As “causas”, os “altruísmos” também,
acompanhados de muita balbúrdia interventiva… Isso eleva espiritualmente os
homens, trazendo-os para a ribalta da realização e da fama. Não, vivíamos à
margem dessas especulações, nós os cumpridores das regras, condenando as
injustiças, mas sem ousar interferir. Líamos livros que nos ilustravam sobre
essas injustiças, a par de outros mais libertos desses intentos políticos,
dávamos o nosso melhor tentando cumprir, dentro das regras impostas e dos
ditames da nossa consciência, é claro. Admirávamos, contudo, esses jovens que
liam os livros proibidos e que até passavam por esses vexames (gloriosos) que
uma polícia política por vezes lhes proporcionava, heróis, para a nossa
modéstia cumpridora. Uma revolução “salvadora” – ou falaciosa - resumiu tudo
isso, as causas generosas e os intentos egoístas, escondidos por trás daquelas.
Tudo veio à baila, dessas tais “injustiças sociais” causadas pelas prepotências
dos convencionalismos mesquinhos de antanho. Pacheco Pereira as indica, as tais causas da sua nostalgia, desde os
feminismos e homossexualidades aos racismos, colonialismos e outras sordidezes
das malfeitorias humanas, generalizadas a quaisquer que não seguissem esses
novos credos de “benfeitorias” estripadoras do Mal. Mas o que assim levedara, na
amassadeira tapada com pano branco de linho (masseira se chamava na velha casa
dos avós), em pão se transformou, ao que parece, na nova sociedade democrática,
pão que se distribuiu igualmente pelos que se empenharam em amassá-lo. Acabadas
as causas, pois, segundo Pacheco Pereira que não as encontra mais nas mentes
juvenis de agora, que já, de resto, delas usufruem livremente, sem agonias nem
pejos, resta apenas a nostalgia. E por vezes a tentativa de retomar valores
passados, em distorções democráticas inaceitáveis. Enfim, mais uma boa análise
de PP, seguida de comentários dos seus admiradores, nem todos nostálgicos e até
mais conscienciosos, me parece.
A nostalgia das causas
Nos dias de hoje, e nos discursos do 10
de Junho, assistiu-se ao retorno ideológico da orfandade das causas.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 15 de Junho de 2019
Há uma doença que, de vez em quando,
assalta a nossa democracia: a nostalgia das causas. Em particular, quando essa nostalgia é enunciada
como desejo político, e quando essas causas representam uma distorção
democrática. Num país que teve uma ditadura de 48 anos e um PREC de
dois ou três, em que existiu uma censura total durante mais do que uma geração, as causas tendem a ser um remake, ou do pensamento orgânico
ou da ditadura ou do PREC. Elas associam-se também ao discurso sobre a
identidade nacional, quer visto negativamente, quer na ideia expressa na
pergunta “que país queremos”? Se passarmos dos truísmos, - na
verdade toda a gente sabe que país queremos, - entramos num terreno muito
pantanoso e profundamente iliberal.
Cito
dois exemplos, porque percebemos melhor do que estou a falar juntando
nostalgias à esquerda e à direita que são espelhares. A nostalgia
do PREC ou, se se quiser, do “25 de Abril” como programa político é fácil de
enunciar: “ainda não se cumpriu Abril”. A
ideia de que havia um programa implícito no 25 de Abril para além
da democracia, da descolonização, e do desenvolvimento (o elemento mais
ambíguo) traduz-se não só em várias formas de minimização da democracia
representativa a favor de formas descritas como “participativas”, de que um exemplo
eram as ideias de Maria de Lurdes
Pintasilgo, como também num programa político muito próximo dos
partidos como o BE e o PCP. As causas enunciadas de “Abril por cumprir” não são
de Portugal, mas de parte dos portugueses.
Podem
ser enunciadas com as melhores intenções do mundo, o combate à
exploração, a defesa da igualdade, a condenação da ganância e do lucro, a
dignidade a que todos têm direito e que a pobreza sonega, tudo isto. A democracia contém essas causas, mas o
livre jogo do voto escolhe como elas são traduzidas em política, ou em
ideologia, deixando para os mecanismos democráticos a escolha das soluções e
prioridades. Por isso, elas não são universais, e quando se anda com
saudades dessas causas como sendo de todos, é para um mundo não-democrático que
vamos.
