Da excelente revista E do Expresso. O primeiro, magistral, de Clara Ferreira Alves, no seu
cômputo de um país descomandado, que termina, todavia, com entusiástica
referência a Ronaldo – “Ronaldos é o que
temos menos” – como herói nacional a pedir imitadores. A mim, a afirmação
de encarecimento parece pura blague, feita para provar admiração por qualquer
coisa lucrativa de foro universal, de facto, mas exemplo de alguém de
moralidade igualmente duvidosa, quer em relação aos seus próprios filhos que um
dia, talvez, estranharão a perfídia de lhes ter sido sonegada uma mãe, quer a
outras acusações que pendem sobre a sua honorabilidade, pese embora a
excelência de atributos de trabalho e realização pessoal efectiva, que lhe
deram dinheiro e glória. Quanto à crónica humorística do Comendador Marques de Correia, como
sempre um antídoto luminoso contra os pesadelos de um país mergulhado na sombra
irremediável do seu resvalar sem retorno.
OPINIÃO: Berardos e Ronaldos
A sociedade está cheia de Berardos, de
seres que existem porque os autorizamos com o nosso sarcasmo, a nossa
indiferença e a nossa cumplicidade
Podemos
rir-nos. Ou indignar-nos. Estas são as duas respostas normais ao fenómeno
Berardo. Respondemos com um gracejo, uma anedota típica da urbe, ou com um
esbracejo de raiva. E queremos matar o Berardo, e os políticos, e os amigos
deles. E somos de direita porque odiamos a esquerda e somos de esquerda porque
odiamos a direita. E afundamo-nos no desespero passivo ou na falta de esperança
que fazem de Portugal um país com elevado nível de depressão diagnosticada e um
consumidor de sedativos e antidepressivos. Um país sem produtividade, entregue
a intervalos de feriado e fim de semana. Um país onde a consciência de classe
ou de comunidade se dissolve no shopping, no futebol e no consumo maciço de televisão,
que está ligada todo o dia nos cafés e restaurantes e dentro das cabeças. Um
país onde o ressentimento causa a drenagem da ambição.
Portugal
é um país desigual, miserável nos salários e não criador de riqueza suficiente
para gozar independência ou sustentabilidade de sistemas sociais generosos e
caros. Portugal é um país onde só existe um tema, o Estado e a intervenção do Estado.
Quando a existência depende totalmente de instituiçõ públicas, alguma coisa
está errada. A dependência é o resultado da falta de controlo que os
portugueses têm sobre a sua vida e o seu trabalho. Uma amostra suficiente do
mundo laboral em Portugal revelará a insatisfação e a mediocridade, sobretudo
nas legiões de funcionários públicos, uma burocracia gerada para nos
administrar e onde reina um descontentamento que nenhuma verba ou remuneração
pode aplacar. Daí a falsa questão do descongelamento do tempo dos professores e
a crise que evidenciou a ausência de inteligência política.
A pergunta
que as pessoas, os eleitores, fazem, é: vale a pena votar “nestes bandidos que
são todos iguais”? Vale. O que não vale é votar sem exigir responsabilização e
sanção. Vale se o sistema puder ser higienizado, se casos do vomitório como o
do comendador não se repetirem com tanta frequência na sociedade portuguesa. Eça
descreveu estas personagens no século XIX e os comendadores continuam por aí.
O caso
Berardo não é isolado, a sociedade está cheia de Berardos em pequena e grande
escala, de seres que existem porque os autorizamos com o nosso sarcasmo, a
nossa indiferença, a nossa cumplicidade. Mais a reverência pelo dinheiro e pelo
estrangeiro. Durante anos Berardo foi dado como um herói, um capitalista que
investia no melhoramento de Portugal, depois de se ter feito a si mesmo “lá
fora”, o caminho empreendedor da pobreza
à riqueza. Uma análise mais estudada de Berardo, e da biografia ou dos
processos, aplicável às camuflagens fáceis de detectar, teria revelado a
deficiência da construção que os portugueses eram ensinados a venerar. Duas vezes
condecorado por Presidentes, Ramalho Eanes e Jorge Sampaio, mostram-nos a que
ponto a sociedade portuguesa pratica a autoilusão e o compromisso.
A
lupa não deve ser dirigida para a boçal figura de Berardo, tão obviamente
encomendada por beneficiados e beneméritos, mas para a figura prototípica do
advogado que se sentou ao lado dele durante o interrogatório no Parlamento. Os
protótipos vêm de uma “boa família”, e as boas famílias mandam, e exercem uma
advocacia plena. Quer dizer, os advogados têm como clientes a gente importante
do capitalismo pátrio e os capitães da indústria e por sua vez esta gente
importante coloca os advogados nos cargos de administração de bancos e empresas
que lhe sejam úteis. Assim saltitam da Caixa Geral de Depósitos para o Banco
Comercial Português, saltitam de empresa em empresa e de banco em banco e vão
criando uma teia de poderes e influências que nenhum poder político abalará. Não
interessa que haja conflito de interesses em Portugal, os advogados tratarão
disso num almoço bem regado. O mesmo almoço onde pactuarão com os políticos que
precisam deles para fazer circular financiamentos ou favores de mútua protecção
e satisfação.
