de avanço filosófico e preparação
académica. Quanto ao “Maio de 68”, definido facetamente, embora com precisão
de bisturi, à boa maneira sorridente e franca de SF, ele
demonstra que há mais França para lá dessas desordens e sabemos que sim, apesar
dos coletes amarelos de hoje, fruto
das democracias de um “ontem” bastante anterior ao nosso, que ainda vamos na
classe infantil, na fase da carnavalada, envolvendo, é certo, laivos de
anarquia comunista de empréstimo. Por via do analfabetismo arreigado, apesar
das confirmações de avanço percentual.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 09.06.19
«USQUE
AD NAUSEUM»
Ouço
rádio no carro e é frequente deixar um programa a meio porque, entretanto,
chego ao destino. Só me aguento um pouco desde que seja alguma música de que
esteja a gostar muito e queira ouvir até ao fim. Mas, sendo conversa,
corto-lhes o pio.
Então,
nestes últimos dias, a conversa é sempre a mesma: Maio de 68 “usque ad nauseum” que é como quem diz até
à náusea. E como o tema já é nauseante desde há muito, para além do ad, ele já é mesmo”ex nauseum” que em linguagem comum
significa”desde a náusea”.
Creio
mesmo que a maior parte das intelectualidades que falam do Maio de 68 ainda não
eram gente em Maio de 1968 mas falam com muita sabedoria porque julgam que quem
os ouve sabe ainda menos que eles. Enganam-se. Muitos de nós já éramos gente
naquela época e vivemos tudo com alguma intensidade.
Então,
o que foi o Maio de 68?
Tenho
várias hipóteses de resposta…
Uma carnavalada;
Uma tentativa de revolução anarquista;
Uma tentativa de golpe de Estado comunista;
Uma revolta contra De Gaule…
… mas fico-me por uma mistura delas todas pois
admito que de tudo por lá havia desde a carnavalada até à vontade de se verem
livres da preponderância autoritária do «velho».
A sociedade francesa estava já
muito igualitária, não admitia que alguém pudesse preponderar; o individualismo
não queria orientações de classe; o marxismo queria impor uma orientação da sua
classe, a proletária; o anarquismo não admitia peias à liberdade; os
carnavalescos não quiseram perder a oportunidade.
E
a pergunta permanece: - O que foi o
Maior de 68?
A
minha resposta é: - Um grande fiasco de revolta anti burguesa em que,
felizmente para os burgueses, os seus adversários não se entenderam porque tinham
(e têm) pressupostos incompatíveis.
Isto, o que penso de Maio de 68
tanto porque o vivi à distância geográfica duma Península Ibérica como à
distância política de quem vivia num regime autocrático «proteccionista contra
novidades». Mas a informação circulava e uma tia minha foi para Paris em Maio
de 68 para ser operada ao coração. Foi operada, tudo correu bem, regressou a
Portugal perfeitamente «recauchutada» e perguntou se era verdade que durante a
estadia dela em Paris tinha acontecido alguma sarrafusca política. Ao que alguém lhe respondeu que tinha havido uma zanga entre o
Sartre e o Aron. E ela respondeu que a Simone era danada para pôr o marido à
zaragata.
Pois é, afinal houve mais França para além do «Maio de 68», esse
tema que fede usque ad nauseum.
Maio de 2019
Henrique Salles da Fonseca
Francisco G. de
Amorim: 09.06.2019: Muito bom.
Como sempre.
Henrique Salles da Fonseca: 09.06.2019: E faltou-te contar qual foi o resultado eleitoral
seguinte ao Maio/68. Carlos Traguelho
Henrique Salles da
Fonseca, 09.06.2019: Claríssima
vitória de Aron; estrondosa derrota de Sartre.
2 - GRANDE
INÉRCIA
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 08.06.19
Tanto quanto a minha actual
ambliopia me permitiu constatar, hoje refiro-me a um homem branco, português,
na casa dos 50 ou, no máximo, na dos 60 anos de idade.
De
pé ao balcão duma pastelaria na zona das Janelas Verdes, em Lisboa, o Fulano
conversava com outro cliente sobre qualquer assunto que não procurei entender
mas que, a certa ocasião, versou a leitura de mensagens nos telemóveis. E o
branco disse para o seu interlocutor algo como…
– Não tenho telemóvel, não sei ler
…
e ao longo da conversa insistiu várias vezes na afirmação de que não sabia ler.
Apesar
da lógica algo distorcida de não ter telemóvel por não saber ler, admiti que o
Fulano não conhecesse também a numeração e, portanto, ser completamente
vazio da mais elementar instrução.
Mas
conferiu (ou fingiu conferir) o troco que lhe deram na transacção que fizera e
com isso só serviu para me espantar ainda mais naquilo que hoje me parece um
absurdo, o analfabetismo adulto em pessoas aparentemente não deficientes.
Sobre
esta questão, lembro-me duma conversa que um professor de liceu teve connosco,
os seus alunos em turma de filosofia, sobre a questão do analfabetismo em que
ele nos sugeriu que tentássemos abstrair de tudo o que estivesse escrito e nos
pudéssemos aproximar do mundo do analfabeto. Dizia ele que era quase o mesmo
que abstrair de tudo o que nos rodeia, do ser, pois já não somos capazes de
imaginar o mundo sem a comunicação escrita.
E lembrei-me de mais…
…
de que a actividade mental, nomeadamente pela prática da leitura, estimula os
neurónios e respectivas sinapses, desenvolve o cérebro; “a contrario senso”, a
inactividade mental retrai a capacidade cerebral; povos mentalmente
desenvolvidos apresentam QI’s médios mais elevados que povos com elevadas taxas
de analfabetismo.
… em 1910, chegámos à República com uma taxa de analfabetismo adulto da
ordem dos 90%; em 1974 essa taxa ainda era de 25%; no Recenseamento Geral da
População de 2011, ainda era de 5%.
Sempre
que viajo por países com letreiros em escrita diferente do alfabeto latino me
lembro desta questão mas, na
verdade, sempre vai havendo um ou outro letreiro para turistas e lá me vou
orientando. Não sou capaz de me imaginar analfabeto, o analfabetismo é um
flagelo e, quando o constato, um espanto.
Grande inércia, esta que ainda hoje com tanto analfabeto adulto temos
que vencer em Portugal para conseguirmos avançar por este séc. XXI adentro…
Junho de 2019
Henrique Salles da Fonseca
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