Num mecanismo muito espelhar, a
esquerda do “cumprir Abril” encontra-se com a direita dos “desígnios
nacionais”. Nos dias
de hoje, e nos discursos do 10 de Junho, - o feriado péssimo da hipocrisia num
país que não respeita a sua soberania, nem as suas Forças Armadas, nem os seus
emigrantes, e muito menos lê Camões, - assistiu-se ao retorno ideológico da
orfandade das causas. O pressuposto é o
de que faltam causas, como havia no passado, em particular entre os jovens.
Já não têm que lutar pela democracia, nem pela liberdade, nem pela
Europa e, como encontram o mundo “ocupado” pelos mais velhos, que usurpam a
riqueza em nome dos direitos adquiridos (uma
das heranças ideológicas do período da troika), e como as elites os abandonam,
ficam sem “futuro”. Tudo isto são tretas, mas ficam para outra altura.
Voltemos
à democracia. As democracias não têm causas teleológicas, nem
“desígnios”, nem “políticas de espírito”, nem “objectivos consensuais”, porque
a essência da democracia é a diferença: pessoas que pensam diferente, que se
organizam em partes, com visões do mundo distintas, expressando interesses
diferentes. Não partilham “desígnios”, nem “sentidos comuns”,
nem mesmo, citando Cavaco e Silva, tendo a mesma informação chegam a conclusões
comuns. As democracias não são regimes científicos, nem naturais, são
artificiais e culturais.
As
democracias só têm duas regras, a soberania popular expressa pelo voto, e o
primado da lei. O seu programa único é o bem comum, o bem de
todos, homens, mulheres, adultos, crianças, jovens, negros e brancos, católicos
e budistas, desde o primeiro dia até aos cem anos. As democracias não são providenciais nem
religiosas, não acham que os homens na terra estão a fazer uma prova para serem
julgados e enviados ou para o Paraíso ou para o Inferno. São regimes laicos e
do presente, o bem comum é para os que estão vivos e para quando estão vivos.
Sobre
o que é esse bem comum, cada “parte” tem um entendimento diferente, muitas
vezes conflitual, quanto ao que isso significa e como lá se chega. Por isso os
“consensos”, para além das diferenças, dos partidos, das políticas e das
ideologias, são uma anomalia ambígua, por muito que também haja uma
“consensomania”, que vem de 48 anos de anátema sobre a política, que os
considera momentos altos da vida cívica. Seria tão bom entendermo-nos todos?
Não em democracia.
Quem
é que cria obstáculos às causas do “país que queremos”? No passado era o
clericalismo, a monarquia, depois no Estado novo a
“balbúrdia” da política, e hoje, no discurso populista, as elites. Quem são essas elites? Os políticos, os sindicalistas, os jornalistas,
alguns artistas, por coincidência as únicas entidades que a democracia e a
liberdade criou e permite, a começar por aqueles que respondem perante o povo e
o voto. Na lista das elites, raras vezes entram os empresários, os tecnocratas
“não políticos”, os poderes fácticos da Igreja e do futebol, e tenho quase a
certeza que se fizesse uma lista nominal estariam lá os deputados, os
dirigentes partidários, os sindicalistas, os comentadores, embora não
estivessem todos. Mas já alguma vez aqueles que hoje falam das elites
incluíram a Associação Industrial, ou a Confederação da Indústria, os Amorins e
os Pereira Coutinho, ou os Soares dos Santos, ou os Melos, etc.? Mas certamente
que incluiriam a FENPROF e a CGTP. E no entanto a maioria das decisões
que condicionam a vida do país e o “futuro” dos jovens, condenados a salários
baixos e ao trabalho precário, têm muito mais a ver com esta elite, a começar
na sua relação discreta com o poder político.