Este
o sistema invisível que manda em Portugal, uma elite nascida na democracia e
constituída por uns e outros, uma elite moralmente na bancarrota, e que trafica
por hábito e atavismo, pulando daqui para ali, da Assembleia da República para
um ministério, de um escritório de advogados para um ministério, de um
ministério para uma empresa, de um banco para outro banco, de uma presidência
para um conselho de administração. Nos interstícios, eles aceitam ser “vogais”,
para manter o acesso à informação privilegiada. De caminho, ganham muito
dinheiro. A política em Portugal não remunera, o que remunera é o poder que a
política confere e que garante uma vida confortável quando a política cessa. O que
remunera é o acesso e a agenda. A intimidade com o topo da pirâmide do Estado. Os
portugueses sabem que assim é, e que a mobilidade social em Portugal, ou a
meritocracia, são nichos para uma pequena parte do talento. Os que não
emigrarem podem tentar a sorte, mas o talento com uma educação sólida nacional
ou internacional emigra. Ou desiste e integra o sistema.
O
que faz andar o sistema são os Berardos e o dinheiro e os amigos do partido que
vão coleccionando ao longo da vida. A limpeza do sistema nunca é tentada porque
faria cair o sistema. E, provavelmente, o sistema democrático, tal a
contaminação das profissões e academias por esta linha de ascensão pela sombra.
Não temos bons exemplos de cima para baixo ou de baixo para cima, desde o “consultor
de comunicação” do PSD que ganhava a vida nas fake news até aos cargos funéreos das famílias
socialistas, incluindo os da “animação nos cemitérios”. Berardos é o que mais
temos. Ronaldos é o que temos menos.
II – CARTAS ABERTAS (E –
18/5/19)
COMENDADOR MARQUES CORREIA
Vamos pôr a dívida de Portugal
onde Berardo escondeu a dele e depois rimo-nos à bruta
Convocado por Mário Centeno, pelo
BDP, pelo IGCP, pela UTAO, etc para resolver a dívida pública mostrei a solução
Num
dia solarengo deste maio florido, em que os ternos pombos arrulham, geme a rola
inocentinha, canta o cuco e chega o gaio, os maiores gestores da coisa pública,
que em Portugal é a dívida, uma vez que por estranho que pareça, a dívida é
maior do que tudo o que produzimos, pediram-me conselho. Chilreando como um passarinho o Mário
(Centeno) disse-me que estava preocupado com o ano de 2027 ou de 2028 porque, a
bem dizer, nesse ano, acho que toda a dívida chutada para a frente tem de ser
paga, ou então são os juros que têm de ser pagos, ou então outra coisa qualquer
que os professores de Economia sabem explicar. Eu respondi a Centeno (Mário)
que ainda me lembrava do Keynes ser um inconsciente que afirmava”a longo prazo
estamos todos mortos”. Na verdade ele está morto, mas eu não estou e, em 2027
ou 2028 vai acontecer a mesma coisa: há-de haver algum português vivo
(incluindo eu e o Mário) para levar com uma certa irresponsabilidade e
inconsequência das contas públicas. Por isso tratei de gizar um plano que nos
pusesse a salvo dessa eventualidade.
Como
podia desenvolver-se tal plano? Havia algumas hipóteses.
1--
Até
lá, pagar a dívida, fazendo sacrifícios brutais, como despedir nove dos 11
motoristas do gabinete do primeiro ministro; reduzir o salário dos professores;
acabar com os enfermeiros do Estado; destruir o SNS e a escola pública e
permitir que os fundos europeus não fossem gastos em projectos inúteis. Além disso
seria preciso mandar prender o PCP e o Bloco, mandar calar a Assunção Cristas e
Rui Rio e nomear embaixador em Mogadíscio João Galamba e embaixadora em Tuvalu
Isabel Moreira. Seria ainda necessário obrigar Berardo, Salgado, Vasconcelos,
Oliveira e outros a pagar as dívidas, expropriar um L ao Vasconcellos, roubar
outro L aos Mellos, roubar os hospitais dos Melos, fechar os CTT em todas as
ruas com menos de 100 mil habitantes e vender o edifício da CGD ao Cirque du
Soleil. Mesmo assim, ainda faltariam umas centenas de milhares de euros que se
conseguiriam pela nacionalização de Bruno Fernandes e João Félix e pelo
pagamento integral das dívidas dos clubes e cobrança de impostos no offshore da
Madeira. Era a todos os títulos um passo arriscado e quase todos o recusaram.
2- A segunda hipótese seria fazer uma estátua a Catarina Martins em ouro
maciço e dizer “lá aos senhores da Europa”que nós aqui, de um continente ao qual
não demos ainda nome, não pagamos nem um tusto. A Professora Doutora,
Engenheira, Arquitecta Mariana Mortágua seria enviada a Bruxelas para expor a
sua complexa tese que se resume na célebre máxima: “se querem dinheiro não
podem ter vergonha de o ir buscar a quem o tem”, ou seja, ao Luxemburgo, à
Alemanha, à Holanda, onde calhar, mas não contem connosco porque vamos deixar
esta choldra e não respondemos às agências de rating nem a ninguém, viva Cuba! Viva Nicolás Maduro! A tese foi considerada
utópica e inexequível por aqueles burgueses tipo Centeno e compinchas e até
pelo Dr. Costa que está manifestamente a virar à direita depois de ter reparado
que havia ali um buraco onde ninguém se entendia.
3 – A terceira
hipótese, toda do meu bestunto, foi imitar Joe Berardo. Portugal cria uma holding, que tem uma holding, que tem uma holding que tem bens dos quais Portugal é beneficiário por usufruto. Quem deve?
Qual das holdings? Uma coisa é certa,
Portugal não é, uma vez que é apenas um miserável usufrutuário (talvez possamos
ter o Terreiro do Paço, para disfarçar). Quanto às holdings, elas também não têm nada, uma vez que os
seus bens estão nas mãos de um usufrutuário, ou seja, outrem que não as holdings.
Assim,
Portugal fica sem dever um tostão enquanto país, e quando chegar a troika ou outra coisa qualquer para nos cobrar,
sentamo-nos com eles e rimo-nos à bruta.
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