terça-feira, 18 de junho de 2019

É preciso também pensar nas consequências



As “causas”, os “altruísmos” também, acompanhados de muita balbúrdia interventiva… Isso eleva espiritualmente os homens, trazendo-os para a ribalta da realização e da fama. Não, vivíamos à margem dessas especulações, nós os cumpridores das regras, condenando as injustiças, mas sem ousar interferir. Líamos livros que nos ilustravam sobre essas injustiças, a par de outros mais libertos desses intentos políticos, dávamos o nosso melhor tentando cumprir, dentro das regras impostas e dos ditames da nossa consciência, é claro. Admirávamos, contudo, esses jovens que liam os livros proibidos e que até passavam por esses vexames (gloriosos) que uma polícia política por vezes lhes proporcionava, heróis, para a nossa modéstia cumpridora. Uma revolução “salvadora” – ou falaciosa - resumiu tudo isso, as causas generosas e os intentos egoístas, escondidos por trás daquelas. Tudo veio à baila, dessas tais “injustiças sociais” causadas pelas prepotências dos convencionalismos mesquinhos de antanho. Pacheco Pereira as indica, as tais causas da sua nostalgia, desde os feminismos e homossexualidades aos racismos, colonialismos e outras sordidezes das malfeitorias humanas, generalizadas a quaisquer que não seguissem esses novos credos de “benfeitorias” estripadoras do Mal. Mas o que assim levedara, na amassadeira tapada com pano branco de linho (masseira se chamava na velha casa dos avós), em pão se transformou, ao que parece, na nova sociedade democrática, pão que se distribuiu igualmente pelos que se empenharam em amassá-lo. Acabadas as causas, pois, segundo Pacheco Pereira que não as encontra mais nas mentes juvenis de agora, que já, de resto, delas usufruem livremente, sem agonias nem pejos, resta apenas a nostalgia. E por vezes a tentativa de retomar valores passados, em distorções democráticas inaceitáveis. Enfim, mais uma boa análise de PP, seguida de comentários dos seus admiradores, nem todos nostálgicos e até mais conscienciosos, me parece.

A nostalgia das causas
Nos dias de hoje, e nos discursos do 10 de Junho, assistiu-se ao retorno ideológico da orfandade das causas.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 15 de Junho de 2019
Há uma doença que, de vez em quando, assalta a nossa democracia: a nostalgia das causas. Em particular, quando essa nostalgia é enunciada como desejo político, e quando essas causas representam uma distorção democrática. Num país que teve uma ditadura de 48 anos e um PREC de dois ou três, em que existiu uma censura total durante mais do que uma geração, as causas tendem a ser um remake, ou do pensamento orgânico ou da ditadura ou do PREC. Elas associam-se também ao discurso sobre a identidade nacional, quer visto negativamente, quer na ideia expressa na pergunta “que país queremos”? Se passarmos dos truísmos, - na verdade toda a gente sabe que país queremos, - entramos num terreno muito pantanoso e profundamente iliberal.
Cito dois exemplos, porque percebemos melhor do que estou a falar juntando nostalgias à esquerda e à direita que são espelhares. A nostalgia do PREC ou, se se quiser, do “25 de Abril” como programa político é fácil de enunciar: “ainda não se cumpriu Abril”. A ideia de que havia um programa implícito no 25 de Abril para além da democracia, da descolonização, e do desenvolvimento (o elemento mais ambíguo) traduz-se não só em várias formas de minimização da democracia representativa a favor de formas descritas como “participativas”, de que um exemplo eram as ideias de Maria de Lurdes Pintasilgo, como também num programa político muito próximo dos partidos como o BE e o PCP. As causas enunciadas de “Abril por cumprir” não são de Portugal, mas de parte dos portugueses.
