segunda-feira, 3 de junho de 2019

Retratos de um país: sem humor e com humor


Da excelente revista E do Expresso. O primeiro, magistral, de Clara Ferreira Alves, no seu cômputo de um país descomandado, que termina, todavia, com entusiástica referência a Ronaldo – “Ronaldos é o que temos menos” – como herói nacional a pedir imitadores. A mim, a afirmação de encarecimento parece pura blague, feita para provar admiração por qualquer coisa lucrativa de foro universal, de facto, mas exemplo de alguém de moralidade igualmente duvidosa, quer em relação aos seus próprios filhos que um dia, talvez, estranharão a perfídia de lhes ter sido sonegada uma mãe, quer a outras acusações que pendem sobre a sua honorabilidade, pese embora a excelência de atributos de trabalho e realização pessoal efectiva, que lhe deram dinheiro e glória. Quanto à crónica humorística do Comendador Marques de Correia, como sempre um antídoto luminoso contra os pesadelos de um país mergulhado na sombra irremediável do seu resvalar sem retorno.
OPINIÃO:  Berardos e Ronaldos
A sociedade está cheia de Berardos, de seres que existem porque os autorizamos com o nosso sarcasmo, a nossa indiferença e a nossa cumplicidade
CLARA FERREIRA ALVES               E (A REVISTA DO EXPRESSO)
Podemos rir-nos. Ou indignar-nos. Estas são as duas respostas normais ao fenómeno Berardo. Respondemos com um gracejo, uma anedota típica da urbe, ou com um esbracejo de raiva. E queremos matar o Berardo, e os políticos, e os amigos deles. E somos de direita porque odiamos a esquerda e somos de esquerda porque odiamos a direita. E afundamo-nos no desespero passivo ou na falta de esperança que fazem de Portugal um país com elevado nível de depressão diagnosticada e um consumidor de sedativos e antidepressivos. Um país sem produtividade, entregue a intervalos de feriado e fim de semana. Um país onde a consciência de classe ou de comunidade se dissolve no shopping, no futebol e no consumo maciço de televisão, que está ligada todo o dia nos cafés e restaurantes e dentro das cabeças. Um país onde o ressentimento causa a drenagem da ambição.
Portugal é um país desigual, miserável nos salários e não criador de riqueza suficiente para gozar independência ou sustentabilidade de sistemas sociais generosos e caros. Portugal é um país onde só existe um tema, o Estado e a intervenção do Estado. Quando a existência depende totalmente de instituiçõ públicas, alguma coisa está errada. A dependência é o resultado da falta de controlo que os portugueses têm sobre a sua vida e o seu trabalho. Uma amostra suficiente do mundo laboral em Portugal revelará a insatisfação e a mediocridade, sobretudo nas legiões de funcionários públicos, uma burocracia gerada para nos administrar e onde reina um descontentamento que nenhuma verba ou remuneração pode aplacar. Daí a falsa questão do descongelamento do tempo dos professores e a crise que evidenciou a ausência de inteligência política.
A pergunta que as pessoas, os eleitores, fazem, é: vale a pena votar “nestes bandidos que são todos iguais”? Vale. O que não vale é votar sem exigir responsabilização e sanção. Vale se o sistema puder ser higienizado, se casos do vomitório como o do comendador não se repetirem com tanta frequência na sociedade portuguesa. Eça descreveu estas personagens no século XIX e os comendadores continuam por aí.
O caso Berardo não é isolado, a sociedade está cheia de Berardos em pequena e grande escala, de seres que existem porque os autorizamos com o nosso sarcasmo, a nossa indiferença, a nossa cumplicidade. Mais a reverência pelo dinheiro e pelo estrangeiro. Durante anos Berardo foi dado como um herói, um capitalista que investia no melhoramento de Portugal, depois de se ter feito a si mesmo “lá fora”,  o caminho empreendedor da pobreza à riqueza. Uma análise mais estudada de Berardo, e da biografia ou dos processos, aplicável às camuflagens fáceis de detectar, teria revelado a deficiência da construção que os portugueses eram ensinados a venerar. Duas vezes condecorado por Presidentes, Ramalho Eanes e Jorge Sampaio, mostram-nos a que ponto a sociedade portuguesa pratica a autoilusão e o compromisso.
A lupa não deve ser dirigida para a boçal figura de Berardo, tão obviamente encomendada por beneficiados e beneméritos, mas para a figura prototípica do advogado que se sentou ao lado dele durante o interrogatório no Parlamento. Os protótipos vêm de uma “boa família”, e as boas famílias mandam, e exercem uma advocacia plena. Quer dizer, os advogados têm como clientes a gente importante do capitalismo pátrio e os capitães da indústria e por sua vez esta gente importante coloca os advogados nos cargos de administração de bancos e empresas que lhe sejam úteis. Assim saltitam da Caixa Geral de Depósitos para o Banco Comercial Português, saltitam de empresa em empresa e de banco em banco e vão criando uma teia de poderes e influências que nenhum poder político abalará. Não interessa que haja conflito de interesses em Portugal, os advogados tratarão disso num almoço bem regado. O mesmo almoço onde pactuarão com os políticos que precisam deles para fazer circular financiamentos ou favores de mútua protecção e satisfação.
