Teresa de Sousa, como
sempre, directa, clara e bem informada, tirando ilações aparentemente justas,
pese embora a ironia de alguns comentadores, defensores “du côté de chez Staline”, no caso da II Guerra. Não, convém não
esquecer o passado histórico, quando as ambições e as perfídias humanas tendem
a repetir-se, fazendo surtir hipóteses de guerras e retaliações de estarrecer. Seria
um suicídio colectivo uma guerra hoje, bem basta a destruição da Terra em si,
que conscienciosamente nos esforçamos por conseguir.
ANÁLISE: Convém nunca esquecer a
História
A guerra é sempre implacável, por mais
justa que seja a sua causa. Por isso, as suas lições devem perdurar na memória
dos homens.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 9 de Junho de 2019
1. Não
podia nem devia passar em claro o 75.º aniversário
do desembarque da Normandia, quando, sob comando americano, a maior
operação anfíbia de que reza a História iniciou o caminho da libertação da
Europa do poder nazi. A 6 de Junho de 1944, sete mil navios de guerra e
11 mil aviões transportaram uma gigantesca força militar que se revelaria
imparável até à completa derrota do III Reich. Todos nós conhecemos melhor ou
pior a batalha da Normandia. Talvez não conheçamos tão bem a outra
frente de combate, travada a Leste pelo Exército soviético, ainda mais feroz e
mais mortífera, porque os generais alemães tinham decidido centrar aí o grosso
das suas defesas. As tropas aliadas pararam antes de Berlim para permitir ao
Exército Vermelho tomar a cidade. Conhecem-se hoje as brutalidades cometidas
pelos soldados soviéticos, evitáveis se tivesse sido outra a decisão aliada. A guerra é sempre implacável, por mais
justa que seja a sua causa. Por isso, as suas lições devem
perdurar na memória dos homens.
2. Em
Portsmouth, no dia 5 de Junho, os aliados ocidentais celebraram a partida desta
colossal força expedicionária em direcção à Normandia. Donald Trump,
porventura uma vez sem exemplo, esteve à altura dos acontecimentos. Negando
por escassos momentos tudo o que tem dito sobre as relações transatlânticas, o
Presidente americano enalteceu a aliança e a coragem dos homens que lutaram
pela libertação da Europa. Falou de “eterna amizade”. Assinou a Proclamação do
Dia D com mais 15 chefes de Estado e de governo, na qual todos “se comprometem
a agir de forma construtiva, como amigos e aliados, para encontrar terreno
comum, mesmo quando divergem, de forma a resolver pacificamente as tensões
internacionais”.
Theresa May ofereceu-lhe uma cópia da
Carta do Atlântico, assinada em 1941 por Roosevelt e Churchill, lançando as
bases de uma aliança indestrutível que haveria de inspirar a criação das Nações
Unidas e da NATO.
3. Trump
foi recebido em Londres para uma visita de Estado que precedeu as comemorações.
Comportou-se de acordo com as piores previsões. Proclamou a sua amizade por
Nigel Farage e por Boris Johnson, sem o menor pudor de interferir na sucessão
da ainda primeira-ministra britânica, voltando a mostrar-se o mais entusiástico apoiante do “Brexit”.
Johnson lidera as sondagens internas aos conservadores
para suceder a May, justamente porque é aquele que mais se aproxima
da imagem de Farage e o seu partido parece acreditar que pode recuperar os
milhões de votos que perdeu nas europeias para o Brexit Party, escolhendo um
líder igualmente radical e desbocado.
Aliás, Boris também é uma boa caricatura de Trump (ou vice-versa, tanto faz)
apenas com a patine que se adquire em Eton. Gosta de se dar ares
churchillianos, é autor de uma biografia de Churchill, mas nada, absolutamente
nada, o aproxima do grande estadista do século XX que liderou o povo britânico
na sua hora mais negra mas também na mais gloriosa. Churchill, um homem do
Império que combateu por ele nos quatro cantos do mundo, foi o primeiro a
defender os Estados Unidos da Europa, no célebre Congresso de Haia, em 1948,
que lançou as sementes da unificação europeia. Churchill foi o fiel aliado de
um dos mais extraordinários Presidentes americanos, FDR, cuja visão da América
e do mundo está nos antípodas daquela que Trump professa. Churchill deu a mão a
De Gaulle, não deixando cair a honra da França ocupada.