Podem ser enunciadas com as melhores intenções do mundo, o combate à exploração, a defesa da igualdade, a condenação da ganância e do lucro, a dignidade a que todos têm direito e que a pobreza sonega, tudo isto. A democracia contém essas causas, mas o livre jogo do voto escolhe como elas são traduzidas em política, ou em ideologia, deixando para os mecanismos democráticos a escolha das soluções e prioridades. Por isso, elas não são universais, e quando se anda com saudades dessas causas como sendo de todos, é para um mundo não-democrático que vamos.
Num mecanismo muito espelhar, a esquerda do “cumprir Abril” encontra-se com a direita dos “desígnios nacionais”. Nos dias de hoje, e nos discursos do 10 de Junho, - o feriado péssimo da hipocrisia num país que não respeita a sua soberania, nem as suas Forças Armadas, nem os seus emigrantes, e muito menos lê Camões, - assistiu-se ao retorno ideológico da orfandade das causas. O pressuposto é o de que faltam causas, como havia no passado, em particular entre os jovens. Já não têm que lutar pela democracia, nem pela liberdade, nem pela Europa e, como encontram o mundo “ocupado” pelos mais velhos, que usurpam a riqueza em nome dos direitos adquiridos (uma das heranças ideológicas do período da troika), e como as elites os abandonam, ficam sem “futuro”. Tudo isto são tretas, mas ficam para outra altura.
Voltemos à democracia. As democracias não têm causas teleológicas, nem “desígnios”, nem “políticas de espírito”, nem “objectivos consensuais”, porque a essência da democracia é a diferença: pessoas que pensam diferente, que se organizam em partes, com visões do mundo distintas, expressando interesses diferentes. Não partilham “desígnios”, nem “sentidos comuns”, nem mesmo, citando Cavaco e Silva, tendo a mesma informação chegam a conclusões comuns. As democracias não são regimes científicos, nem naturais, são artificiais e culturais.
As democracias só têm duas regras, a soberania popular expressa pelo voto, e o primado da lei. O seu programa único é o bem comum, o bem de todos, homens, mulheres, adultos, crianças, jovens, negros e brancos, católicos e budistas, desde o primeiro dia até aos cem anos. As democracias não são providenciais nem religiosas, não acham que os homens na terra estão a fazer uma prova para serem julgados e enviados ou para o Paraíso ou para o Inferno. São regimes laicos e do presente, o bem comum é para os que estão vivos e para quando estão vivos.
Sobre o que é esse bem comum, cada “parte” tem um entendimento diferente, muitas vezes conflitual, quanto ao que isso significa e como lá se chega. Por isso os “consensos”, para além das diferenças, dos partidos, das políticas e das ideologias, são uma anomalia ambígua, por muito que também haja uma “consensomania”, que vem de 48 anos de anátema sobre a política, que os considera momentos altos da vida cívica. Seria tão bom entendermo-nos todos? Não em democracia.
Quem é que cria obstáculos às causas do “país que queremos”? No passado era o clericalismo, a monarquia, depois no Estado novo a “balbúrdia” da política, e hoje, no discurso populista, as elites. Quem são essas elites? Os políticos, os sindicalistas, os jornalistas, alguns artistas, por coincidência as únicas entidades que a democracia e a liberdade criou e permite, a começar por aqueles que respondem perante o povo e o voto. Na lista das elites, raras vezes entram os empresários, os tecnocratas “não políticos”, os poderes fácticos da Igreja e do futebol, e tenho quase a certeza que se fizesse uma lista nominal estariam lá os deputados, os dirigentes partidários, os sindicalistas, os comentadores, embora não estivessem todos. Mas já alguma vez aqueles que hoje falam das elites incluíram a Associação Industrial, ou a Confederação da Indústria, os Amorins e os Pereira Coutinho, ou os Soares dos Santos, ou os Melos, etc.? Mas certamente que incluiriam a FENPROF e a CGTP. E no entanto a maioria das decisões que condicionam a vida do país e o “futuro” dos jovens, condenados a salários baixos e ao trabalho precário, têm muito mais a ver com esta elite, a começar na sua relação discreta com o poder político.