Poupem-nos, pois, ao retorno aos
“desígnios” e às causas, ao unanimismo orgânico de Portugal, e a um discurso
envenenado mais pela impotência política do que pela razão. Para lutar contra a
pobreza e a exclusão não é preciso nenhuma causa, nem “desígnio”, nem bandeira,
é preciso lutar contra aquilo que a permite. E aqui, como é natural em
democracia, divergimos.
Colunista
COMENTÁRIOS
Azerbineia
Lda, 16.06.2019: Fico
satisfeito por saber que há quem consiga escrever com tanta clareza. Ser
democrata é aceitar o direito a todas as opiniões por mais aberrantes que as
achemos. Viva a democracia!
cisteina, Porto 16.06.2019: Lendo agora a maioria dos comentários com um surto
filosófico de confusão ou marxismo serôdio, tonitruante e tonificante (José
Manuel Martins de Évora) só posso concluir que a democracia é mesmo um
desiderato (ou desígnio, ou objectivo) muito complicado "para inglês
ver" e manter o povo 'mais desgraçado' subjugado como sempre foi. Vem puxar
JPP pela inteligência dos leitores alunos ... mas eles são todos catedráticos
muito letrados e vividos. Por falar em grandes empresários ... muito gostaria
eu de conhecer o percurso de vida de alguns destes comentadores, ou seja, do
que fizeram ou produziram. Ou muito me engano ou não ficaria surpreendido,
catedráticos de coisa nenhuma e vendedores de ilusões. 'Eppure si muove' ... a
pobreza real e a do espírito. Como a Terra e na terra, não sai do sítio.
José
Manuel Martins, évora 16.06.2019 : insisto num comentário censurado, suponho que pelos
soviéticos: esses dos 48 anos não eram os combatentes pela liberdade, foram os
combatentes internacionalistas pelo gulag soviético. Até a pide conseguiu ver
isso. De novo: nem fascismo, nem socialfascismo (a 'realidade espelhar' entre a
polícia política e as células comunistas, num jogo solitário de autistas): o 25
não foi em abril, foi em novembro.
AndradeQB, Porto,
16.06.2019: Não sei a que
JPP se agarra para dizer quem os outros incluem nas elites ou não, lá terá as
suas fontes. Uma coisa é certa. Ao afirmar que são os Amorins, os Soares dos
Santos, e os Melos ( o Pereira Coutinho deve estar aí por engano) os maiores
responsáveis pelo "condicionamento da vida do país pela sua relação com o
poder político" mostra ter um estranho conceito de democracia. No pensar
de JPP, Portugal paga partidos, Parlamento, Governo, Presidência da República,
Reguladores, Policias e Tribunais para nada. Basta chegar uma família com o
bolso cheio de guito e fica ela a responsável pelo condicionamento da vida do
país.
José
Prates, Vendas Novas 15.06.2019: No texto, JPP refere que " Os direitos
adquiridos ", foi uma herança ideológica do período da troika. Enganou-se?
Ou descobriu algo de novo?
vinha2100
Santarem 15.06.2019: Bravo! Exemplar!
Pelo tema, pela coragem, pela erudição, pela pedagogia do verdadeiro sentido da
democracia, esta é a melhor crónica de sempre de Pacheco Pereira!
José
Manuel Martins, évora 15.06.2019: a democracia é a auto-gestão do sistema ao centro, e
tem por missão substituir o pensamento e acção sobre os fundamentos do mesmo
pela administração perpetuante dos seus resultados fatais. A democracia
torna-se assim a 'prisioneira em liberdade' de si própria, num círculo quase
hilariante de auto-confirmação. Para q esse círculo pareça perfeito, é preciso
que nada fora dele possa vir incomodá-lo - convertido em «pontos de vista
partidários diversos, a eleger livremente segundo 'a Lei', para resolver os
problemas 'inerentes à vida em sociedade'». A democracia é esta pescadinha de
rabo na boca. Sabendo q as vias revolucionárias (q pelo menos reconhecem q a
realidade a q 'a democracia' responde não está dada, mas é feita - e desfeita)
são ilusões sangrentas, resta - democraticamente - Pensar.