Johnson
e os candidatos à sucessão de May competem entre si para ver quem é mais fiel
ao abandono da União Europeia. Sonham com uma “global Britain” quando o mundo é
cada vez mais dominado por grandes potências, que se chamam EUA, China, Índia
ou, em menor escala, a Rússia, e quando a União Europeia tenta desesperadamente
estar à altura desse jogo perigoso entre gigantes globais.
O
drama maior do Reino Unido está em que a única alternativa a Boris Johnson não
consegue fazer melhor figura. Jeremy Corbyn nasceu para a política contra a
Comunidade Europeia, contra a NATO e contra a América. Pode ter revisto algumas
das suas convicções mas é um defensor da saída do Reino Unido e continuará a
sê-lo provavelmente até ao dia em que isso lhe custe directamente a liderança –
o que já esteve mais longe de poder acontecer. Até agora, geriu a ambiguidade.
A derrota colossal nas europeias deu força aos críticos, que querem do líder
uma clarificação a favor do Remain. O
seu comportamento durante a visita de Trump desqualifica-o como candidato a
primeiro-ministro britânico. Recusou o convite para o jantar oficial que a
rainha ofereceu ao Presidente americano em Buckingham, porque não consegue
distinguir entre a pessoa e a instituição que representa. Ou talvez o seu
antiamericanismo se sobreponha ao nome de qualquer Presidente americano.
A pergunta que toda a gente faz
continua à procura de resposta. Como é possível que o país de Churchill,
portador de uma História extraordinária, criador de um pensamento liberal que o
mundo se habituou a admirar, esteja hoje reduzido a uma pálida imagem de si
próprio?
4. As
comemorações prosseguiram do outro lado da Mancha no dia 6 de Junho, o Dia D,
com Macron a receber o seu homólogo americano em Colleville-sur-Mer, junto a
Omaha Beach: “A América, caro Presidente Trump, nunca é tão grandiosa como
quando luta pela liberdade dos outros, como quando é fiel aos valores
universais criados pelos seus pais fundadores.” “Our bond is
unbreakable”, respondeu-lhe Trump, noutro raro momento de lucidez. Macron
e May colocaram juntos a primeira pedra de um monumento às tropas britânicas em
Ver-sur-Mer, junto à “Golden Beach”, onde os soldados sob comando britânico
desembarcaram no Dia D para ajudar a libertar a França. O anfitrião aproveitou
a cerimónia para lembrar que os dois países serão sempre aliados,
independentemente do destino que o Reino Unido escolher. Macron agradeceu
aos americanos e britânicos pela libertação da França. Nem todos os presidentes
franceses desde De Gaulle gostam de o fazer. Foi o general que, em 1966, chamou
o embaixador americano ao Eliseu para lhe comunicar que a sede da NATO teria de
deixar Paris e as tropas americanas não eram bem-vindas em França. É célebre a
resposta do embaixador: “Sr. Presidente, quer que leve também os cemitérios?” Foi Nicolas Sarkozy quem decidiu finalmente o
regresso da França à estrutura militar da Aliança. O que não quer dizer
que a França não tenha combatido ao lado da América sempre que foi preciso – na
primeira guerra do Golfo, no Afeganistão, na Síria ou no Sahel.
5. Mais
uma vez, a aliança transatlântica está sob tensão, precisamente quando a nova
desordem internacional a tornaria mais necessária. Enquanto decorriam as
celebrações do Dia D, Vladimir Putin recebia em Moscovo com todas as honras o
seu homólogo chinês Xi Jinping para celebrar a nova “amizade” entre os dois
países. Há pouco de comum entre a Rússia e a China, para além dos dois
autocratas que as governam – a potência revisionista que joga no palco
internacional sem qualquer respeito pela suas leis e com o único objectivo de
se afirmar entre os grandes; e a superpotência em ascensão que rivaliza
directamente com o poder americano. Economicamente, o desequilíbrio é gritante:
a Rússia exporta apenas matérias-primas, especialmente gás e petróleo, de
que a China precisa, recebendo em troca toda a espécie de bens, incluindo
maquinaria e material de telecomunicações sofisticados. A Rússia pode
compensar parcialmente as perdas sofridas com as sanções económicas aplicadas
pelo Ocidente depois da anexação da Crimeia.