Poupem-nos, pois, ao retorno aos “desígnios” e às causas, ao unanimismo orgânico de Portugal, e a um discurso envenenado mais pela impotência política do que pela razão. Para lutar contra a pobreza e a exclusão não é preciso nenhuma causa, nem “desígnio”, nem bandeira, é preciso lutar contra aquilo que a permite. E aqui, como é natural em democracia, divergimos.
Colunista
COMENTÁRIOS
Azerbineia Lda, 16.06.2019: Fico satisfeito por saber que há quem consiga escrever com tanta clareza. Ser democrata é aceitar o direito a todas as opiniões por mais aberrantes que as achemos. Viva a democracia!
cisteina, Porto 16.06.2019: Lendo agora a maioria dos comentários com um surto filosófico de confusão ou marxismo serôdio, tonitruante e tonificante (José Manuel Martins de Évora) só posso concluir que a democracia é mesmo um desiderato (ou desígnio, ou objectivo) muito complicado "para inglês ver" e manter o povo 'mais desgraçado' subjugado como sempre foi. Vem puxar JPP pela inteligência dos leitores alunos ... mas eles são todos catedráticos muito letrados e vividos. Por falar em grandes empresários ... muito gostaria eu de conhecer o percurso de vida de alguns destes comentadores, ou seja, do que fizeram ou produziram. Ou muito me engano ou não ficaria surpreendido, catedráticos de coisa nenhuma e vendedores de ilusões. 'Eppure si muove' ... a pobreza real e a do espírito. Como a Terra e na terra, não sai do sítio.
José Manuel Martins, évora 16.06.2019 : insisto num comentário censurado, suponho que pelos soviéticos: esses dos 48 anos não eram os combatentes pela liberdade, foram os combatentes internacionalistas pelo gulag soviético. Até a pide conseguiu ver isso. De novo: nem fascismo, nem socialfascismo (a 'realidade espelhar' entre a polícia política e as células comunistas, num jogo solitário de autistas): o 25 não foi em abril, foi em novembro.
AndradeQB, Porto, 16.06.2019: Não sei a que JPP se agarra para dizer quem os outros incluem nas elites ou não, lá terá as suas fontes. Uma coisa é certa. Ao afirmar que são os Amorins, os Soares dos Santos, e os Melos ( o Pereira Coutinho deve estar aí por engano) os maiores responsáveis pelo "condicionamento da vida do país pela sua relação com o poder político" mostra ter um estranho conceito de democracia. No pensar de JPP, Portugal paga partidos, Parlamento, Governo, Presidência da República, Reguladores, Policias e Tribunais para nada. Basta chegar uma família com o bolso cheio de guito e fica ela a responsável pelo condicionamento da vida do país.
José Prates, Vendas Novas 15.06.2019: No texto, JPP refere que " Os direitos adquiridos ", foi uma herança ideológica do período da troika. Enganou-se? Ou descobriu algo de novo?
vinha2100 Santarem 15.06.2019: Bravo! Exemplar! Pelo tema, pela coragem, pela erudição, pela pedagogia do verdadeiro sentido da democracia, esta é a melhor crónica de sempre de Pacheco Pereira!
José Manuel Martins, évora 15.06.2019: a democracia é a auto-gestão do sistema ao centro, e tem por missão substituir o pensamento e acção sobre os fundamentos do mesmo pela administração perpetuante dos seus resultados fatais. A democracia torna-se assim a 'prisioneira em liberdade' de si própria, num círculo quase hilariante de auto-confirmação. Para q esse círculo pareça perfeito, é preciso que nada fora dele possa vir incomodá-lo - convertido em «pontos de vista partidários diversos, a eleger livremente segundo 'a Lei', para resolver os problemas 'inerentes à vida em sociedade'». A democracia é esta pescadinha de rabo na boca. Sabendo q as vias revolucionárias (q pelo menos reconhecem q a realidade a q 'a democracia' responde não está dada, mas é feita - e desfeita) são ilusões sangrentas, resta - democraticamente - Pensar.