vinha2100,
Santarem 16.06.2019: Ora cá temos
um belo exemplo do relativismo de valores mas com uma grande vontade de
“cumprir Abril”. Naturalmente que “cumprir” não era o mesmo para o Capitão
Salgueiro Maia e para o General Vasco Gonçalves. O julgamento da História será
sempre diferente com ou sem revisionismo. Não admira que a democracia se vá armando
de dentes para dar o direito de nos mantermos diferentes. Os cada vez mais
magros adeptos das causas revolucionárias, intérpretes de um qualquer
imaginário pensamento do povo, vão -se manifestando, até neste fórum. Com muita
confusão na cabeça, acrescente-se. É que é confuso beneficiar da democracia e
da liberdade e ao mesmo tempo querer destrui-las beneficiando dos direitos que
elas conferem. Um pouco como dizem os anglo-saxões, querer ter o bolo e
comê-lo...
José
Manuel Martins, évora16.06.2019: o
q é q não compreendeu em 'ilusões sangrentas'? Eu até passaria mais facilmente
por esbirro da extrema-dirª do que - mas de certeza certezinha -, por abrilista.
Ainda ontem aqui escrevia q, em matéria de 25s e seus mitos, sou novembrista,
não abrilista: abril cumpriu-se acabando (ou sendo acabado, pelo jaime neves)
em novembro, ponto final. Eu não quero destruir a democracia, q me concede a
liberdade de pensar e de exprimir: quero pensar e exprimir os limites dessa
mesma democracia, graças a ela. Este paradoxo é constitutivo da própria
democracia, não confusão acerca dela. Se a democracia é mera alternância na
administração virtuosa 'da ganância e do lucro, da pobreza e da exploração'
como fatalidades eternas, sem um telos q a norteie a transcender essa condição,
acabou antes de começar.
Nuno
Silva, 15.06.2019: Eu
cá já elegi no início do ano a redução do IVA da electricidade e do gás, como
Desígnio Nacional 2019. Não sou como aquelas beatas do Facebook do PAN, que
querem obrigar fumadores a ingerir as próprias beatas, ou os populistas
passistas ressabiados do diabo, como o João Miguel Tavares que nem o Camões
convidaria para as suas viagens...
José Manuel
Martins,
évora 15.06.2019: completo
desconchavo: 1. as elites São todos esses, ao contrário das palavras postas em
boca alheia por jpp. 2. Se há uma constância nessas elites como factor
'propulsor-bloqueante', ela reside na paralaxe ideológica, que, na sua
trivialidade teórica, jpp comete ao lado de muitos: a paralaxe entre democracia
e capitalismo. A democracia é apenas a superestrutura política através da qual
o sistema capitalista simula 'partilhar' os seus problemas estruturais em
termos de livre escolha das opções fechadas da sua gestão e administração ad
eternum - fechadas em torno do consenso de regime dos centrões partidários,
integrando as franjas decorativas a fingir de 'liberdade'. 'A democracia é um
partido' - até um bailarino como Nijinsky o sabia e o pronunciava. Jpp é o
status quo simulando o rebelde.
Jose,
15.06.2019: JPP diz-nos
que democracia é o "bloco central" regido pelos votos (30% do
sufrágio) em nome do bem comum. Diz o lugar-comum do velho slogan "Nem
fascismo, nem social fascismo!". O que aconteceu e ficará registado na
história? Os que durante 48 anos de ditadura lutaram organizadamente pela
liberdade, democracia e redução progressiva da exploração do Homem pelo Homem
foram acantonados, rotulados de radicais ditadores que, desde que não façam
ondas, enfeitam o quadro da democracia onde o que conta são os votos que dão o
Estado Novo recauchutado para quem o usa manter os poderes fácticos: banca e
capital. Eles são os agora indiciados, acusados, condenados e alguns já presos
por corruptos e os "Estadistas" que deram a soberania nacional à UE
ficando o protectorado à esmola. Queres democracia?!
FzD, Almada 15.06.2019: Pacheco Pereira começa a ter dificuldades em defender
as suas ideias actuais, talvez porque tenha receio de as expor claramente sem
soarem a autocrítica...
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