Os
dois, Putin e Xi, têm hoje um adversário comum: os EUA, cuja “hegemonia”
rejeitam.Trump pode
orgulhar-se de ter transformado um “casamento de conveniência” num casamento em
que há pelo menos alguma amizade, depois de décadas de desconfiança. É o
resultado da sua guerra comercial com a China. É, em primeiro lugar, o
resultado de uma política externa que tem apenas um argumento: a força dos
Estados Unidos que, em seu entender, ninguém deve ter a ousadia de desafiar –
uma economia poderosa, um poder militar a anos-luz do seu mais directo
concorrente, o poder de fazer a chuva e o bom tempo na ordem internacional.
Tudo isto é verdade e, no entanto, uma perigosa ilusão. Com Trump, os
Estados Unidos estão a perder o maior de todos os seus poderes, incomensurável
e imaterial – o poder de atracção do sonho americano, que nem a China nem a
Rússia alguma vez podem oferecer.
COMENTÁRIOS
Manuel Caetano, Faro 09.06.2019: A História
regista correctamente o essencial da Segunda Guerra Mundial - a Alemanha-nazi
foi derrotada por uma aliança tripartida entre a Inglaterra, os EUA e a União
Soviética (a ordem dos factores é arbitrária). É este acontecimento
inquestionável que a História não deve permitir que as gerações actuais e as
vindouras esqueçam.
Nuno Silva, 09.06.2019: O momento é de
homenagem e respeito. Mas ver um presidente americano fascista convicto entre
os convidados, é quase uma ofensa... Relembro que a 2ª Guerra
Mundial serviu para derrotar o fascismo na Alemanha, Itália e Japão (História).
Daí o caricato perigoso de ver um presidente fascista americano naquelas
comemorações...
Joao, Portugal 09.06.2019 12:00: Começa bem e
objectivamente a Teresa dizendo que "A guerra é sempre implacável"
mas depois lá vai flectindo para a subjectividade da "justeza" das
guerras, as nossas e dos nossos aliados decerto. E
depois claro que insinua que a tomada de Berlim teria sido
"humanitária" se fossem os americanos ou ingleses... assim tipo
Bremen ou Dresden onde só em cada noite de bombardeamento foram mortas 20 ou 30
mil pessoas, alemães, com zero mortos aliados.
the .bull.paulo, Lisboa 09.06.2019: Talvez estas
ofensivas em Bremen e Dresden (que, apesar de mais conhecidas do que "a
outra frente de combate, travada a Leste pelo Exército Vermelho", são
convenientemente esquecidas quando convém) tenham sido o meio
"implacável" necessário para ajudar a ganhar a Guerra e sejam
"justificadas" como represálias pelas campanhas levadas a cabo pelos
Nazis na Frente Oeste. Nos cerca de 20 dias da batalha de Berlim morreram
talvez 20 a 30 mil alemães e "só" o mesmo número de soldados
soviéticos. Não foi decerto uma chacina, foi brutal claro, rua a rua,
quarteirão a quarteirão até à derrota dos franceses da divisão Charles Magne
que defendiam o último reduto hitleriano. Se tivessem sido os americanos e
ingleses com os seus métodos seriam talvez ... 400 ou 600 mil mortos alemães e
zero mortos ingleses e americanos. Aliás como veio a acontecer em Hiroxima e
Nagasaki, cidades e suas populações todas arrasadas e mortas, 400 mil? 500 mil?
Mas para a Teresa talvez vinte vezes mais mortos seria melhor pois seria menos
"brutal" ...