vinha2100, Santarem 16.06.2019: Ora cá temos um belo exemplo do relativismo de valores mas com uma grande vontade de “cumprir Abril”. Naturalmente que “cumprir” não era o mesmo para o Capitão Salgueiro Maia e para o General Vasco Gonçalves. O julgamento da História será sempre diferente com ou sem revisionismo. Não admira que a democracia se vá armando de dentes para dar o direito de nos mantermos diferentes. Os cada vez mais magros adeptos das causas revolucionárias, intérpretes de um qualquer imaginário pensamento do povo, vão -se manifestando, até neste fórum. Com muita confusão na cabeça, acrescente-se. É que é confuso beneficiar da democracia e da liberdade e ao mesmo tempo querer destrui-las beneficiando dos direitos que elas conferem. Um pouco como dizem os anglo-saxões, querer ter o bolo e comê-lo...
José Manuel Martins, évora16.06.2019: o q é q não compreendeu em 'ilusões sangrentas'? Eu até passaria mais facilmente por esbirro da extrema-dirª do que - mas de certeza certezinha -, por abrilista. Ainda ontem aqui escrevia q, em matéria de 25s e seus mitos, sou novembrista, não abrilista: abril cumpriu-se acabando (ou sendo acabado, pelo jaime neves) em novembro, ponto final. Eu não quero destruir a democracia, q me concede a liberdade de pensar e de exprimir: quero pensar e exprimir os limites dessa mesma democracia, graças a ela. Este paradoxo é constitutivo da própria democracia, não confusão acerca dela. Se a democracia é mera alternância na administração virtuosa 'da ganância e do lucro, da pobreza e da exploração' como fatalidades eternas, sem um telos q a norteie a transcender essa condição, acabou antes de começar.
Nuno Silva, 15.06.2019: Eu cá já elegi no início do ano a redução do IVA da electricidade e do gás, como Desígnio Nacional 2019. Não sou como aquelas beatas do Facebook do PAN, que querem obrigar fumadores a ingerir as próprias beatas, ou os populistas passistas ressabiados do diabo, como o João Miguel Tavares que nem o Camões convidaria para as suas viagens...
José Manuel Martins, évora 15.06.2019: completo desconchavo: 1. as elites São todos esses, ao contrário das palavras postas em boca alheia por jpp. 2. Se há uma constância nessas elites como factor 'propulsor-bloqueante', ela reside na paralaxe ideológica, que, na sua trivialidade teórica, jpp comete ao lado de muitos: a paralaxe entre democracia e capitalismo. A democracia é apenas a superestrutura política através da qual o sistema capitalista simula 'partilhar' os seus problemas estruturais em termos de livre escolha das opções fechadas da sua gestão e administração ad eternum - fechadas em torno do consenso de regime dos centrões partidários, integrando as franjas decorativas a fingir de 'liberdade'. 'A democracia é um partido' - até um bailarino como Nijinsky o sabia e o pronunciava. Jpp é o status quo simulando o rebelde.
Jose, 15.06.2019: JPP diz-nos que democracia é o "bloco central" regido pelos votos (30% do sufrágio) em nome do bem comum. Diz o lugar-comum do velho slogan "Nem fascismo, nem social fascismo!". O que aconteceu e ficará registado na história? Os que durante 48 anos de ditadura lutaram organizadamente pela liberdade, democracia e redução progressiva da exploração do Homem pelo Homem foram acantonados, rotulados de radicais ditadores que, desde que não façam ondas, enfeitam o quadro da democracia onde o que conta são os votos que dão o Estado Novo recauchutado para quem o usa manter os poderes fácticos: banca e capital. Eles são os agora indiciados, acusados, condenados e alguns já presos por corruptos e os "Estadistas" que deram a soberania nacional à UE ficando o protectorado à esmola. Queres democracia?!
FzD, Almada 15.06.2019: Pacheco Pereira começa a ter dificuldades em defender as suas ideias actuais, talvez porque tenha receio de as expor claramente sem soarem a autocrítica...

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