Este o sistema invisível que manda em Portugal, uma elite nascida na democracia e constituída por uns e outros, uma elite moralmente na bancarrota, e que trafica por hábito e atavismo, pulando daqui para ali, da Assembleia da República para um ministério, de um escritório de advogados para um ministério, de um ministério para uma empresa, de um banco para outro banco, de uma presidência para um conselho de administração. Nos interstícios, eles aceitam ser “vogais”, para manter o acesso à informação privilegiada. De caminho, ganham muito dinheiro. A política em Portugal não remunera, o que remunera é o poder que a política confere e que garante uma vida confortável quando a política cessa. O que remunera é o acesso e a agenda. A intimidade com o topo da pirâmide do Estado. Os portugueses sabem que assim é, e que a mobilidade social em Portugal, ou a meritocracia, são nichos para uma pequena parte do talento. Os que não emigrarem podem tentar a sorte, mas o talento com uma educação sólida nacional ou internacional emigra. Ou desiste e integra o sistema.
O que faz andar o sistema são os Berardos e o dinheiro e os amigos do partido que vão coleccionando ao longo da vida. A limpeza do sistema nunca é tentada porque faria cair o sistema. E, provavelmente, o sistema democrático, tal a contaminação das profissões e academias por esta linha de ascensão pela sombra. Não temos bons exemplos de cima para baixo ou de baixo para cima, desde o “consultor de comunicação” do PSD que ganhava a vida nas fake news até aos cargos funéreos das famílias socialistas, incluindo os da “animação nos cemitérios”. Berardos é o que mais temos. Ronaldos é o que temos menos.
II – CARTAS ABERTAS  (E – 18/5/19)
COMENDADOR MARQUES CORREIA
Vamos pôr a dívida de Portugal onde Berardo escondeu a dele e depois rimo-nos à bruta
Convocado por Mário Centeno, pelo BDP, pelo IGCP, pela UTAO, etc para resolver a dívida pública mostrei a solução
Num dia solarengo deste maio florido, em que os ternos pombos arrulham, geme a rola inocentinha, canta o cuco e chega o gaio, os maiores gestores da coisa pública, que em Portugal é a dívida, uma vez que por estranho que pareça, a dívida é maior do que tudo o que produzimos, pediram-me conselho.  Chilreando como um passarinho o Mário (Centeno) disse-me que estava preocupado com o ano de 2027 ou de 2028 porque, a bem dizer, nesse ano, acho que toda a dívida chutada para a frente tem de ser paga, ou então são os juros que têm de ser pagos, ou então outra coisa qualquer que os professores de Economia sabem explicar. Eu respondi a Centeno (Mário) que ainda me lembrava do Keynes ser um inconsciente que afirmava”a longo prazo estamos todos mortos”. Na verdade ele está morto, mas eu não estou e, em 2027 ou 2028 vai acontecer a mesma coisa: há-de haver algum português vivo (incluindo eu e o Mário) para levar com uma certa irresponsabilidade e inconsequência das contas públicas. Por isso tratei de gizar um plano que nos pusesse a salvo dessa eventualidade.
Como podia desenvolver-se tal plano? Havia algumas hipóteses.
1-- Até lá, pagar a dívida, fazendo sacrifícios brutais, como despedir nove dos 11 motoristas do gabinete do primeiro ministro; reduzir o salário dos professores; acabar com os enfermeiros do Estado; destruir o SNS e a escola pública e permitir que os fundos europeus não fossem gastos em projectos inúteis. Além disso seria preciso mandar prender o PCP e o Bloco, mandar calar a Assunção Cristas e Rui Rio e nomear embaixador em Mogadíscio João Galamba e embaixadora em Tuvalu Isabel Moreira. Seria ainda necessário obrigar Berardo, Salgado, Vasconcelos, Oliveira e outros a pagar as dívidas, expropriar um L ao Vasconcellos, roubar outro L aos Mellos, roubar os hospitais dos Melos, fechar os CTT em todas as ruas com menos de 100 mil habitantes e vender o edifício da CGD ao Cirque du Soleil. Mesmo assim, ainda faltariam umas centenas de milhares de euros que se conseguiriam pela nacionalização de Bruno Fernandes e João Félix e pelo pagamento integral das dívidas dos clubes e cobrança de impostos no offshore da Madeira. Era a todos os títulos um passo arriscado e quase todos o recusaram.
2- A segunda hipótese seria fazer uma estátua a Catarina Martins em ouro maciço e dizer “lá aos senhores da Europa”que nós aqui, de um continente ao qual não demos ainda nome, não pagamos nem um tusto. A Professora Doutora, Engenheira, Arquitecta Mariana Mortágua seria enviada a Bruxelas para expor a sua complexa tese que se resume na célebre máxima: “se querem dinheiro não podem ter vergonha de o ir buscar a quem o tem”, ou seja, ao Luxemburgo, à Alemanha, à Holanda, onde calhar, mas não contem connosco porque vamos deixar esta choldra e não respondemos às agências de rating nem a ninguém, viva Cuba! Viva Nicolás Maduro! A tese foi considerada utópica e inexequível por aqueles burgueses tipo Centeno e compinchas e até pelo Dr. Costa que está manifestamente a virar à direita depois de ter reparado que havia ali um buraco onde ninguém se entendia.
3 – A terceira hipótese, toda do meu bestunto, foi imitar Joe Berardo. Portugal cria uma holding, que tem uma holding, que tem uma holding que tem bens dos quais Portugal é beneficiário por usufruto. Quem deve? Qual das holdings? Uma coisa é certa, Portugal não é, uma vez que é apenas um miserável usufrutuário (talvez possamos ter o Terreiro do Paço, para disfarçar). Quanto às holdings, elas também não têm nada, uma vez que os seus bens estão nas mãos de um usufrutuário, ou seja, outrem que não as holdings.
Assim, Portugal fica sem dever um tostão enquanto país, e quando chegar a troika ou outra coisa qualquer para nos cobrar, sentamo-nos com eles e rimo-nos à bruta.

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