Mas a ser assim, o que dizer da
implacabilidade extrema que os Nazis usaram no seu avanço na Frente Leste,
contra um país (União Soviética) apanhado desprevenido e a quem não se dá no
Ocidente o "crédito" devido pelo seu implacável avanço contra os seus
agressores , até atingir Berlim, com o consequente desgaste da máquina militar
nazi, ao ponto de tornar desnecessária a intervenção Americana na Europa - no
dia D (6 de junho de 1944) as tropas soviéticas já estavam na parte ocidental
na Ucrânia e se era para deixar os soviéticos libertar Berlim, qual a
justificação para uma intervenção tão massiva dos Americanos na Europa? Afinal,
estes não tinham tantas razões de queixa dos Nazis como os Soviéticos, não
sendo por isso tão implacáveis (o mesmo não se pode dizer em relação aos
Japoneses). Obviamente que, não sendo ingénuo, terá de se colocar a hipótese
de o "Dia D" ter servido para "proteger" a Europa Ocidental
não dos nazis, mas das "brutalidades cometidas pelos soldados
soviéticos"... E possibilitar aos europeus livres sonhar com o sonho
americano, que (claro que) nem a China nem a Rússia podem oferecer (mas podem
oferecer o sonho chinês ou o sonho russo, tão válidos como o outro).
Joao, Portugal 09.06.2019: É
capaz de ter razão, é óbvio e é documentado (por exemplo nos telegramas de
truman para o stalin) que o lançamento das bombas atómicas foi para
intimidar os russos a não entrarem na guerra contra o Japão e não ocuparem o
Japão (a ilha Hokaido como estava combinado em Yalta e Potsdam) ... os russos
ainda declararam guerra aos japoneses mas não passaram muito daí ... assim as
bombas atómicas e o seus meio milhão de mortos são perfeitamente justificados
pois rasgaram Yalta e "salvaram" Hokaido da "brutalidade"
soviética ... justificam os Cronistas dos Feitos Épicos. Bom, pelo que
lembra, direi que foi uma sorte para os berlinenses e restantes alemães as
bombas atómicas ainda não estarem prontas, senão os alemães teriam sido
"salvos" com as suas explosões sobre Berlim e as outras cidades.
Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 10.06.2019: Haaa, João,
acho que o vou apanhar desprevenido com esta referência - a campanha da
"tempestade de Agosto envolvendo mais de dois milhões de soldados na
Manchúria nos meses que precedem as duas bombas atómicas. Tem um bom
documentário em YouTube LBuMDG2TvcY e é claro imenso material na internet
incluindo um estudo do centro de estudos estratégicos dos EUA. Boa
visualização/leitura :-).
Joao, Portugal 10.06.2019: Obg, achei
deliciosas as imagens. Mas vejamos a cronologia. Tinha ficado acordado em Yalta
e Potsdam que os russos entrariam na guerra após três meses de a guerra acabar
na Europa e que ocupariam até Hokaido. O Stalin assim fez, a 9 de Agosto
declara guerra, três meses depois de 9 de Maio, hora de Moscovo, com intenção
de chegar a meio do Japão como acordado. Só que Truman dia 6 lançou uma bomba e
no próprio dia 9 lança outra e envia telegramas (ver no arquivo Wilson Center
por exemplo) ao Stalin, secos e ameaçadores, não "admitimos" ocupação
do Japão, decisão "definitiva" etc e o Stalin de facto desistiu de
ocupar Hokaido. Entretanto os japoneses na Manchúria renderam-se a 20 de Agosto
e os russos ainda invadem as Curilas já no final de Agosto,... e finalmente o
Japão rende-se por essa altura (28?) e formalmente a 2 de Setembro. Bom, se os
japoneses se renderam por terem mais receio da invasão russa do que das bombas
atómicas, não sei, o que sei é que por essa altura já o Stalin tinha desistido
de invadir Hokaido face às ameaças do Truman.
cisteina, Porto 09.06.2019: Mais uma boa
lição de História, Infelizmente, poucos querem saber dela, apesar de ser 'a
mestra da vida' e podermos aprender e tirar conclusões. Enfim, o mundo
comercial e global é que ditam as regras e fazem as guerras, sempre assim foi,
não me espanta como não me espanta o oportunismo da Grã-Bretanha, o seu tipo de
colonialismo continua a propagar-se um pouco por todo o lado de forma
insinuante, quase democrática. Certo é que foi a que esteve do lado dos
vencedores na última guerra, unindo-se aos USA. Com a Europa a definhar e
Bruxelas a dormir e ressonar alto, o paradigma mundial irá mudar, é questão de
tempo, a China tomará conta, afinal são muitas centenas de milhões, razão de um
império maior, Portugal não tinha tanta gente, só garra lusitana.
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